A vitória do São Paulo sobre o Santo André por 1 a 0, com futebol ainda sem brilho, devolveu a Rogério Ceni um controle que parecia estar prestes a perder no clube. Menos pelo que se viu em campo, mais pelo que se ouviu quando o jogo já tinha terminado.
Se antes o treinador enfrentava risco de demissão e havia dispersão de apoio no São Paulo, essa adesão agora converge na direção de Ceni, ídolo histórico do clube como atleta, mas que, na figura de técnico, enfrenta resistências nas arquibancadas e em setores do Morumbi e do CT da Barra Funda.
Essas divergências diminuíram após a entrevista de Rogério na quarta à noite, em que expôs, de forma mais clara do que o habitual, problemas estruturais do São Paulo.
Citou a piscina do CT, esvaziada há anos, que encontrou como depósito de mesas e cadeiras quando no clube procurava-se respostas para a infindável sequência de lesões no ano passado. Ainda nesta seara, contou sobre atletas lesionados há semanas que deixam a Barra Funda às “13h45” quando, em sua época, treinava de manhã, à tarde e à noite para voltar a campo.
– Meu relacionamento com jogadores, funcionários… Eu conheço os mesmos porteiros e o pessoal da cozinha há 20 anos. Cumprimento todos, trato bem todos. Tem departamento que precisa melhorar mesmo. Quando eu cheguei não tinha água na piscina, tinha cadeira e mesa. Eu sou o cara chato que pediu para colocar água na piscina – disse Ceni.
Nesse sentido, admitiu que possa ser alvo de reclamações por se colocar no papel de quem cobra para que o modelo são-paulino, um dia tido como exemplar, volte a funcionar. Mas negou insatisfações generalizadas que o coloque à beira de um motim.
– Então são ajustes e cobranças que geram insatisfação porque a pessoa tem que trabalhar por mais tempo. Eu penso no melhor para o clube – desabafou.
Entre torcedores, as declarações emprestaram ao técnico Rogério, com números raquíticos nessa atual passagem, a credibilidade que o ex-goleiro Rogério cultivou por anos no único clube que defendeu. Tornou-se o homem ideal para chacoalhar e tirar da inércia aqueles com poderes para acelerar mudanças necessárias.
As demonstrações de apoio surgiram antes da entrevista, porém.
Dentro do Morumbi, Rogério recebeu talvez o maior acolhimento desde o retorno ao comando do São Paulo, em outubro. Diante do Santo André, o setor ocupado pelas organizadas – que recentemente vetaram a presença do treinador numa reunião por causa de um elogio feito por ele à torcida do Flamengo – aplaudiu Ceni e reviveu a música dos tempos de goleiro: “O, ôôô… Goleiro artilheiro, recordista tricolor… MITO”.
Rogerio Ceni durante treino do São Paulo — Foto: Fellipe Lucena / saopaulofc
Nem quando a maior parte do estádio vaiou o time, na saída para o intervalo, este setor específico reclamou da equipe. Para tentar abafar o protesto pelo então placar de 0 a 0, gritos de incentivo.
– Fico feliz por ser alguém que sempre tentou fazer o melhor. Sempre é positivo quando você é aplaudido e tem o nome gritado. Agradeço de coração a manifestação do torcedor – afirmou Ceni, aproveitando a virada no ambiente.
Na diretoria, que antes relatava incômodo com as constantes cobranças públicas do treinador, as respostas de quarta-feira tiveram efeito semelhante.
Cartolas afirmam não terem se sentido alvos das palavras atiradas pelo treinador. Creem que elas acertaram outras pessoas, essas também na mira da cúpula tricolor, o que uniu interesses.
Desde antes de sua eleição, há pouco mais de um ano, o presidente Julio Casares afirma ter como meta a “refundar” a Barra Funda. Trata-se da intenção de trocar parte do pessoal que dá expediente no CT. Os departamentos de saúde (médico, fisiologia, etc.), prioritariamente.
Rogério Ceni acena para a torcida do São Paulo — Foto: Marcos Ribolli
As afirmações do ex-goleiro criam uma janela de oportunidade à atual gestão, que não encontrou ainda momento propício para alterar uma estrutura marcada por apadrinhamentos num clube cujas decisões mais importantes são tomadas por apenas 260 conselheiros.
Segundo uma fonte ouvida pelo ge, esse grupo de funcionários exerce influência demasiada sobre decisões da diretoria e, de acordo este relato, vem interferindo em mudanças de comando do futebol há cerca de 10 anos.
Não à toa as menções de Ceni à piscina, ferramenta para recuperação de atletas, e o horário reduzido no tratamento de lesões.
– Penso no melhor no clube, com um período a mais de tratamento, disponibilizar condições para voltar mais rápido. Talvez, eu incomode esses departamentos – disse Ceni na entrevista.
O treinador indicou que não pretende propor uma trégua.
– Entendo que um ou outro possa estar insatisfeito. Em relação a funcionários eu tenho relação boa há 30 anos. Agora, quando você está com pessoas que exijam cobrança, alguns vão ficar insatisfeitos.
A postura de Ceni baixou a temperatura do caldeirão que parecia pronto para receber o treinador em água fervente.
Após o Brasileiro, com o São Paulo salvo do rebaixamento na penúltima rodada, o técnico se rebelou e exigiu reforços para permanecer em 2022. Cinco jogadores foram contratados, e na primeira entrevista do ano, antes do Paulista, Ceni cobrou mais.
Foi um episódio, entre outros, que gerou irritação na diretoria, antes dona do discurso de que o São Paulo não teria condições de investir para a temporada – uma mudança de rota para satisfazer Rogério e o coordenador Muricy Ramalho, autor de um áudio, depois vazado, em que criticava a letargia dos cartolas.
Soma-se a isso os resultados ruins dessa passagem atual – um aproveitamento de 43,1%, apenas –, e o caminho parecia mais próximo de uma demissão do que de uma reconciliação.
Ao ver o treinador se indignar com um setor que a incomoda, a diretoria se sentiu respaldada a acelerar as trocas que deseja, mas não consegui fazer. A reação da torcida, de se reaproximar do técnico, também cria uma barreira àqueles que antes já estimulavam uma troca no comando.
O destino de Rogério Ceni continuará atrelado primordialmente aos resultados – ou à falta deles, regra básica do futebol. Mas o treinador deu um passo importante para se afastar dos agravantes. (GE)