Não se discute a importância das datas comemorativas colocadas no calendário anual como o dia das crianças, das mães, dos pais, da pátria, dentre outras. Mas, muitas vezes perdido no burburinho das festas, presentes e comemorações, as necessárias discussões que estas datas demandam ficam perdidas, esquecidas e, por vezes, relegadas.

Passado, portanto, o dia das crianças neste mês de outubro, proponho uma discussão necessária sobre o que é ser crianças nos dias atuais.

Tenho pensado muito sobre isso ultimamente. Ser criança nos dias atuais em que os espaços de interações, de convívio estão reduzidos, sejam eles domésticos ou institucionais, em que os pais e/ou cuidadores estão sobrecarregados e com seu tempo comprometido com outras demandas do mundo contemporâneo, em que a família ampliada, sejam os avós, parentes ou vizinhos já estão pouco inseridos na dinâmica familiar, em que a vida comunitária sofre uma profunda alteração e a rua que era lugar de brincadeiras se transforma num lugar de passagem. Ufa!!! Quantas mudanças nas últimas décadas!!

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Não se abre aqui o debate filosófico, sociológico, econômico, dentre outros, que nos levaram a estas mudanças, mas simplesmente reconhecê-las como um dado posto e que precisamos saber lidar com elas na contemporaneidade. E nesta temática indagar se estas mudanças podem gerar algum tipo de consequência no processo constitutivo dessas crianças.

Muitos estudiosos da área de desenvolvimento infantil apontam que o alimento ao pleno desenvolvimento infantil passa necessariamente no fornecimento às crianças de oportunidades de interações sociais, que são encontradas nos âmbitos familiar e escolar, como forma de favorecer desde o processo de aquisição da linguagem, desenvolvimento da inteligência com consequentes ganhos cognitivos.

É necessário ao adequado processo de desenvolvimento infantil criar as condições para que as crianças desenvolvam suas tarefas diárias num ambiente que favoreça a concentração, pois se trata de uma etapa fundamental no desenvolvimento das funções executivas.

Muitos autores destacam que em estudos longitudinais foram encontradas associações do bom desempenho do QI de crianças de seis meses até treze anos que usufruíram de um adequado comportamento dos pais no processo de interação familiar com atitudes desde cumprimentos com carinhos e beijos, elogios à criança e apresentação de respostas às suas indagações; é notória a importância do envolvimento dos pais e/ou cuidadores nas brincadeiras dos filhos.

Outro dado interessante levantado em pesquisa é que crianças entre um e três anos que assistem televisão podem ter o desenvolvimento da atenção prejudicada, e ainda obter baixa pontuação em mensurações cognitivas.

Na contramão das conclusões científicas, e isso se revela urgente levantar para o debate, é o fato de que vivemos um período de uso excessivo de meios eletrônicos, o que alguns autores denominam de intoxicação eletrônica, que tem cada vez mais implicado em menores interações familiar entre pais e filhos e também outras interações sociais na medida em que muitas vezes as crianças deixam de brincar ao ar livre com outras crianças, abrindo mão daquilo que realmente necessitam dentro de seu processo de desenvolvimento, para mergulharem em jogos eletrônicos e programas televisivos.

Portanto, se a criança apresenta um contexto de dificuldades de interações sociais, ou não está inserida num contexto que favoreça estas trocas sociais seu ganho cognitivo pode se encontrar prejudicado. Observa-se que o amadurecimento neural e a interações sociais são importantes combinações que influenciam no desenvolvimento da linguagem da criança.

Diferentes pesquisas norte-americanas já observam que a tecnologia tem afetado a aprendizagem. As pesquisas vêm indicando que o uso em excesso compromete o pensamento crítico e as habilidades de análise, como também contribui para menos leitura. A leitura desenvolve o vocabulário, a imaginação e a indução, habilidade fundamental para resolver problemas mais complexos.

No meio acadêmico existem ainda diversas pesquisas que constatam que a exposição excessiva às telas traz prejuízos ao sono, aprendizado e memória. De acordo com os pesquisadores, o sono das crianças, como também o desempenho cognitivo verbal são afetados.

Nota-se, facilmente, amparado em pesquisas científicas, a vulnerabilidade infantil e seus efeitos nocivos advindos nestes novos contextos da contemporaneidade.

Atualmente, notadamente na classe média (as classes sociais mais pobres será assunto para outro dia), se observa uma grande procura por atividades que preencham o dia das crianças com excessivas atividades extracurriculares e interações com a tela, deixando de lado, em contrapartida, as brincadeiras, os encontros, os beijos e abraços, os desentendimentos infantis com o aprendizado daí decorrente, enfim, das possibilidades mil de criar algo em conjunto que nutra, que fortaleça, que amadureça, que eduque.

Seria fácil remar contra a maré, acredito que não! Necessário refletir e procurar outros caminhos, acredito que sim!

E será que estes novos caminhos não passaram em muitos caminhos que nós pais já trilhamos na nossa infância, quando se tinha mais tempo para brincadeiras, para afagar e receber o carinho e atenção dos pais, avós, parentes, quando reuníamos a criançada da rua, os primos e amigos para jogos coletivos permeados pelas primeiras descobertas e experiências que nos ajudaram na nossa formação como crianças saudáveis e cidadãos que almejam o bem comum?

 

*GISELLE L. P. NUNES  é mãe, psicóloga, mestranda pelo programa de pós graduação em saúde coletiva UFMT, pós graduanda em avaliação e diagnóstico psicológico pela PUC-MG.