Longe vai o tempo narrado por Drummond em “Cidadezinha qualquer”, poema inserido em Alguma Poesia de 1930:
“Casas entre bananeiras// mulheres entre laranjeiras// pomar amor cantar// Um homem vai devagar.// Um cachorro vai devagar.// Um burro vai devagar.// Devagar… as janelas olham.// Eta vida besta, meu Deus.”
Vida besta, mas no ritmo exato de seu tempo. Portanto, lógica; logo, sábia.
Hoje, por conta do avanço tecnológico, aquele tempo do poema está em extinção. Sob a égide da pressa, chegamos em um tempo em que as informações e as emoções delas advindas não nos vêm mais a galope, nem mesmo a jato; isso tudo ficou lento. Elas nos chegam em tempo real por meio da interatividade das mídias, incluindo todos os formatos das redes sociais. Por isso, o tempo de matutar, p. ex., sobre uma informação está encerrado. Se no passado podia-se ter uma “vida besta” por conta da vagarosidade do tempo, hoje, temos uma vida bestial motivada – também, mas não apenas – pelo oposto da lentidão de outrora.
O preâmbulo acima, leitor, é para dizer que, enquanto eu ainda matutava sobre as bestialidades nazistas do ex-secretário de Cultura do governo Bolsonaro, um novo agente seu expôs outra aberração.
O bolsonarista da vez – à semelhança de seu chefe maior – é Benedito Guimarães Aguiar Neto, reitor da faculdade particular Mackenzie. Ele foi nomeado no último dia 24 como o novo presidente da CAPES (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), responsável pelos mestrados e doutorados brasileiros.
Como outros bolsonaristas, eis mais um cristão. Até aí, nenhum problema. Todavia, segundo a Folha de São Paulo, “no ano passado, Aguiar Neto anunciou que o Mackenzie ampliaria estudos do design inteligente – uma roupagem contemporânea do criacionismo, que advoga natureza teológica da origem do universo… ‘Design inteligente’ tem sido o termo usado nas discussões que advogam a abordagem do tema na educação. Para seus defensores, o darwinismo seria insuficiente para explicar a origem da vida”.
Na mesma reportagem, é dito que Aguiar Neto, também no ano passado, afirmou:
“Queremos colocar um contraponto à teoria da evolução e disseminar que a ideia da existência de um design inteligente pode estar presente a partir da educação básica, de uma maneira que podemos, com argumentos científicos, discutir o criacionismo”.
Argumentos científicos para discutir o criacionismo? É sério?
As dúvidas que exponho surgem porque o “design inteligente” pretendido por Aguiar Neto é mero fruto de suas crenças, que estão na contramão da “Intelligentsia” brasileira, formada pela maioria dos que fazem a educação e a cultura nossas. Por isso, Aguiar Neto parece almejar a morte da CAPES, que vive sob a dinâmica das reflexões, não da fé. Detalhe: as universidades são como a cabeça de um corpo. Sem cabeça, exceto a mula dela desprovida, um corpo não se sustenta.
Em outras palavras, a postura de Aguiar Neto – de origem medieval – parece querer asfixiar a reflexão acadêmico/científica experimentada, contextualmente, por intelectuais sérios, desde antes dos marcos cronológicos da lentidão da vida besta daquela “cidadezinha qualquer”.
Diante da extemporaneidade da proposta de Aguiar Neto, sinto saudades dos seres do poema de Drummond. Inteligentemente, todos iam devagar, fossem aonde fossem. De todos, sinto mais saudades do burro. No compasso de seu trotear, vejo-o, com suas ancestrais e legítimas linhas inteligentes, seguindo no ritmo exato de seu tempo.
Que lição!
ROBERTO BOAVENTURA DA SILVA SÁ é professor de Literatura na UFMT e doutor em Jornalismo pela USP.