Mesmo em meio à devastadora pandemia da Covid-19, a assertiva “macunaímica”, de 1928, registrada por Mário de Andrade de que os males do Brasil são “pouca saúde e muita saúva” foi trocada, dias atrás, pela máxima “muita cachaça e pouca oração”, enunciada pelo Papa Francisco.
Em tom de brincadeira, surpreendendo “a deus e o mundo”, o pontífice disse essas palavras a um sacerdote da Paraíba, que lhe pedia a bênção em nome do povo brasileiro; e o Papa ainda disse que o nosso país “não tem salvação”.
Mais do que rápido, pelas redes sociais, começaram as respostas à galhofa papal. Em uma delas, houve quem registrasse que “Mal sabe o papa que o problema do Brasil é justamente o povo que ora, não o que bebe!”
Pelo sim, pelo não, o fato é que, desde a primeira missa no Brasil (26/04/1500), celebrada por Henrique de Coimbra, um rosário sem-fim de oração é o que mais tem sido empurrado goela abaixo de nós todos. Quem duvidar, ligue a TV e brinque com o controle remoto na busca de algo que lhe satisfaça. Mas já aviso: há de se ter muito controle emocional para não arremessar o remoto à parede, tantos são os canais de orações, principalmente daqueles tipos tão bem identificados por Gilberto Gil na inteligentíssima música “Guerra Santa”:
É claro que, infelizmente, nos embriagamos mais com as orações do que com as cachaças produzidas para tal
“Ele diz que tem… como abrir o portão do céu// Ele promete a salvação// Ele chuta a imagem da santa, fica louco-pinel// Mas não rasga dinheiro, não// Ele diz que faz… tudo isso em nome de Deus// Como um Papa na inquisição//…Promete a mansão no paraíso// Contanto, que você pague primeiro// Que você primeiro pague dinheiro//…Ele pensa que faz do amor sua profissão de fé// Só que faz da fé profissão// Aliás em matéria de vender paz, amor e axé// Ele não está sozinho não…”
Nessa mesma perspectiva poética da percepção do oportunismo de inúmeros religiosos, mas bem antes das tais “orações” invadirem nossos lares, via satélite, a “Canção do Exílio” do poeta modernista Murilo Mendes – em paródia à antológica e homônima “Canção do Exílio” do romântico Gonçalves Dias – confirma a perturbação social provocada por muitos oradores que, assim como os pernilongos, desde sempre, não respeitam o espaço público:
“Minha terra tem macieiras da Califórnia… A gente não pode dormir// com os oradores e os pernilongos…”.
No mesmo plano, e mais que depressa, o cantor e compositor Boca Nervosa – sambista à lá Dicró, Bezerra e Moreira, ambos da Silva – respondeu a Francisco com o seguinte samba:
“ O Papa falou que o Brasil não tem mais solução// Disse que é muita cachaça pra pouca oração// Santidade, eu descordo do que o senhor tá falando// No Brasil, ‘nós bebe’ cachaça, mas oferece pro santo// Tá certo! Em todo canto tem um cachaceiro// Mas nosso povo brasileiro sempre foi gente de fé// Vai na Igreja, no Centro Espírita// Jura em Umbanda, Mesquita, Budismo e Candomblé, mas todos com a sua fé// Depois do culto, da oração e do compromisso com a fé// Aí é de lei tomar uma lá no bar do Zé// Sem esquecer da fé”.
Como não discordo do Boca Nervosa, possivelmente analogia à antonomásia “Boca do Inferno”, do poeta baiano Gregório de Matos (1636-96), até pelo contrário, invoco, outra vez, o santo nome poético do também baiano Gilberto Gil, que, na música “Se eu quiser falar com Deus”, dimensiona, como poucos, o grau da submissão de nosso povo a Deus, a começar pela forma como, desde a infância, aprendemos a orar:
“Se eu quiser falar com Deus/ Tenho que ficar a sós/ Tenho que apagar a luz/ Tenho que calar a voz/…Tenho que folgar os nós/ Dos sapatos, da gravata/ Dos desejos, dos receios/…Tenho que ter mãos vazias/ Ter a alma e o corpo nus…// Tenho que aceitar a dor/ Tenho que comer o pão/ Que o diabo amassou/ Tenho que virar um cão/
Tenho que lamber o chão/ Dos palácios, dos castelos/ Suntuosos do meu sonho/ Tenho que me ver tristonho/ Tenho que me achar medonho/ E apesar de um mal tamanho/
Alegrar meu coração…”
Aliás, verdade seja dita, essa submissão, que se parece com algo próximo da embriaguez, já havia sido tratada também no magnífico poema “O padre passa na rua”, do modernista Carlos Drummond:
“Beijo a mão do padre/ a mão de Deus/ a mão do céu/ beijo a mão do medo/de ir para o inferno/ o perdão/ de meus pecados passados e futuros/ a garantia de salvação…”
Ao me recordar desse poema drummondiano, como não lembrar também de “Procissão”, outra genialidade de Gilberto Gil, que compara nosso povo, quando participa de procissões, com as cobras, que se arrastam pelo chão:
“Meu divino São José/ Aqui estou em vossos pés/ Dai-nos chuva com abundância, meu Jesus de Nazaré// Olha lá vai passando a procissão/ Se arrastando que nem cobra pelo chão/ As pessoas que nela vão passando/ Acreditam nas coisas lá do céu/ As mulheres cantando tira o versos/ E os homens escutando tira o chapéu/ Eles vivem penando aqui na terra/ Esperando o que Jesus prometeu…”
E a produção poética sobre esse tema é absolutamente tão abundante quanto rica nas reflexões sobre a postura, via de regra, submissa, logo, inebriante, de nosso povo no que tange à oração devotada ao um ser que se acredita onipresente, onisciente e onipotente.
Em contrapartida, de fato, pra não dizer que não falei da cachaça, ela também nos é marca registrada. Aliás, ultimamente, um segmento musical que beira o lixo em termos composicionais, usa e abusa da apologia ao álcool, mas em especial às cervejas, patrocinadoras, por excelência, dos principais espaços onde o produto (no caso, a música) é consumido. O aumento do consumo do álcool é obviedade nacional que dispensa comentários.
Seja como for, da cachaça propriamente dita, me recordo, a título de ilustração, de duas canções, eu diria que precursoras das composições mais atuais. Ambas se tornaram conhecidas por meio de duas vozes femininas (Elizeth Cardoso e Inezita Barroso), em momentos sociais em que o machismo era quase uma ordem natural a ser seguida.
Na voz de Elizeth, por décadas, o país cansou de cantar a seguinte composição de João do Violão e Luiz Antônio:
“Eu bebo sim/ s’tô vivendo/ Tem gente que não bebe/ E s’tá morrendo// Tem gente que já s’tá com o pé na cova/ Não bebeu e isso prova/ Que a bebida não faz mal/ Uma pro santo, bota o choro, a saideira/ Desce toda a prateleira/ Diz que a vida s’tá legal…”
Nesse verdadeiro “hino ao inebrieante”, há de se notar o respeito ao santo. O cachaceiro, como já nos lembrou acima o Boca Nervosa, ao oferecer “uma pro santo”, demonstra sua mais pura forma de oração; quiçá, menos farisaica dos que já se consideram eleitos pra ocupar um lugar à direita de Deus Pai…
Por sua vez, em 1953, Inezita imortalizou a “Marvada Pinga” ou (Moda da Pinga), de Ochelsis Laureano, cantada inicialmente por Raul Torres, em 1937:
“Com a marvada pinga/ É que eu me atrapaio/ Eu entro na venda e já dou meu taio/ Pego no copo e dali num saio/ Ali memo eu bebo, ali memo eu caio/ Só pra carregar é que eu dô trabaio…// O marido me disse, ele me falo:/ Largue de beber, peço por favô/ Prosa de homem nunca dei valô/ Bebo com o sor quente pra esfriar o calô/
E bebo de noite é pá fazê suadô…”
Ilustrações postas, vem a pergunta: como um povo, o que nos inebria mais, a cachaça ou a oração?
Ainda que a disputa seja acirrada, ouso dizer que o Papa perdeu essa. É claro que, infelizmente, nos embriagamos mais com as orações do que com as cachaças produzidas para tal; até porque, como nos lembram duas músicas acima citadas, devemos pôr na balança também cada gole de cada cachaceiro oferecido ao seu santo. Isso, repito, é um genuíno e típico modo de oração à lá brasileira, que não pode ser desprezado.
E justamente porque a oração sempre se sobrepôs à cachaça, é que me junto ao cantor/compositor Luiz Melodia, que na canção “Pra quê?”, apresenta seu sonho sobre seu povo:
“Só queria que todos tivessem comida/ Tivessem oportunidade, tivessem guarida/ Não precisassem rezar pedindo melhores dias/ Reclamando migalhas, vivendo só de agonia…”
ROBERTO BOAVENTURA DE SÁ é doutor em Jornalismo e professor de Literatura da UFMT.