Governos estaduais, concessionárias e clubes responsáveis por estádios usados na Copa do Mundo de 2014 ainda devem no mínimo R$ 1,5 bilhão em financiamento pelas obras. É o que aponta investigação do ge sobre os projetos prometidos para a Copa realizada no Brasil.
Para analisar o tamanho da conta, a reportagem analisou documentos sobre os empreendimentos esperados para o Mundial, pediu dados via Lei de Acesso à Informação para órgãos municipais, estaduais e federais, entrevistou dezenas de pessoas e consultou empresas públicas e privadas.
Passados oito anos (a abertura foi em 12 de junho de 2014), é difícil calcular o investimento geral nas promessas da Copa, especialmente diante de falhas de transparência, segundo especialistas. Mas a estimativa é de R$ 31,2 bilhões, incluindo projetos de infraestrutura, serviços e suportes, entre outros. Confira abaixo.
ESTÁDIOS EM ABERTO
O levantamento com base em dados da época da Copa e depois dela mostra que as obras dos estádios custaram mais de R$ 8,4 bilhões. O BNDES financiou parte disso (R$ 3,87 bilhões) via programa ProCopa Arenas, criado em 2010.
O banco estatal cobriria até 75% do valor de cada obra, com limite de R$ 400 milhões. Os responsáveis teriam até 15 anos para pagar a dívida, incluindo três anos de carência.
De acordo com o BNDES, todos os clientes se encontram adimplentes, e R$ 2,36 bilhões da dívida total foram pagos até maio deste ano. Assim, falta R$ 1,5 bilhão, com prazos finais variando entre outubro de 2026 e novembro de 2028.
Algumas operações foram suspensas temporariamente no início da pandemia da Covid-19, mas os pagamentos foram retomados, e os prazos finais dos contratos seguem os mesmos.
O Distrito Federal arcou sozinho com a construção do Mané Garrincha, ao custo de mais de R$ 1,4 bilhão, e não recorreu ao BNDES. Os dois casos em que as dívidas já foram totalmente quitadas são do Mineirão, que foi concedido à Minas Arena em 2010, e da Arena Pernambuco, administrada pelo governo estadual.
Governos estaduais assinaram o financiamento das obras de Arena da Amazônia, Arena da Baixada, Arena Fonte Nova, Arena Pantanal, Arena Pernambuco, Castelão e Maracanã. Os respectivos saldos devedores podem ser visualizados abaixo. O BNDES se declarou impedido de divulgar os saldos de Arena Corinthians, Arena das Dunas e Beira-Rio, com o argumento de que estão protegidos por sigilo empresarial, por serem contratos com entidades privadas.
Os estádios foram concluídos há anos, mas a conta ainda não foi paga. No caso da Arena da Baixada, o Athletico-PR teve em abril deste ano parecer favorável no Tribunal de Contas do Paraná na divisão dos custos com a prefeitura de Curitiba e o governo estadual. O clube registra R$ 490 milhões de financiamento da Arena em suas contas.
O Corinthians, por sua vez, indicou no início do ano que a sua dívida com a Caixa Econômica Federal pelo financiamento da construção da hoje Neo Química Arena era de R$ 569 milhões. As partes negociam a ampliação do tempo para o pagamento do financiamento. A Caixa é o agente financeiro de apoio indireto no contrato com o BNDES.
Além desses dois e do Beira-Rio, o Maracanã também é gerido por clubes — Flamengo e Fluminense controlam por meio de Termo de Permissão de Uso e aguardam nova licitação. Consórcios administram Arena das Dunas, Fonte Nova, Mané Garrincha e Mineirão. Já Arena da Amazônia, Arena Pantanal, Arena Pernambuco e Castelão seguem com o setor público.
ARENA PANTANAL
Na avaliação de Luis Fernandes, secretário executivo do Ministério do Esporte entre janeiro de 2012 e dezembro de 2014, a Matriz de Responsabilidades acabou englobando mais projetos do que os essenciais para a Copa, e isso gerou críticas ao custo geral. A inclusão era negociada entre os governos municipais, estaduais e federal.
— Entrou muita coisa que era efetivamente essencial, e outras coisas que eram oportunidades de geração de legado a partir da Copa, de estimular investimentos de estruturação de projetos necessários para cidade ou estado. Era como se tudo o que estava na Matriz fosse custo da Copa. Isso gerou na opinião pública uma reação negativa. Eu diria que, talvez, menos de um quarto do valor da Matriz fosse de obras ligadas diretamente ao Mundial — comentou Luis Fernandes, que coordenou os grupos executivos da pasta na reta final para a Copa.
A Receita Federal informou que o valor efetivo de renúncias tributárias para o período entre 2013 e 2015 foi de R$ 297 milhões. Se somadas as isenções de 2012, a conta sobe para R$ 355,79 milhões.
A Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) foi a responsável por fiscalizar as obras para o fornecimento de energia elétrica. A agência explicou em nota que não é possível estimar dentre as obras realizadas pelas concessionárias os valores daquelas ligadas à Copa do Mundo. Em 2014, o montante previsto era de R$ 1,7 bilhão.
Abaixo, o quadro comparativo entre o previsto inicialmente para os projetos em janeiro de 2011, o orçamento estimado no ano da Copa e o quanto foi investido até 2022.
FALTA DE CLAREZA
Cinco anos depois da publicação do relatório final de prestação de contas sobre a Copa, o ge solicitou à atual Secretaria Especial do Esporte, via Lei de Acesso à Informação (LAI), todas as versões da Matriz de Responsabilidades. Após prorrogar a resposta para além do prazo permitido pela lei, o órgão informou “que não foram encontrados quaisquer documentos, arquivos ou registros sobre a Matriz de Responsabilidades da organização da Copa do Mundo”.
Além da Matriz, outra forma de acompanhar na época os gastos com a Copa de 2014 era o site de transparência da Controladoria-Geral da União (CGU) sobre o tema. Esse portal saiu do ar em junho de 2018, com a justificativa de que isso já estava previsto em portaria (CGU nº 571 de 22/03/2010). Mas o texto não especificava a duração máxima do site.
A reportagem também pediu acesso aos dados da CGU sobre a Copa. O órgão compartilhou mais de 50 pastas, mas o material estava incompleto e com arquivos desaparecidos. Procurado nos últimos meses, o órgão não respondeu até o fechamento desta reportagem. Especialistas consideram que há falhas de transparência nos dois casos.
— Você ter uma política integral de acesso à informação significa manter a informação no ar. São várias falhas: retirar do ar quando não era necessário; responder o acesso ao banco de dados sem ser de maneira completa, com tutorial; e não dar esclarecimentos — explicou Fabiano Angélico, pesquisador da Universitá della Svizzera e autor do livro “Lei de Acesso à Informação: Reforço ao Controle Democrático”.
— No mínimo é um problema gravíssimo de gestão documental. Abre a possibilidade de alguém ser responsabilizado por violação da Lei de Acesso à Informação. Subtrair, destruir, inutilizar, desfigurar, enfim, dificultar informação que esteja sob a guarda do poder público é passível de punição. A lei nº 8159/1991 dá bastante ênfase que informações de interesse público não têm tempo de validade — diz a gerente de projetos da organização Transparência Brasil, Marina Atoji.
LEGADO EM DISCUSSÃO
Outros investimentos ficaram fora do levantamento do ge, como por exemplo centros de treinamento reformados ou construídos para possivelmente receber seleções durante a Copa-2014. A lista do Comitê Organizador Local na época trazia instalações fora das cidades-sede, e algumas delas receberam dinheiro público. Questionada sobre o assunto, a Secretaria Especial do Esporte não respondeu.
A CBF também prometeu construir Centros de Desenvolvimento do Futebol em 15 estados que não receberam jogos da Copa. Isso está sendo feito com parte do Fundo de Legado da Copa,da Fifa.
A confederação informou que R$ 146 milhões do Fundo foram investidos até aqui. O centro no Pará está perto de funcionar, obras estão em andamento em Rondônia e no Maranhão, e terrenos em outros sete estados foram comprados. O resto da verba vem sendo utilizado em iniciativas para categorias de base, futebol feminino, ações voltadas para médicos e unidades do Gol Brasil, projeto social da confederação.
— Não se organiza uma Copa do Mundo improvisando. Organiza com aquilo que já se tem, se faz se tiver os meios. Tínhamos engenharia e infraestrutura de turismo. O que podia ter sido feito era começar (as obras) com mais antecedência, três ou cinco anos, para reduzir os atritos com órgão de controle e fiscalização — disse o ex-ministro.
A Superintendência-Geral do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) ainda investiga indícios de conluio entre concorrentes de licitações das obras dos seguintes estádios: Arena da Amazônia, Arena das Dunas, Arena Pernambuco, Castelão, Fonte Nova, Mané Garrincha, Maracanã e Mineirão. O Cade recolheu para o Fundo de Direitos Difusos mais de R$ 111 milhões.
O Ministério Público Federal, por sua vez, teve entre 2009 e 2015 um grupo de trabalho dedicado à Copa, para fiscalizar a aplicação de recursos da União. A atuação se concentrou nas obras e serviços da Matriz de Responsabilidades. Relatório do MPF para o período entre 2013 e 2015 informou que a atuação do órgão, em conjunto com o TCU e a CGU, garantiu economia de R$ 600 milhões nas obras.
A Polícia Federal encaminhou à reportagem informações sobre ações ligadas à Copa entre 2007 e 2022. Destacam-se as operações “Panatenaico”, sobre problemas na construção do Mané Garrincha, a “Mão na Bola”, sobre desvio de dinheiro na Arena das Dunas; e a “Cartão Vermelho”, para investigar supostas irregularidades na Arena Fonte Nova.
O ge disponibiliza aqui o banco de dados sobre os empreendimentos para a Copa do Mundo de 2014, com acesso aberto ao público. (Com GE)