A funcionária da CBF que acusou Rogério Caboclo de assédio sexual e moral relatou à Comissão de Ética da entidade ter tomado conhecimento de ameaças do dirigente depois de ela se licenciar do trabalho por motivos de saúde. De acordo com o depoimento, que foi compartilhado com o Ministério Público e ao qual o ge teve acesso, Caboclo afirmou que “acabaria com a carreira dela”.
Ela também mencionou tentativas de interferência de Caboclo em sua vida pessoal. E detalhou uma suposta rotina de consumo de bebida alcoólica do dirigente no horário de trabalho e até durante eventos em que ele aparecia publicamente, como reuniões com clubes e federações estaduais.
O depoimento foi prestado no dia 14 de junho, dez dias depois de o ge ter revelado que ela havia acusado Rogério Caboclo de assédio moral e sexual. No dia 6 de junho, a Comissão de Ética afastou o dirigente do cargo, punição que no dia 3 de julho foi ampliada por mais 60 dias.
Ameaças
A funcionária se afastou do trabalho no dia 9 de abril de 2021. Ela relatou à Comissão de Ética que, depois disso, tomou conhecimento de ameaças por parte de Rogério Caboclo. Segundo o depoimento, o presidente da CBF afirmou a um diretor que “acabaria com a carreira” dela.
Caboclo nega que tenha dito isso. Por meio de sua assessoria, o dirigente enviou a seguinte resposta à reportagem:
– Trata-se de absoluta mentira. O presidente da CBF, Rogério Caboclo, não fez essa ameaça. Pelo contrário, ele recebeu, por meio de terceiros, a ameaça de que, caso a CBF não pagasse R$ 12 milhões para a funcionária, ela o acusaria formalmente de assédio.
A funcionária também relatou um episódio em que o motorista pessoal de Caboclo foi visto rondando o apartamento da irmã da funcionária à noite no Rio de Janeiro. Segundo o relato, o motorista foi confrontado pela irmã da funcionária (que da sacada do apartamento perguntou o que ele queria) e afirmou que estava procurando a funcionária.
Neste caso, a assessoria de Caboclo confirma o episódio, mas nega que ele tivesse conhecimento da ação do motorista.
– Não houve, absolutamente, o conhecimento prévio ou autorização de Rogério Caboclo para que tal visita fosse realizada. Tão logo soube do acontecido, o presidente da CBF repreendeu duramente o funcionário por seu ato. O motorista foi por vontade própria e sem o conhecimento de Caboclo, o que o motorista reconhece em depoimento.
Rogério Caboclo, presidente afastado da CBF — Foto: WILTON JUNIOR/ESTADÃO CONTEÚDO
Interferências na vida privada
A funcionária relatou ainda que eram constantes os comentários feitos por Caboclo a respeito da vida pessoal dela. Em uma viagem de trabalho ao Paraguai, ele teria elogiado sua aparência e comentado que era “inacreditável” que ela ainda estivesse solteira. Caboclo nega esse episódio.
No dia 21 de setembro de 2020, a funcionária contou a Caboclo, seu chefe direto, que um funcionário da CBF tinha se mudado para a casa dela – para não expor a própria mãe ao risco de se infectar durante a pandemia.
Naquele mesmo dia, diz a denunciante, Caboclo reuniu os diretores presentes na sede da entidade – no depoimento, ela cita oito deles, todos homens – para “comunicar o noivado” da funcionária com o colega com quem passou a dividir apartamento. No depoimento, ela diz que “o clima foi de constrangimento por parte dos presentes” e que ela “ficou imensamente incomodada com a situação”.
Sobre este caso, a assessoria de Caboclo alegou o seguinte ao ge:
– O episódio ocorreu durante despachos corriqueiros com diretores que estavam na sala da presidência, ocasião em que a acusadora espontaneamente entrou no recinto e houve um breve comentário, em ambiente informal e entre amigos.
No relato à Comissão de Ética, a funcionária confirmou outras informações que constam na denúncia que ela apresentou contra Caboclo, como um episódio no apartamento do dirigente em São Paulo, em que ele a teria chamado de “cadelinha”, oferecido um biscoito canino a ela e em seguida latido para ela.
Segundo a assessoria de Caboclo, o dirigente não quis ofender a funcionária.
– Em relação ao episódio ocorrido em São Paulo, embora o acusado não reconheça os termos relatados pela acusadora, no diálogo gravado o presidente se desculpou pela maneira como teceu o comentário, afirmando que jamais teve a intenção de prejudicar ou ofender a funcionária – diz a nota enviada pela assessoria.
No dia seguinte, de acordo com o depoimento da funcionária, Caboclo “não se desculpou”, mas afirmou que ela “não deveria manter mais relações de amizade ou amorosas com ninguém dentro da CBF”. E que também deveria “mudar suas vestimentas”, “até mesmo seus cabelos”, “fazer luzes” e “usar cílios postiços”.
Sobre esta acusação, Caboclo comentou o seguinte, sempre via nota enviada pela assessoria:
– Em instituições do porte da CBF é comum o estabelecimento de padrões a serem seguidos na vestimenta e apresentação pessoal. No caso concreto, houve um bônus salarial para a compra de vestuário e ela se disse grata pelo gesto da direção da CBF. Em relação a cabelo e cílios, Caboclo jamais fez menção a esses aspectos.
A funcionária também detalhou no depoimento a noite em que gravou Rogério Caboclo perguntando se ela “se masturba”. O episódio ocorreu em 16 de março de 2021, na sala da presidência, no terceiro andar do prédio da CBF.
A funcionária contou ter sido chamada ao jardim de inverno contíguo ao gabinete, “lugar sombreado, que conta apenas com iluminação indireta, onde [ele] estava bebendo vinho”.
– […] após lhe dizer para que tirasse a máscara e oferecer-lhe vinho, o que a declarante negou, passou a falar coisas desconexas porém de temas desagradáveis à declarante, chegando a declarar que tinha “umas 200 putas” em sua agenda de celular, emendando em seguida “200 não, mas umas 20”, referindo-se de forma chula a prostitutas.
A funcionária disse que aproveitou um momento em que Caboclo foi ao banheiro para pedir ajuda por WhatsApp a dois diretores da CBF. Segundo ela, um deles já havia deixado o prédio, mas o outro apareceu na sala do presidente e a tirou de lá.
Quando Caboclo a chamou de volta, ela resolveu gravar a conversa, na qual o dirigente se refere de maneira jocosa à própria esposa e pergunta à funcionária se ela “se masturba”. Trechos desse diálogo foram ao ar no “Fantástico” no dia 6 de junho (assista no vídeo que abre esta reportagem).
Rogério Caboclo, presidente afastado da CBF — Foto: Agif
Consumo de álcool
No depoimento à Comissão de Ética, a funcionária afirmou que Rogério Caboclo ingeria bebida alcoólica “tanto nos horários de expediente na sede da CBF quanto nos diversos e mais variados compromissos externos”. Diz um trecho do depoimento:
– […] A ingestão de bebidas alcoólicas ultrapassava até mesmo a medida do razoável e socialmente aceito fora do ambiente laboral, podendo afirmar que era nítido o exagero, o efeito sobre suas atitudes e decisões, bem como sua forma de se expressar.
Ela disse ainda que era a encarregada de sempre manter disponíveis garrafas do vinho português Cartuxa Reserva (entre R$ 350 e R$ 500 a garrafa) para Caboclo. O consumo, segundo ela, variava entre uma e duas garrafas por dia.
– As garrafas eram mantidas na estação de trabalho da declarante e, quando solicitada, deveria deixar a garrafa já aberta no banheiro do gabinete, de uso exclusivo do presidente da CBF, acompanhada de uma taça.
A funcionária afirmou que isso acontecia “diariamente após almoço, e o consumo durava toda a tarde até o término do expediente”. Nas viagens, ainda segundo a funcionária, ela era orientada a pedir as garrafas de vinho no apartamento dela, para não lançar o consumo na conta de Caboclo. De acordo com a denunciante, ao fim da estadia, ele dava o valor correspondente em dinheiro para que ela pagasse as bebidas anotadas no quarto dela.
Segundo o depoimento prestado à Comissão de Ética e compartilhado com o Ministério Público, a situação era de amplo conhecimento da diretoria da CBF. A funcionária, que trabalhava na antessala da presidência, relatou que era “bastante comum” que diretores perguntassem “como ele está” antes de pedir para despachar ou conversar com Rogério Caboclo.
Sobre estas acusações, Caboclo respondeu o seguinte via assessoria:
– O presidente Rogério Caboclo nega veementemente o consumo de bebida alcoólica durante o expediente, seja na CBF ou em viagens. Ele também declara que não tem problema com o uso de bebida alcoólica. É prática difundida e socialmente aceita no Brasil o consumo moderado de bebidas alcoólicas, fora do horário ordinário de expediente, em reuniões com pessoas ligadas ao trabalho. A própria funcionária que fez as acusações reconhece que gravou áudios de Caboclo durante esses momentos informais. Outra funcionária, responsável pelo departamento de compras da CBF, afirma, em depoimento, que as compras de bebidas alcoólicas abasteciam os eventos da entidade. Afirmou também que nunca o viu beber.
Bebidas durante reuniões
No dia 9 de março, o presidente da CBF participou de uma reunião virtual com clubes e federações para discutir a continuidade das competições durante a pandemia da Covid-19. O jornal “O Dia” publicou trechos do vídeo daquela reunião, em que Caboclo aparece dizendo para os clubes “vocês estão fodidos”.
Segundo o depoimento da funcionária à Comissão de Ética, naquele dia Caboclo estava em seu apartamento em São Paulo e bebeu durante a reunião. Ela contou que “abastecia sua taça de vinho quando lhe era solicitado, para que ele bebesse fora do alcance da câmera”.
Outro episódio relatado no depoimento se deu em 27 de março de 2021, no evento do Prêmio Brasileirão 2020, que ocorreu no auditório da CBF. Segundo a funcionária, Caboclo deveria ler um discurso previamente redigido que duraria quatro minutos, mas resolveu substituí-lo por outro, de improviso, com mais de 20 minutos de duração.
Naquele dia, como a esposa e o filho de Caboclo estavam presentes no prédio da CBF, ele teria determinado que as garrafas de vinho fossem colocadas no banheiro da vice-presidência, sala que naquele dia estava desocupada.
Guerra política
Rogério Caboclo está afastado da presidência da CBF pelo menos até a primeira semana de setembro. É o prazo para Comissão de Ética concluir sua investigação e apresentar um parecer, que deve ser votado por uma Assembleia Geral Administrativa – formada pelas 27 federações estaduais de futebol. Para que o presidente seja destituído, são necessários 3/4 dos votos, em votação aberta.
Caboclo é alvo de duas outras investigações: uma do Ministério Público do Trabalho e outra do Promotoria Criminal do Juizado Especial.
Sempre que se manifestou sobre o caso, Caboclo afirmou ser vítima de um complô liderado por Marco Polo Del Nero, ex-presidente da CBF (2015-2018), supostamente interessado em “retomar o poder na CBF”.
Caboclo trabalhou com Del Nero na Federação Paulista de Futebol, no Comitê Organizador Local da Copa do Mundo de 2014 e na própria CBF. O apoio de Del Nero foi decisivo para que Caboclo fosse eleito presidente da CBF em 2018 para o mandato que vai de 2019 a 2023.
Desde abril de 2018, Marco Polo Del Nero está banido pela Fifa de todas as atividades relacionadas a futebol, mas se mantém influente na confederação. (Globo Esporte)