Os braços cruzados à beira do gramado, o terno impecável e o semblante sereno, como de alguém que assiste a um concerto musical, diz muito sobre quem é Hernán Jorge Crespo, técnico do São Paulo. Aos 45 anos, o treinador argentino não faz o estilo extravagante e impulsivo durante as partidas. Longe disso. Ele mantém uma frieza pouco comum entre os “hermanos” e quase nula nos mais emblemáticos técnicos brasileiros.

O sangue latino corre nas veias em temperatura mais baixa desde os tempos de atacante, quando mantinha a calma para ser letal dentro da área. Não à toa fez sucesso na América do Sul, na Europa e na seleção da Argentina.

Quando está ali parado, observando seus comandados em campo, Crespo revisita o passado e repete o que fazia nos seus tempos de jogador: luta pelas vitórias com inteligência e muita tática, segundo relatos de quem trabalhou ao seu lado.

Nesse ritmo, Crespo deu leveza para um São Paulo pressionado pelos oito anos e cinco meses sem títulos. Algo que ele mesmo tem a chance de colocar um fim a partir desta quinta-feira. Tricolor e Palmeiras começam a decidir o Paulistão às 22h, no Allianz Parque. O jogo da volta, no Morumbi, será às 16h do próximo domingo.

Natural de Florida, uma cidade na província de Buenos Aires, Hernán Crespo começou a carreira profissional no River Plate, em 1993. Após ganhar a Libertadores da América em 1996, ele rumou à Europa, mais precisamente para o Parma, da Itália, onde começou a aprimorar as suas habilidades táticas. Elas iriam ser primordiais anos mais tarde…

O ex-atacante trabalhou com grandes treinadores, como Carlo Ancelotti (no Milan) e José Mourinho (na Internazionale). Em cada atividade realizada, ele não se limitava só a escutar. Absorvia as lições táticas e dividia com os companheiros que tinham mais dificuldades.

– Eu me lembro que nos treinos de tática ele a todo momento cooperava com o treinador, principalmente com pessoas que não entendiam o italiano. Essas coisas de posicionamento, enfim… Acho que ele sempre teve dentro dele esse instinto de treinador, e isso está refletindo hoje – contou o ex-goleiro Julio Cesar, companheiro de Crespo na Inter de Milão campeã do Italiano da temporada 2008/09.

– Lembro uma vez ele falando com o Ibrahimovic e explicando algumas movimentações de ataque. Então você via ali que ele já tinha isso dentro dele – acrescentou o goleiro, que defendeu a seleção brasileira nas Copas de 2006, 2010 e 2014.

CÉREBRO

A inteligência de Crespo é algo lembrado por praticamente todas as pessoas ouvidas pelo ge que tiveram a oportunidade de jogar ou conviver com o argentino. A leitura de jogo e a forma de se posicionar em campo serviram de bagagem para que ele desempenhasse a função de treinador.

Por isso, quando está ali, de braços cruzados, analisando a partida, – gesto que se repetiu nos 19 jogos do São Paulo na temporada – Hernán Crespo na verdade está tentando fazer aquela mesma leitura de jogo que era habitual na sua carreira.

– Idêntico. Ele não mudou nenhum fio. Tanto como treinador como jogador. O perfil que ele passa na beira do campo é exatamente aquilo que ele fazia dentro de campo. Era o que ele gostaria de fazer dentro de campo – disse Cafu, campeão da Supercopa da Itália pelo Milan ao lado de Crespo, na temporada 2004/05.

Kaká também compartilha admiração pela inteligência de Hernán Crespo. O ex-meia da seleção brasileira serviu como guia para o argentino na chegada ao São Paulo e se orgulha do início de trabalho do colega no clube do coração.

– Como são-paulino, tenho acompanhado e vejo essa inteligência dele em articular, em como se entender e se inserir no ambiente, trazendo isso para a liderança dele como treinador – analisou o pentacampeão mundial com a seleção brasileira.

Kaká apresentou o Morumbi a Crespo após a contratação do treinador - Rubens Chiri/saopaulofc.net
Kaká apresentou o Morumbi a Crespo após a contratação do treinador – Rubens Chiri/saopaulofc.net

O relato de Kaká se transporta para fora das quatro linhas. Mais do que dirigir, Crespo desde o princípio quis conhecer o que é o São Paulo. A presença do coordenador Muricy Ramalho, sempre próximo no dia a dia, auxilia nesse quesito.

A própria decisão da comissão técnica, de usar escalações reservas na Libertadores, passa pelo conhecimento adquirido por Crespo sobre o São Paulo, em alguns meses de trabalho. O argentino trabalha ciente do contexto são-paulino, no qual há a urgência para findar o jejum de títulos.

– Ele sabe quais são as limitações e quais são as virtudes, seja do time, do elenco ou da capacidade que ele enxerga nesse time do São Paulo – complementou Kaká, que atuou com Crespo no Milan da temporada 2004/05 e acompanhou o argentino desde o primeiro dia no Morumbi.

PERNAS

Após ganhar praticamente tudo como jogador, o argentino deu início à carreira de técnico em 2014, nas categorias de base do Parma, clube da Itália que o projetou no início da carreira. Apesar do nome mundialmente conhecido, Crespo não quis se aventurar a iniciar na nova função em um clube grande. A ideia era gradativamente subir os degraus da profissão.

O primeiro clube profissional foi o modesto Modena, da Itália, cujas principais conquistas são os troféus da Série B italiana das temporadas 1937/38 e 1942/43. No dia 26 de março de 2016, no entanto, Crespo foi demitido após três derrotas seguidas e a 18ª posição na segunda divisão.

O sonho de ser treinador parecia que chegaria ao fim ali mesmo. Sem sucesso na breve trajetória como técnico, ele retornou ao Parma para ser vice-presidente do clube. Foram pouco menos de dois anos na função e nenhuma amostra de que um dia pudesse reassumir treinos em centros de treinamentos. Pelo menos não publicamente.

Crespo teve sua primeira experiência como treinador na base do Parma, da Itália - Valerio Pennicino/Getty Images
Crespo teve sua primeira experiência como treinador na base do Parma, da Itália – Valerio Pennicino/Getty Images

Em fevereiro de 2018, Hernán Crespo encontrou o preparador físico Alejandro Kohan em um evento na Europa e contou ao compatriota que desejava retornar ao comando técnico. Kohan disse que, se ele decidisse por isso, estaria junto no próximo clube. E foi o que aconteceu.

No dia 19 de dezembro de 2019, Crespo foi anunciado pelo Banfield, da Argentina. A partir dali, o treinador se firmaria e chegaria ao São Paulo em 2021. Antes, em 2020, levou o Defensa y Justicia, também da Argentina, ao título da Copa Sul-Americana.

No Tricolor, clube de maior expressão de Hernán Crespo como técnico até o momento, ele logo caiu nas graças da torcida com um futebol ofensivo e de variações táticas. Em 19 jogos, são 12 vitórias, cinco empates e apenas duas derrotas. A equipe é finalista do Campeonato Paulista e está classificada às oitavas de final da Copa Libertadores da América.

O início promissor deve-se a aspectos do trabalho diário no CT da Barra Funda, segundo relatos de pessoas do clube. É praticamente unanimidade como a intensidade dos treinamentos impressiona quem acompanha as atividades.

São exercícios estimados em 1h30, duração nem tão elevada, mas com muita exigência. Há treinos inclusive nas manhãs dos dias de jogos, algo já abraçado pelo elenco. Antes das partidas, Crespo ensaia o time e promove ajustes finais, geralmente levado para o nível competitivo horas mais tarde.

– A intensidade no treino é absurda, nunca vi nada igual. Você vê nos jogos como a equipe consegue manter a pegada no primeiro e no segundo tempo.Todo treino é muito forte. Você acaba se acostumando com isso. Chega em campo e fica até mais fácil – afirmou Igor Vinicius, lateral-direito do São Paulo

– Se você treinar 60% ou 40%, você vai ter complicações se quiser dar 100% no jogo, isso é o que ele fala sempre para a gente. Todo treino pede 100% para chegar no jogo e estar acostumado a fazer as ações – acrescentou o jogador, que viu os próprios números subirem desde a chegada de Crespo (são dois gols e seis assistências, em apenas 12 jogos).

Hernán Crespo comanda treino no São Paulo às vesperas da final do Paulistão - Rubens Chiri / saopaulofc.net
Hernán Crespo comanda treino no São Paulo às vesperas da final do Paulistão – Rubens Chiri / saopaulofc.net

Tricampeão brasileiro pelo Tricolor como técnico, em 2006, 2007 e 2008, Muricy Ramalho reconhece o bom desempenho de um treinador no dia a dia. Foram anos de CT da Barra Funda pedindo intensidade e muito trabalho em suas atividades aos jogadores.

Agora como coordenador técnico, ele pode acompanhar o trabalho de Hernán Crespo como espectador. O ex-treinador não dá pitacos em sistemas táticos e nem mexe em escalações, mas auxilia o atual comandante e tem gostado desse início.

– Os jogadores aceitaram bem esse trabalho. Infelizmente não dá para vocês verem, porque não se tem treino aberto mais. A comissão técnica do Crespo é muito competente, isso está criando um ambiente de muito trabalho, de muita disciplina aqui no CT. Isso faz a diferença. Nós temos a sorte de ver o treino e quando vai para o jogo, acontece igual – afirmou Muricy.

CORAÇÃO

E se não chegam as pernas, vai chegar o coração. Esse é o lema de Hernán Crespo desde que chegou ao São Paulo. A frase em espanhol “Donde no llegan las piernas va a llegar el corazón” virou um mantra no vestiário e passou até a decorar parte do local no estádio do Morumbi.

Além da inteligência tática e do trabalho físico do dia a dia, o treinador tenta mexer com o brio dos jogadores, buscando ao máximo atingir o coração de cada um, seja com uma declaração ou com gestos nos treinos e no convívio diário.

A forma de se comunicar com os jogadores e os profissionais do clube fez total diferença para que o trabalho fosse compreendido de uma forma rápida e os resultados aparecessem quase que instantaneamente. Relatos de quem convive com Crespo no CT da Barra Funda são de que, após sua chegada, o clima ficou leve e a pressão amenizada.

Assim como a leitura tática adquirida na época de jogador, essa facilidade de comunicação também vem desde os tempos em que estava dentro de campo. Nos vestiários, o argentino era conhecido como o agregador de elenco.

– Ele se comunica muito bem, um cara que sabe conduzir bem um grupo. Isso, dentro de um vestiário, em um grupo de atletas profissionais, é fundamental. Ter a gestão do grupo, saber o momento de cobrar, o momento de dar a possibilidade dos atletas darem seu máximo. Acredito que ele tem uma sensibilidade muito grande – comentou o ex-lateral-esquerdo Serginho, companheiro de Crespo no Milan.

Hernán Crespo ganha homenagem no vestiário do Morumbi - Felipe Espindola / saopaulofc.net
Hernán Crespo ganha homenagem no vestiário do Morumbi – Felipe Espindola / saopaulofc.net

– Um cara que, na minha opinião, do que vi e convivi, de pouco holofote. Eu acho que isso é um fator primordial para que ele possa manter um ambiente saudável e agradável, isso é importante. Ele faz com que as pessoas que estão ao lado dele se sintam importantes dentro de um contexto geral – acrescentou Julio Cesar.

E para melhorar a comunicação e fazer se entender de uma forma mais clara e precisa, Hernán Crespo iniciou aulas de português logo depois que soube que trabalharia no São Paulo. No seu tempo de Itália, ele fez questão de aprender o idioma para entender tudo o que os treinadores pediam.

Sem má fase: a história de Crespo no futebol

Hoje, do outro lado, ele sabe que aprender a língua irá facilitar em diversas ocasiões, seja com os atletas ou até mesmo com a imprensa. O esforço de Crespo é reconhecido e recebe elogios de quem observa como torcedor e de quem já conviveu com ele.

– Esse fato dele querer falar o português, de entender, fala muito sobre ele. Aí eu destaco novamente a inteligência dele, de um cara diferenciado que chega em um lugar e quer aprender a língua, quer se inserir no ambiente e no local que ele está e não fazer o país dele, mas sim fazer com que o Brasil seja o país dele. Não transformar o Brasil do jeito que ele acha que deve ser – comentou Kaká.

Ainda é cedo para fazer qualquer prognóstico sobre o sucesso que Hernán Crespo terá no futebol brasileiro e na sua carreira de técnico. É fato, porém, que o argentino mostra uma personalidade pouco habitual nos dias de hoje, onde a pressa pelos resultados atropela processos e pouco se observa sobre o que rodeia um profissional.

– Hernán é um ser humano com grandes valores de vida. É raro, neste futebol tão louco, ver uma pessoa com tantos valores, preocupado com quem está ao seu redor, com a família, com quem trabalha com ele… Isso o faz uma pessoa muito maior, diferente de todos – finalizou Gustavo Nepote, preparador de goleiros da comissão técnica de Crespo e companheiro de mate do ex-jogador e treinador.

Conquiste ou não o título paulista no próximo domingo, Crespo tem um caminho longo pela frente no São Paulo. E tem tudo para ser vitorioso como técnico tanto quanto foi como atacante. (Globo Esporte)