Pode ser apenas uma coincidência irreverente, que tem um pouco da cara de Diego Armando Maradona, mas foi exatamente contra o America-RJ que o craque argentino, um anti-imperialista de primeira fileira, fez os seus únicos dois gols contra clubes brasileiros.

É verdade que não foram muitos confrontos – nunca jogou Libertadores nem pelo Argentino Juniors, nem pelo Boca ou pela passagem relâmpago pelo Newells Old Boys -, e nesses amistosos passou em branco. Este “privilégio” quem teve foi o Diabo, no fim de uma excursão pela Europa em 1990. O jogo terminou 4 a 2, com dois de Maradona. E dois de Beto, do America.

Maradona fez 345 gols em 680 jogos (média de 0,50 gol/jogo). Se não marcou contra Vasco, pelo Newell’s Old Boys, em 1994, nem contra o São Paulo, pelo Sevilla, em 1993, ele fez numa disputa de pênaltis no torneio Transatlântico contra o Fluminense depois de empate no tempo normal. Pela seleção argentina, marcou um gol contra a seleção brasileira em empate 1 a 1, no Mundialito (no Uruguai)

Lembranças de encontro inesquecível — Foto: Arquivo pessoal

Lembranças de encontro inesquecível — Foto: Arquivo pessoal

Grupo do America na excursão pela Europa — Foto: Arquivo pessoal

Grupo do America na excursão pela Europa — Foto: Arquivo pessoal

Maradona vivia maus bocados pela Itália depois de transformar Napoli e Nápoles – conquistou o Scudetto em 1986/1987 e 1989/1990, além da Copa da Uefa (1989) e a Supercopa da Itália (1990). Dividiu o país na Copa do Mundo da Itália e, se era celebrado no sul do país, enfrentava o desprezo dos demais italianos. E peitava a todos.

O jogo de 26 de agosto de 1990, no estádio San Paolo, era cercado de expectativa por esse contexto. Era o primeiro jogo de Maradona na volta a Nápoles depois do Mundial. Vinha de férias com seu amigo Careca, pelo Brasil, e pulou parte da preparação habitual que fazia para recuperar a forma até subir ao gramado ao lado de Paulo Sergio, capitão do America.

O que ele contou para a gente no vestiário é que a pressão lá era muito grande. “Já briguei com todo mundo aqui”. Não sabia nem se ia jogar naquele dia.
— Nival, jogador do America em 1990
Paulo Sergio, Beto e Nival: camisa do America, do zagueiro, e a do Napoli, trocada com Ciro Ferrara, que também jogou na seleção italiana — Foto: Arquivo pessoal

Paulo Sergio, Beto e Nival: camisa do America, do zagueiro, e a do Napoli, trocada com Ciro Ferrara, que também jogou na seleção italiana — Foto: Arquivo pessoal

Quem lembra da história e do rápido – e inesquecível – encontro é Nival, em encontro promovido pelo Globo Esporte nesta sexta, na zona oeste do Rio. Ele, Paulo Sergio, o capitão americano, e Beto, autor de dois gols naquela noite napolitana, têm gravado na memória e lembranças em fotos daquela partida.

O America ficou quase um mês na Europa. Até o jogo com o Napoli, perdeu apenas uma partida – por 2 a 0 para um combinado belga -, venceu o Honved, da Hungria, terminando em terceiro lugar no torneio, e depois foi para a Itália. Antes do Napoli de Maradona, empatou por 1 a 1 com o Cnitta Vecchia, um time da 3ª divisão italiana – além de outros jogos menores.

Quem os levou à Europa foi uma dupla de ex-grandes jogadores brasileiros: Dirceu, falecido em 1995 em acidente de carro, jogou no Napoli e era o 10 da equipe antes de Maradona, e Pedrinho Vicençote, que jogou no Catania e também já conhecia o 10 argentino.

Sorridente, Maradona voltava de férias — Foto: Arquivo reprodução

Sorridente, Maradona voltava de férias — Foto: Arquivo reprodução

– Quando o Maradona voltava de férias, ele sempre passava pelo menos uma semana em algum lugar fora de Nápoles. Lembro que ele fazia preparação para depois voltar a jogar. Acho que era para retomar forma e depois que se reintegrava ao grupo. Tanto que acho que ele joga só um tempo – recorda Pedrinho.

Não chegou nem a um tempo inteiro. Jogou apenas 40 minutos e foi o suficiente para colocar o estádio abaixo. Fez gol de pênalti, bateu falta no travessão – com rebote de gol de Silenzi, atacante revelação italiana que estreava naquela noite -, marcou um de cobertura em lindo toque e, pouco antes de sair, ainda deu um chutaço na trave.

A laranja de Maradona e o brilho de Beto

O craque argentino e Careca passaram antes da partida no vestiário do America. O brasileiro havia enfrentado alguns jogadores em 1986 – embora aquela equipe fosse basicamente formada por jovens -, quando o America foi terceiro lugar do Brasileiro, eliminado pelo Carioca de São Paulo, o grande campeão daquele ano.

– Pediram para não chegar junto, porque ele estava voltando. A festa era para ele né – lembrou Paulo Sergio, que subiu o túnel ao lado do craque, os dois capitães de suas equipes.

Jornal com charge sobre o problema de Maradona com a polícia italiana — Foto: Reprodução "Jornal dos Sports"

Jornal com charge sobre o problema de Maradona com a polícia italiana — Foto: Reprodução “Jornal dos Sports”

O destaque do "Jornal dos Sports" no dia seguinte da partida — Foto: Reprodução

O destaque do “Jornal dos Sports” no dia seguinte da partida — Foto: Reprodução

"Jornal dos Sports" noticiou o baile de Maradona contra o America — Foto: Reprodução

“Jornal dos Sports” noticiou o baile de Maradona contra o America — Foto: Reprodução

Beto, de 19 anos na época, Paulo Sergio, 25, e Nival, 22, sorriem com a história que entra para a galeria de imagens míticas de um ídolo do futebol. Há cenas de Maradona fazendo malabarismo com bola, claro, mas também com bolinha de papel e de tênis. Naquele dia, uma novidade da cartola do gênio.

– Ele foi muito simpático no vestiário, cumprimentou todos nós e nosso roupeiro, o Vitorino, estava descascando uma laranja. Ele pediu uma, quando ele jogou, dominou no peito e começou a brincar com a “bola”. O Vitorino olhou, comentou: “se ele faz isso com a bola pequena, imagina lá dentro com a bola grande?” – lembra Nival, que se formou em advocacia e hoje é contador.

Naquela noite no estádio napolitano, Beto brilhou. O ex-jogador do America fez dois gols – e pode contar para todo mundo que empatou com Maradona naquele dia. Contou, aos risos, a brincadeira de seu companheiro Amarildo, que encarava aquela partida, como todos os outros, como grande oportunidade de chegar a um clube da Europa ou da Itália, grande mercado do futebol àquela altura.

– No segundo gol, Amarildo me abraçou e falou: “pronto, você está vendido, está vendido” – lembrou.

Amarildo abraça Beto no segundo gol do atacante — Foto: Arquivo pessoal

Amarildo abraça Beto no segundo gol do atacante — Foto: Arquivo pessoal

O empresário de Beto era Pedrinho Vicençote. O atacante americano já vinha sendo assediado na viagem, com clubes buscando informações. Depois da excursão, não demorou muito e foi negociado para o União da Ilha da Madeira de Portugal.

– Eu era um jogador forte, possante, bom no mano a mano. Foi um dia para guardar para o resto da minha vida. Lembro quando Maradona me cumprimentou antes do jogo. Eu gelei.

Apreensão de Ferrari e noitada com Careca

A temporada de 1990/1991 de Maradona pode ser encarada como a última em alto nível do craque no futebol mundial. Foram 19 gols em 1990 – depois disso, distribuiu poucos gols por temporada. Quatro em 1991, mais quatro em 1992, três em 1993, dois em 1994 (um deles, contra a Grécia na Copa do Mundo), mais três em 1995 e dois em 1996 e outros dois em 1997, já na despedida pelo Boca Juniors. As informações são do site Futdados.

Sem Maradona, suspenso na parte final da temporada, o Napoli terminou em oitavo lugar no Campeonato Italiano. Foi até a semifinal da Copa da Itália e caiu cedo na Copa da Uefa, mas ainda conquistou a Supercopa da Itália

Clima era hostil no retorno de férias depois da Copa — Foto: Reprodução "Jornal dos Sports"

Clima era hostil no retorno de férias depois da Copa — Foto: Reprodução “Jornal dos Sports”

Os episódios fora de campo – aos quais Maradona atribuía a perseguição contra o Napoli e contra si – se acumulavam na Itália. Com sua Ferrari, ele foi parado na estrada de Florença a Bolonha para a pré-temporada napolitana. Não era a primeira vez que o carrão rendia abordagens da “polizia” – durante a Copa, o irmão Raul foi parado e Diego comprou a briga em Trigoria, cidade próxima à capital italiana.

Uma escapada para boate com o amigo Careca também levou a novas críticas sobre comportamento da imprensa italiana. O craque tentava recuperar a forma física e havia emagrecido quatro quilos antes do jogo com o America. Os gols e jogos a partir dessa temporada não foram à toa.

Maradona foi punido – uma sanção sem precedentes, destaca o documentário “Diego Maradona”, lançado em 2019 – em abril de 1991. Foram 15 meses de suspensão por vestígios de cocaína em exame após jogo contra o Bari.

Já de volta à Argentina, em 1991, sem poder atuar, foi detido pela polícia de Buenos Aires por porte de drogas. Num espaço de seis anos, ficou fora mais da metade do período entre suspensões por doping – 30 meses ao todo – e retiro voluntário do próprio craque. Os americanos mal sabiam, mas viam ali, ao vivo e bem de perto, os últimos grandes momentos do craque em clube de futebol.  (Globo Esporte)