A Nasa anunciou recentemente a primeira detecção de possíveis bioassinaturas em uma rocha na superfície de Marte. A rocha contém a primeira matéria orgânica marciana detectada pelo veículo-robô Perseverance, bem como curiosos pontos descorados que podem indicar a atividade passada de microorganismos.
Ken Farley, cientista do projeto da missão, chamou essa rocha de “a mais intrigante, complexa e potencialmente importante já investigada pelo Perseverance”.
O Perseverance faz parte da Mars 2020, a primeira missão desde a Viking explicitamente projetada para buscar vida em Marte (oficialmente, para “buscar possíveis evidências de vida passada usando observações sobre habitabilidade e preservação como guia”). Sem dúvida, esse objetivo já foi alcançado: foram encontradas possíveis evidências de vida no passado de Marte. Mas é necessário muito mais trabalho pôr essa interpretação dos dados sob teste. O que sabemos é o seguinte:
Desde que aterrissou na cratera Jezero há alguns anos, o Perseverance atravessou uma região com uma série de rochas formadas quase quatro bilhões de anos atrás. Naquela época, Marte era muito mais habitável do que o planeta vermelho frio, seco e inóspito de hoje.
Havia milhares de rios e lagos, uma atmosfera espessa e temperaturas e condições químicas confortáveis para a vida. Muitas das rochas em Jezero são sedimentares: lama, lodo e areia despejados por um rio que desaguava em um lago.
A nova descoberta diz respeito a uma dessas rochas. Informalmente chamada de “Cheyava Falls” (uma cachoeira no Arizona), ela é um pequeno bloco avermelhado do que parece ser uma pedra de lama, enriquecida com moléculas orgânicas. A rocha também é entrelaçada com veios brancos paralelos. Entre os veios há manchas esbranquiçadas em escala milimétrica com bordas escuras. Para um astrobiólogo, todas essas características são intrigantes. Vamos examiná-las uma a uma.
Primeiro, “moléculas orgânicas” são feitas de carbono e hidrogênio (geralmente com enxofre, oxigênio ou nitrogênio também). Os exemplos incluem proteínas, gorduras, açúcares e ácidos nucleicos, a partir dos quais toda a vida como a conhecemos é construída.
A matéria orgânica é comum nas rochas da Terra, a maior parte dela derivada de restos de organismos antigos. Mas o termo “orgânico” é um pouco enganador: essas moléculas também podem ser produzidas por reações não biológicas (na verdade, nós sabemos que isso estava acontecendo há quatro bilhões de anos em Marte).
Moléculas orgânicas simples não biológicas são comuns no Universo, e o veículo-robô Curiosity, também da Nasa já as encontrou em pedras de lama na cratera Gale. Elas também foram detectadas pelo Perseverance na cratera Jezero no ano passado.
No entanto, Ken Farley considera a nova observação a primeira “detecção realmente convincente” de orgânicos feita pelo Perseverance. A Nasa não nos informou quais tipos de moléculas orgânicas estão de fato presentes em Cheyava Falls, portanto é difícil avaliar suas origens. Elas poderiam ser biológicas, mas seria necessária uma análise completa usando laboratórios na Terra para resolver essa questão.
Em seguida, os veios. Eles são compostos de sulfato de cálcio, que se precipitou como calcário quando a água líquida correu ao longo de fraturas na subsuperfície. Veios como esses são comuns em rochas sedimentares marcianas (o Curiosity viu muitos deles) e, é claro, não são “bioassinaturas”, embora normalmente representem condições habitáveis.
Meu próprio trabalho demonstrou que os microrganismos que habitam fraturas subterrâneas podem produzir fósseis químicos que ficam presos em veios de sulfato de cálcio. Estranhamente, porém, os veios em Cheyava Falls também contêm olivina, um mineral ígneo. Isso pode sugerir que a água foi injetada em temperaturas muito altas para a vida. Precisamos de mais dados para saber de uma forma ou de outra.
Por fim, e quanto a esses pontos esbranquiçados e descorados? Elas se parecem com as “manchas de redução”, também chamadas de “manchas de leopardo”, comumente vistas em rochas sedimentares vermelhas na Terra. Essas rochas são vermelho-ferrugem porque contêm uma forma oxidada de ferro. Quando as reações químicas modificam o ferro para um estado menos oxidado, ele se torna solúvel. A água leva o pigmento embora, deixando para trás uma mancha branqueada.
O veículo-robô Perseverance em Marte. — Foto: NASA/JPL-Caltech
Na Terra, essas reações geralmente são conduzidas por bactérias que vivem na subsuperfície. Elas usam o ferro oxidado como fonte de energia, assim como você e eu usamos o oxigênio do ar. Em Marte, organismos semelhantes a bactérias poderiam ter usado a matéria orgânica da rocha para completar a reação (assim como usamos a glicose dos alimentos que ingerimos).
As manchas de redução não foram vistas antes em Marte, embora os “halos” lineares branqueados observados pelo Curiosity na cratera Gale sejam um pouco semelhantes. Como um dos poucos astrobiólogos que estudou manchas de redução na Terra – e encontrou evidências de processos biológicos nelas – estou pessoalmente encantado. Mas, como sempre, é preciso ter cuidado.
As possíveis causas não biológicas precisam ser exploradas e descartadas. As reações de dissolução de ferro podem acontecer e de fato acontecem em rochas sedimentares sem vida. As margens escuras das manchas de Cheyava Falls são enriquecidas tanto em ferro quanto em fosfato, uma associação sugerida anteriormente para ocorrer em torno de alguns veios de sulfato de cálcio em Marte. Essa observação é consistente com a vida, mas também com reações químicas impulsionadas por fluidos ácidos.
As novas descobertas, no entanto, encorajarão aqueles que pedem que a Nasa e a Agência Espacial Europeia (ESA) prossigam com o problemático programa multibilionário de recuperação de amostras que o Perseverance deveria ter iniciado. O rover já extraiu um pedaço da rocha de Cheyava Falls. Se os planos atuais forem concretizados – um grande “se” -, futuras espaçonaves coletarão esse pedaço e outros e os trarão para a Terra.
Em seguida, a rocha será analisada em laboratórios de última geração, com muito mais capacidade do que os instrumentos a bordo do Perseverance. Até que isso aconteça, não podemos ter certeza se o Perseverance realmente encontrou fósseis de vida antiga em Marte. As evidências até o momento não são definitivas, mas certamente são promissoras.
*Sean McMahon lidera o Grupo de Paleobiologia Planetária na Escola de Física e Astronomia e na Escola de Geociências da Universidade de Edimburgo
**Esta reportagem foi originalmente publicada no site “The Conversation Brasil”
(Por The Conversation Brasil, Sean McMahon)