No dia 4 de junho de 2021, uma funcionária da CBF denunciou o então presidente da entidade, Rogério Caboclo, por assédio sexual e moral. A acusação, revelada pelo ge, detonou uma das maiores crises da história da entidade. O dirigente foi afastado do cargo dois dias depois e, desde então, passou a enfrentar novas acusações.
Mais de três meses após a denúncia, a funcionária quebra o silêncio nesta entrevista exclusiva ao ge, na qual revela a luta contra a depressão e detalha as motivações da decisão que tomou.
— É uma situação pela qual nenhuma mulher deveria passar em nenhum momento da vida. É uma dor que não acaba. É uma dor que hora nenhuma sai de mim. Hora nenhuma eu esqueço que ela existe. Está sempre presente, latente, em todos os momentos do meu dia — afirmou a mulher.
A funcionária, que voltou a trabalhar na CBF no dia 1º de setembro, afirma ter sido ameaçada por Rogério Caboclo e conta os detalhes da oferta de um acordo que recebeu – e recusou – para não fazer a denúncia. Na proposta, segundo o que relatou, ela teria que mentir a jornalistas sobre o caso, dizendo que nunca foi assediada pelo dirigente.
— A minha dignidade não tem preço. Porque eu fiquei pensando nas mulheres que viriam depois de mim. Era inaceitável proteger um assediador.
Procurado, Rogério Caboclo negou que tenha cometido assédio e reafirmou, como fez ao longo de todo esse caso, ser vítima de uma armação política. A nota enviada por sua defesa está reproduzida na íntegra ao final desta reportagem.
No total, são três mulheres que afirmam ter sido assediadas por Rogério Caboclo. O segundo caso, revelado em 9 de agosto, foi o da ex-funcionária que relatou assédio no voo para Madri, em depoimento ao Ministério Público. O terceiro caso foi publicado em 20 de agosto e incluiu também acusações de agressão.
Rogério Caboclo está afastado desde junho pela Comissão de Ética da CBF. Depois do afastamento provisório, o órgão suspendeu Caboclo por 15 meses. Pela decisão, que precisa ser ratificada pela Assembleia Geral da CBF (composta pelos 27 presidentes de federações estaduais), o dirigente poderia voltar à entidade em setembro de 2022, antes do fim do seu mandato, em abril de 2023.
Em 3 de setembro, Caboclo fez um acordo com o Ministério Público do Rio para não ser denunciado por assédio sexual e moral. Ele pagou R$ 100 mil. O dinheiro será doado a uma entidade que atua no combate à violência contra a mulher e outra que cuida de animais abandonados.
No último dia 6, Caboclo foi afastado da CBF por um ano pela Justiça do Trabalho (até setembro de 2022).
Desde o dia 25 de agosto, a CBF é comandada por Ednaldo Rodrigues, ex-presidentes da Federação Bahiana de Futebol.
Leia abaixo a entrevista:
ge: Como está sua vida depois de ter tornado público o que você sofreu?
Funcionária da CBF: – Minha vida está uma bagunça. Uma parte minha está muito feliz de estar de volta ao trabalho. A CBF tem sido a minha casa há mais de nove anos. Mas, por outro lado, ter vivido essa situação é uma dor que não tem tamanho. É uma situação que nenhuma mulher deveria passar em nenhum momento da vida. É uma dor que não acaba. É uma dor que hora nenhuma sai de mim. Hora nenhuma eu esqueço que ela existe. Está sempre presente, latente, em todos os momentos do meu dia. É sempre essa mistura de sensações em todos os momentos do meu dia.
Como você está de saúde?
– Estou me tratando, continuo fazendo tratamento com psiquiatra. As crises de ansiedade diminuíram. Eu realmente tenho melhorado, tenho me cuidado, tentado me exercitar mais. Ser um pouco mais tranquila.
Que tipo de problemas você teve?
– Eu tive muitas crises de pânico. Muitas. Principalmente porque eu sofri muitas ameaças do Rogério Caboclo. Ele mandou um carro na porta da minha casa, [tive a] sensação de estar sendo seguida. Ele mandou invadir meu computador, minha conta bancária. A sensação de pânico, de medo, de ameaça. Eu não me sentia segura em lugar nenhum, em nenhum momento do dia. Eu não conseguia dormir sem ajuda de remédio. Realmente precisei de um tratamento mais pesado. E agora estou diminuindo esse tratamento para conseguir ter uma vida mais normal.
De onde você tirou forças para fazer o que fez?
– Foi um processo. Eu fui ficando doente ao longo desse período todo em que eu trabalhei com ele. Fui sofrendo os assédios, e eles foram escalonando. Fui tendo crises de choro no trabalho, crises de nervoso. Eu ia chorar no banheiro, ia vomitar no banheiro de nervoso. Eu ficava tensa, chegava em casa chorando. No dia seguinte eu acordava e pensava: não vai ser tão ruim, eu preciso desse emprego. E eu chegava no trabalho e era pior. Então aquilo foi me deixando doente. Em algum momento eu pensei: eu vou morrer. A minha depressão chegou a um nível que eu pensei: eu vou morrer. E aquilo foi acabando comigo, aquela sensação de não conseguiu respirar, de não conseguir viver a minha vida. E ali eu precisei tirar uma licença. Foi quando eu realmente decidi tomar uma atitude.
Quanto tempo durou esse processo?
– O Rogério desde o primeiro momento já ultrapassou o limite comigo. Desde a primeira viagem, para Luque, no Paraguai. E ele nessa viagem fez comentários a respeito do meu corpo. Eu achei que aquilo não cabia numa relação de patrão-empregado. Nessa mesma viagem, ele passou a madrugada ligando para o meu quarto, eu não atendi. Eram comentários a respeito da minha vida pessoal, a respeito da minha vida amorosa. E aquilo foi aumentando com o passar do tempo, quando eu me tornei assessora dele, e com o aumento do consumo de bebida alcoólica também. Ele fazia comentários sobre a minha vida sexual, ele literalmente me perguntava com quem eu transava. Era uma coisa muito absurda. E foi piorando, piorando.
Na denúncia que fez à Comissão de Ética da CBF você menciona uma reunião de diretoria…
– Por conta da pandemia, um dos colegas da CBF estava precisando de um local para morar, porque a mãe dele era do grupo de risco. Na minha casa tinha um espaço, então eu o convidei para morar comigo. Antes que isso virasse um boato dentro da CBF, resolvi contar para o Rogério. Mas expliquei que não tinha nenhum envolvimento, que era unicamente uma situação de moradia. Eu não sei se num momento de ciúmes, não sei o que aconteceu, ele chama todos os diretores que estavam na casa para a sala dele, me coloca no meio de uma roda de homens, ali, dos diretores, e começa um discurso sobre “a nossa querida funcionária agora está noiva de fulano”. E me constrange ali, me humilha, me ridiculariza na frente de todo mundo. Uma situação inventada. Era uma situação temporária para proteger a mãe de um colega de trabalho.
O que ele poderia querer com isso?
– Eu acho que era me ridicularizar. Acho que essa era a única intenção dele, me usar como motivo de piada.
Você já tinha reclamado do comportamento dele antes?
– Sim, eu sempre falava para ele deixar minha vida pessoal em paz, que não ficava à vontade para responder esse tipo de pergunta. Eu não gostava que ele entrasse nesses assuntos. Eu desconversava, interrompia para falar de assuntos de trabalho. Eu deixava claro que aquele tipo de situação não me deixava confortável.
Em que momento você demonstrou mais insatisfação?
– Foi depois do episódio do biscoito de cachorro. A gente estava em São Paulo, tinha tido uma série de reuniões em São Paulo. E ele começou a fazer comentários sobre um determinado diretor da CBF. Ele falou para mim: “Você vai contar pro fulano”. Eu falei: não vou contar para ele. “Vai sim, você é a cadelinha do fulano”. Eu falei: não sou. No que eu comecei a falar, ele começou a latir para mim. Eu fiquei em estado de choque, não consegui nem falar. Nisso, ele vai para a cozinha, volta com um saco de biscoito de cachorro, tira um biscoito do saco e me oferece. Eu fiquei completamente sem reação. Eu comecei a juntar minhas coisas para ir embora. Nisso, o telefone dele toca, ele sai para atender. Eu pego minhas coisas e vou embora. Arrasada, destruída, nunca tinha me sentido tão humilhada, desrespeitada, em toda a minha vida. Nunca tinha sido chamada de cadela em toda a minha vida.
O que aconteceu depois disso?
– No dia seguinte, eu fui confrontá-lo a respeito desse episódio. E ele começa a falar que não ia mais falar da minha vida pessoal. Mas que, se ele não falava da minha pessoal, ninguém mais poderia falar também. Que eu não poderia mais ser amiga de ninguém dentro da CBF. Que eu não poderia mais sorrir para ninguém. E também eu ia ter que mudar a forma de me vestir. Minha forma de me portar lá dentro. Que eu ia ter de fazer luzes no cabelo, ia ter de colocar cílios postiços. E aí eu perguntei: mas espera aí? Você está me punindo por uma coisa que você fez?
E como ele reagiu?
– Ele disse: “Não, mas você vai ter que mudar”. Eu fiquei incrédula com aquilo. O que eu entendo ali é que, uma vez que me impus naquela relação, ele quis mostrar ainda mais poder sobre mim. Mais poder. Ele quis se mostrar dominante. Não só como meu patrão, mas como homem também, né? Me dominar como mulher mesmo, uma vez que tentei me impor me mostrando desrespeitada. Ali eu fiquei arrasada. Como que pode uma pessoa ter essa cabeça? Ele era assim, autoritário, nunca deixou ninguém criticá-lo, nunca deixou. Ele ameaçava mesmo todo mundo que tentava criticar qualquer ação dele.
Você tinha medo dele?
– Eu tinha medo dele. Eu tinha muito medo dele.
Do que você tinha medo?
– Ele ameaçava todo mundo. Em um determinado momento, ele mandou ameaças através de pessoas em comum. Ele falava: “Eu sou um homem de R$ 100 milhões. Quem ela pensa que é? Uma noite de sono a menos na minha é um dia a menos de vida para ela”. Ele mandou carro na porta da minha casa, o carro dele, para ficar me vigiando. Eu tinha medo da minha integridade física. Enquanto eu trabalhava com ele, tinha medo de ficar sozinha com ele, após esses acontecimentos. Eu tinha medo.
Ele afirma que vocês tinham uma relação de amizade.
– Não tínhamos relação de amizade. Rogério era meu patrão, eu era empregada. Eu era educada, cordial, afinal de contas ele era meu patrão, mas era só isso. Eu não tenho esse tipo de conversa nem com meus amigos mais íntimos. Ele era meu patrão e só. Nunca fomos amigos.
Você já sabia de outros casos em que ele tinha agido assim com funcionárias?
– Enquanto eu trabalhava com ele, não. Eu soube depois.
Como você tomou a decisão de gravar essas situações?
– Não foi uma coisa pensada. Foi num momento de pânico mesmo, de defesa. O dia dessa gravação na verdade foi a segunda parte da conversa. A primeira parte ele me chama para o jardim de inverno, uma sala anexa à sala dele, um lugar escuro, já era noite, por volta de oito ou oito e meia da noite. Ele me fala para sentar no sofá, me oferece vinho, eu nego. Ele pede para tirar a máscara, eu invento que tive contato com alguém com Covid-19 e não tiro. Ele começa uma conversa esquisita. Ele fala que ele tem o contato de umas duzentas… Aí ele fala: “duzentas, não, mas umas vinte” prostitutas no celular dele. Eu acho aquela conversa esquisita, sem cabimento, meio com segundas intenções. Eu tento arrumar uma desculpa para voltar para minha sala, ele não deixa. No que ele vai ao banheiro, eu pego meu celular e peço ajuda a dois diretores para tentar interromper aquela reunião. Vem um diretor, interrompe, eu volto para a minha sala. Não dá dois minutos, ele pede para me chamar de volta. E aí eu entro em pânico. Eu não posso ficar sozinha com esse homem. Ele está fora de si. Eu não sei o que fazer. E aí, num momento de autodefesa mesmo, eu entro gravando.
É a conversa em que ele pergunta se você se masturba?
– É aquela conversa…O que me assusta é que a primeira coisa que ele fala é “você pediu ajuda dele”. Ele mesmo percebe que eu precisava de ajuda. Ele estava já com esse comportamento predatório, que percebe que eu precisava de ajuda. Porque a primeira coisa que o próprio Rogério fala é “você pediu ajuda dele”. E ele começa a entrar no assunto da vida sexual dele com a esposa, usando termos chulos para falar dos órgãos genitais dele e da esposa. Tenta entrar na minha vida sexual. Eu peço para deixar minha vida particular em paz. Ele continua falando e insistindo. Até que ele pergunta se eu me masturbo. Nisso me dá um pânico [começa a chorar]. Gente, meu Deus, como? Como que o meu patrão me pergunta isso? O que eu faço? [Eu digo] “Vou chamar teu motorista”. E saio correndo dali. Pego minhas coisas e saio correndo. Eu literalmente saio correndo.
Para você foi o limite?
– Esse foi o limite. Continuei ainda trabalhando um tempo, mas ali piorou tudo. Eu tinha muito medo de ficar sozinha com ele. Muito medo. Eu chegava em casa com dor no corpo de tão tensa que eu ficava com o corpo todo rígido ao ficar sozinha. Eu ia para o banheiro vomitar de nervoso, ou chorar de nervosismo. Foi horrível.
A partir dali você tira uma licença?
– A partir dali, passado pouquíssimo tempo, eu tiro uma licença.
O que você fez nessa licença?
– A partir daí eu tentei refletir um pouco e pensei: eu vou lutar pelo meu trabalho. Eu pensei: quero que ele saia. Eu estou há tanto tempo da CBF, eu gosto tanto de lá, gosto do meu trabalho, eu batalhei tanto por ele. Eu não posso perder a minha dignidade, sair com a cabeça baixa, e ele continuar lá. Eu decidi batalhar por isso.
Vocês disse a ele que tinha gravações e pediu para ele sair?
– Exatamente. Eu pedi para ele sair da presidência da CBF. Ele se recusou a sair da presidência e em troca me ofereceu uma indenização para comprar um apartamento. Ofereceu um curso na Europa com todas as despesas pagas e me ofereceu uma promoção dentro CBF para um cargo de gerencia, para ficar lá até me aposentar. Só que eu não tinha a menor condição de continuar trabalhando na CBF com aquele homem que me dava uma sensação de terror só de pensar em estar ao lado dele novamente.
Você falou diretamente com ele?
– Não. Foi através de um interlocutor, porque eu não queria mais ter contato com ele. Pedi para esse interlocutor fazer o contato.
E o que Rogério Caboclo respondeu?
– Ele respondeu que não sairia. E aí voltou com a oferta de indenização para eu comprar um apartamento, um curso na Europa com todas as despesas pagas e o cargo de gerente até me aposentar.
Nesse momento você ainda não tinha advogado?
– Não. Quando ele volta pedindo para eu continuar a trabalhar, vejo que não tem condições de trabalhar com ele. Aí contrato advogados, que falam com os advogados dele para tratar da minha saída da CBF de uma forma formal.
Por que você se recusou a fazer algum acordo?
– A partir dessa oferta que foi feita, eu falei: não tem condição de eu continuar trabalhando com ele. Aí meus advogados, com os advogados dele, chegaram a um acordo para tentar minha saída da CBF. Só que ao negociar esse acordo, o Rogério Caboclo fazia pedidos absurdos, que eu nunca aceitaria. Ele pedia pedia que eu desse declarações na imprensa, inclusive a você, Gabriela Moreira, ao Paulo Vinícius Coelho, ao Lauro Jardim, ele nomeava algumas pessoas, dizendo que eu nunca fui assediada. Pedia especificamente para eu falar “nunca fui assediada” e que eu tinha me afastado da CBF exclusivamente por problemas familiares. E eu falei para meus advogados: depois de tudo o que eu passei, depois de tudo o que eu sofri, depois dessa violência toda, eu não vou dar nenhum tipo de declaração mentirosa para ninguém. Não vou, me recuso. Eu vou fazer isso e ele vai fazer isso com outras mulheres. Ele não vai comprar a minha mentira.
E aí você fez a denúncia?
– A partir daí desandou tudo. A minha dignidade não tem preço. Porque eu fiquei pensando nas mulheres que viriam depois de mim. Era inaceitável proteger um assediador. A partir dali eu pedi para os meus advogados redigirem a denúncia. Isso foi na quarta-feira (dia 2 de junho), se eu não me engano. Chegou na sexta-feira (4 de junho) a advogada do Rogério pediu mais uns dias. “Espera até segunda-feira, vamos tentar ainda, continuar um acordo”. Chegou sexta-feira e eu falei não, esquece, não tem acordo, não vou assinar nenhum acordo com esse cara. Não vou assinar, me dá a denúncia que eu vou entrar agora na Comissão de Ética e no Compliance. E foi o que eu fiz.
Antes disso, você avaliou a possibilidade de aceitar?
– O acordo em si obviamente tinha a cláusula de confidencialidade, para eu não fazer a denúncia. Isso por si só já me doía. Eu sabia que ia ser muito doído fazer a denúncia. Eu sabia que viria um processo muito doloroso, uma exposição muito grande para mim, para minha família. Aquilo ali já não estava me fazendo bem. Já ia me doer muito. Mas mentir era uma coisa que eu não aceitava. Estava muito, muito, muito além dos meus limites éticos. Então foi a gota d’água.
A Comissão de Ética da CBF concluiu que não houve assédio, que foi conduta inapropriada. Como você avaliou essa decisão?
– Doeu muito essa decisão da Comissão de Ética. Porque foi assédio, sim. Eu entrei com recurso e tenho esperança de que vão rever isso, vão aplicar uma pena mais dura vão rever esse conceito.
Rogério Caboclo afirma, desde que o caso se tornou público, que isto é parte de uma trama política para tirá-lo do poder. O que acha disso?
– Isso é uma tentativa de desviar do principal assunto, que é o assédio. Ele não se vê como assediador e fica o tempo todo se vitimizando. Para mim é só uma tentativa de desviar do real crime que é o assédio sexual dele.
Ao longo desse processo, você se aconselhou com alguém da CBF ou com alguém que não fosse da sua família ou seus advogados?
– Não, não tive a influência de ninguém. Lógico que tenho amigos dentro da CBF, tenho a minha família. Mas a decisão foi unicamente minha. Até porque a consequência é toda minha minha, a exposição é minha. A decisão foi toda minha.
Se não houver aumento da pena e nem novas punições, Rogério Caboclo pode voltar a ser presidente da CBF antes do fim do mandato. Pode voltar a ser seu chefe. Como você lida com essa possibilidade?
– Eu me recuso a aceitar essa possibilidade. Eu acredito que a Comissão de Ética vai aumentar, sim, a pena dele. Tem outros casos na Comissão de pessoas que tiveram a coragem de denunciar depois da minha denúncia. Eu penso nos patrocinadores. Será que eles vão ter coragem de continuar o patrocínio a uma entidade liderada por um assediador? Os jogadores e jogadoras vão querer entrar em campo por uma entidade liderada por um assediador? Eu preciso acreditar nisso, ter esse pensamento positivo, de que ele não volta, de que o mundo de hoje não aceita esse tipo de conduta. Eu preciso acreditar que ele não volta.
Um diretor da CBF disse ao Ministério Público que recebeu ordens de Rogério Caboclo para grampeá-la e invadir o seu computador. Como você lidou com isso?
– Ele continuou me atacando, mandou ameaças, revirou minha vida. Ele procurou tudo. Ele tentou invadir minha conta bancária. Mandou gente na empresa que era da minha mãe ver se tinha alguma coisa errada. Ele tentou revirar minha vida para achar qualquer coisa que tivesse de errada. Eu fiquei muito assustada. Tive crise de pânico, crises de medo. Ainda estou tentando superar isso aos poucos. Na verdade, até tive, ao voltar agora para a CBF, uma pessoa do TI [Tecnologia da Informação] foi mexer no meu computador por uma coisa boba e me serviu como gatilho. Alguém mexer no meu computador foi um gatilho para uma crise de ansiedade. Estou superando os traumas que ele me causou ao longo desse período.
Você afirma na denúncia que queria resgatar a sua dignidade. Você acha que conseguiu?
– Ainda não. Apesar de receber todo o apoio, todo o carinho durante esse tempo todo. Eu acho que o primeiro passo para conseguir resgatar essa dignidade vai ser uma punição justa pra ele nesse processo na Comissão de Ética. Depois desse primeiro passo, o caminho ainda vai ser longo. Mas esse primeiro passo precisa ser dado.
Você tem noção de que denunciou o homem mais poderoso do futebol brasileiro, um dos mais poderosos do futebol mundial?
– Ainda não tenho muito essa noção. Acho que vou ter essa ideia uma vez que essa minha ação começar o efeito em cadeia e refletir em todas as áreas mesmo do futebol. E a gente ter essa mudança de verdade. Aí vou começar a entender melhor se realmente fez diferença.
Na denúncia você relata que alguns diretores da CBF sabiam da situação. Você esperava uma conduta de maior proteção por parte deles?
– É muito difícil, né? As atitudes de assédio moral eram presenciadas por todos e vividas por todos. Mas é muito difícil denunciar o presidente da CBF. Todo mundo tinha muito medo dele, de alguma retaliação dele. Eu, os diretores, todo mundo tinha muito medo dele. Qualquer punição ao presidente da CBF é muito difícil de ser aplicada, uma vez que você precisa de aprovação quase unânime da Assembleia. Esse sistema da CBF é muito complicado, né? Se ele não conseguia nem ser criticado, imagina denunciá-lo. A retaliação seria enorme. Realmente não tinha como.
Você poderia ter sido protegida por alguém?
– No caso especifico do assédio sexual, pouquíssimos sabiam. Os que souberam, eu contei em caráter sigiloso e pedi especificamente para eles não tomarem nenhuma atitude. Eu não estava pronta para lidar com aquilo naquele momento. Eles prontamente falaram: “O que você quiser fazer, a gente faz, a gente está com você, a gente está junto nisso”. Eles foram incríveis, os pouquíssimos que souberam dos episódios. E no momento em que eu estive pronta para lidar, eu lidei da minha forma. Agora que estou de volta, eles estão me ajudando. Estão me apoiando, me ajudando a retomar as atividades lentamente, no meu tempo também. Não posso reclamar, eles estão sendo incríveis.
Que conselho você dá para mulheres que estão passando pelo que você passou?
– Denunciem seus assediadores. Não vai ser fácil, é doloroso, mas procurem se apoiar. Procurem fazer uma rede de suporte mesmo. Denunciar é a única forma de quebrar o ciclo e proteger futuras vítimas. De novo: não é fácil. Não é fácil mesmo. Denunciem os assediadores. É a única coisa que eu realmente aconselho. É a única forma de quebrar esse ciclo.
Valeu a pena?
– Valeu a pena. Houve momentos difíceis [chora], em que eu pensei em desistir. A minha irmã teve que juntar os pedacinhos de mim. Literalmente me carregar nas costas. Mas eu acho que valeu [chora]. Eu acho que vale a pena lutar pelo que eu acredito. E estar aqui hoje de cabeça erguida, lutando pelo que eu acho certo. Lutando pra não ter mais vitimas, lutando pelas mulheres. Lutando pela mulher trabalhar no futebol, que é um mundo masculino, machista. Um esporte tão amado pelas mulheres também. Não foi fácil, mas valeu, sim. Faria tudo de novo, desde o início.
Rogério Caboclo já pediu desculpas?
– Não. Não me pediu.
Se você estivesse cara a cara com ele, o que você diria?
– Não tem desculpa o que você fez. Eu não conseguiria ficar cara a cara com ele. Se conseguisse… Não tem desculpa. Não foi só a mim que você magoou. Mas as cicatrizes vão ficar em mim são pra vida inteira [chora]. E isso não tem desculpa, isso não tem cura. Isso não vai parar de doer. Não vai parar. Vou carregar para sempre essa bagagem na minha vida. Isso não tem desculpa, não tem perdão.
Como foi o seu retorno ao trabalho?
– Foi emocionante voltar para a CBF. Eu fui muito bem recebida por todos os colegas, pela diretoria, pelo presidente [interino] Ednaldo [Rodrigues]. O melhor momento foi quando uma funcionária me abraçou e falou que a vida dela mudou depois da minha denúncia. Ela falou que a partir daquele momento a atitude dela em relação a tudo mudou. Ela não baixa mais a cabeça para ninguém, a partir dali. Aquilo me tocou de uma forma diferente. Saber que uma coisa que fiz empoderou alguém dessa forma me deixou assim particularmente feliz.
O que precisa mudar na CBF e nas relações entre homem e mulher no futebol brasileiro?
– Eu acredito que é o momento de assédio ser tratado como assédio. Não dá mais para assédio ser tratado como brincadeira, como piada, como frescura, como mimimi. Não dá mais para a gente passar pano para assediador, para comportamentos predatórios em relação a mulheres. Assédio é assunto sério e precisa ser tratado como tal.
Nota do presidente da CBF, Rogério Caboclo
O presidente da CBF, Rogério Caboclo, afirma que nunca cometeu qualquer tipo de assédio, o que foi provado perante a Comissão de Ética, inexistindo qualquer pendência perante a Justiça Criminal, estando ele quite em ambos em relação a essa acusação. Ele pediu desculpas públicas à funcionária por ter usado palavras deselegantes, ditas num contexto de amizade, que ela mantinha com ele e sua família.
Rogério Caboclo esclarece que nunca determinou a violação de sigilo do computador ou de contas da referida funcionária e nem promoveu nenhuma reunião ou a intimidou. O motorista da empresa que foi visitar a funcionária declarou em depoimento ter sido duramente repreendido pelo presidente por seu ato.
O presidente da CBF lamenta que esse episódio esteja sendo deturpado e utilizado com fins políticos. Quem quiser compreender o que ocorreu deve ouvir na íntegra todas as conversas – e não apenas parte delas, sob pena de ser enganado. Caboclo nunca demonstrou nenhum tipo de interesse que não fosse profissional em relação à funcionária. E nem ela alega isso em sua denúncia.
Sobre a negociação com a funcionária, a iniciativa não partiu de Caboclo. Já foi exposto publicamente que uma terceira pessoa procurou o presidente da CBF trazendo uma proposta financeira. Caboclo rejeitou o acordo. A denúncia contra ele foi protocolada horas após a recusa, quase três meses depois da data da gravação apresentada.
As denúncias contra Rogério Caboclo já foram julgadas e retornam à imprensa justamente às vésperas das decisões que definirão seu destino imediato dentro da CBF e também com a proximidade de negociações de contratos vultosos da entidade, outrora negociados pelos antigos gestores da CBF. (Globo Esporte)