O raiar de 2020 soava esperançoso para o Football Club Riograndense. O clube centenário de Rio Grande, no sul do Rio Grande do Sul, tinha tudo pronto para voltar às competições oficiais após longos 15 anos de interrupção.
Um sonho tão perto e também cada vez mais distante, que dá lugar à incerteza sobre o futuro da temporada no futebol do interior gaúcho.
O Rio Grande do Sul completa 100 dias sem jogos nesta terça-feira, mesma data em que o consórcio de imprensa contabiliza mais de 51 mil vidas dizimadas pela Covid-19.
A pandemia do coronavírus espalha pânico por todo mundo e traz como efeito colateral uma ameaça à sobrevivência dos clubes em todo o Estado. E às quase 3 mil famílias que dependem do futebol para sobreviver.
O GloboEsporte.com e a RBS TV iniciam uma série de reportagens sobre os 100 dias de paralisação quase total no esporte no Estado. E começa pelo impacto dos mais de três meses sem partidas oficiais para 42 clubes que disputam as três divisões do Campeonato Gaúcho, à exceção da dupla Gre-Nal.
O Decreto 10.282, de 20 de março de 2020, do Governo Federal, não lista o futebol como um dos setores essenciais à sociedade em meio à pandemia do coronavírus.
Contudo, só no Rio Grande do Sul, ele dá emprego direto a cerca de 3 mil pessoas e injeta quase R$ 6 milhões mensais na economia gaúcha nos meses de competição. Após a parada, 876 pessoas perderam o emprego no futebol gaúcho, conforme levantamento feito com os clubes pelo GloboEsporte.com (veja tabela abaixo).
– Eu não sei o que é melhor. Eu quero que tenha futebol. Principalmente para buscar um meio de que os atletas, que as famílias tenham renda. Hoje o que me preocupa é o que vai acontecer com esses atletas meio ano sem trabalhar – afirma o presidente do Lajeadense, Alexandre Stebben.
Em todo o Brasil, o esporte mais popular do país emprega 150 mil pessoas e injeta R$ 52,9 bilhões na economia – o que representa 0,7% do total do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro. É o que aponta um estudo encomendado pela CBF à consultoria Ernst & Young.
Negócio futebol
Gauchão | Divisão de Acesso | Segunda Divisão | Total | |
Empregados | 1.594 | 633 | 732 | 2.959 |
Cortes/”liberações” de pessoal | 147 | 106 | 623 | 876 |
Empregados com contrato pós-pandemia | 1.447 | 527 | 109 | 2.083 |
Gastos com folha salarial (35 clubes do interior) | *R$ 3,7 milhões | R$ 1,24 milhão | R$632 mil | R$ 5,57 milhões |
*Sem contar a dupla Gre-Nal
O GloboEsporte.com ouviu dirigentes de todos os recantos do Estado. Mesmo por telefone, o temor pelo futuro da Divisão de Acesso e da Segunda Divisão (nome dado à terceira divisão) dá o tom a cada palavra dita sobre o enfrentamento à crise. O desejo de fazer futebol impera. Mas ninguém ousa dizer como isso será possível.
“A gente tem que tomar o cuidado de não colocar a vontade de voltar o futebol à frente da coerência e da razão. É uma hipótese (Guilherme Eich, diretor de futebol do Avenida)
Como sobreviver
Mudam as cidades, as cores e os clubes. Só não muda a realidade de cada uma dessas equipes, envoltas em sacrifícios ano após ano para manter o futebol – mesmo antes da pandemia. Um mundo à parte mesmo no cenário estadual na comparação com a elite, em que os times já ensaiam um retorno gradual aos treinamentos.
Os 100 dias sem futebol são vividos sem futebol ao pé da letra, com estádios fechados e mantidos apenas por fiéis funcionários remanescentes – e até por um ou outro jogador. Sem jogos, não há bilheteria, patrocínio ou cotas de publicidade. Não há receita para manter vivas as engrenagens já fragilizadas dos clubes.
Com futebol parado, dirigentes são responsáveis por cuidar do Vermelhão da Serra, do Passo Fundo — Foto: Arquivo Pessoal
Na Divisão de Acesso, a maioria das equipes usou a Medida Provisória 936 para suspender contratos por dois meses após a interrupção da competição. Alguns estudam ampliar o período de suspensão.
Outros recorrem ao sistema bancário e contraem dívidas para manter contas em dia. Cruzeiro e Bagé, por exemplo, chegaram a se desfazer de seus elencos e reduziram suas estruturas.
“Queremos jogar, porque a gente acredita que pode subir. Só que a realidade nos liquida. Mata nosso sonho. Ele cai por terra”. (Tato Moreira, presidente do Guarany de Bagé)
A situação na Segunda Divisão é ainda pior. Os 16 clubes não haviam registrado os contratos de atletas, comissão técnica e funcionários antes da suspensão da competição. E não o fizeram depois disso, claro. Das 732 pessoas que trabalhariam nos meses de disputa do campeonato, apenas 109 têm contratos ativos.
O Três Passos já anunciou a desistência da competição. União Harmonia e 12 Horas cogitam fortemente abrir mão da disputa em 2020. O tradicional Rio Grande afirma que só vale a pena retomar o campeonato se houver aporte da Federação Gaúcha de Futebol (FGF).
– Eu diria que não vale a pena continuar. Se a FGF não bancar, não vejo como ter a competição. Não tenho receita para manter o clube hoje, imagina alimentação, hotel, ônibus. Eu preciso disputar, até pelo título de mais antigo do Brasil. Nem que seja com o sub-17. Por outro motivo, eu diria não ao campeonato com portões fechados – afirma Marco Antônio Coutinho, presidente do Rio Grande.
Paradoxalmente, os clubes da última divisão estadual se mostram mais propensos a ter futebol sabe-se lá quando no segundo semestre. Dos 16 participantes, 11 garantem que estão a postos. Muitos têm acordos de palavra com atletas para a retomada.
Na Divisão de Acesso, nove clubes já admitem que suspender a edição atual e começar do zero é uma hipótese a ser pensada e cada vez mais próxima da realidade. Quem bate o pé pela retomada, invariavelmente, também bate o pé para que os portões sejam abertos.
“O ideal seria suspender e voltar no ano que vem. O futuro dos clubes está nas nossas mãos. Não adianta pensar e jogar num semestre e no fim comprometer a vida do clube” (Ademir Stein, presidente do Igrejinha)
Barreiras para a retomada
O desejo de retomar as competições esbarra nas questões financeiras e nos protocolos para jogos em meio à pandemia do coronavírus. A maioria dos clubes depende das receitas de bilheteria e de sócios para sobreviver. Elas equivalem, em média, a 50% do faturamento desses clubes.
A volta dos campeonatos sem público corta pela raiz a principal fonte de renda do futebol do interior. De quebra, muitos clubes já utilizaram recursos de patrocinadores, publicidade e cotas da FGF. Os contratos com os parceiros estão suspensos até a volta do Gauchão.
Além disso, as regras para o controle do contágio do coronavírus impõem mais gastos com hotel – dada a limitação de dois atletas por quarto – e ônibus para deslocamentos, para evitar aglomerações. Os alojamentos dos atletas nas respectivas cidades também teriam de passar por mudanças de capacidade.
– O dano é irreparável. Se os grandes clubes estão no limite, o que podemos deixar para as pequenas agremiações? Eu vejo com muito pessimismo. A situação é bastante grave. Não tenho a caneta para assinar empréstimos e ajudas econômicas, e não sei também se o governo teria – afirma o secretário de Esporte e Lazer do Rio Grande do Sul, Francisco Vargas.
Grêmio Bagé disputa a Divisão de Acesso — Foto: Guilherme Borba/Derby Comunicação/Divulgação
Uma alternativa discutida entre os clubes é alterar o formato de disputa e regionalizar as competições para encurtar deslocamentos. Há quem defenda que a fórmula atual é inviável para remontar elencos, com muitos jogos num espaço curto de tempo.
Dirigentes da Segunda Divisão também pedem ampliação no limite de atletas amadores inscritos.
Tudo isso será discutido nesta terça-feira, justamente o dia em que o Rio Grande do Sul completa 100 dias sem jogos. Uma reunião pode definir o futuro da Divisão de Acesso e da Segunda Divisão.
E o Riograndense mantém o sonho de voltar a competir após 15 anos.
– (A parada) Dá uma quebrada, mas a gente não se assusta – diz o presidente Paulo André.
Uma frase de alento. Para o clube e para o futebol do interior. (Globo Esporte)