No filme, Coisas para se fazer em Denver quando se está morto, o personagem de Andy Garcia está em um lugar público, não me lembro se é um restaurante ou shopping center e, de longe, vê uma bela mulher sentada. Há muita gente em volta. Eles se olham e ele, controlando o clima de flerte e a tensão que acompanha esses momentos em que na abordagem deve se falar coisas adequadas e ter a atenção da mulher, caminha até o lugar em que ela está sentada. E ali se inicia um romance.

 

Lembrei-me dessa situação quando participei de uma pesquisa sobre escolha de parceiros em aplicativos de paquera. Os indivíduos abordam as mais diferentes mulheres e não existe no aplicativo a tensão e as dificuldades que envolve a interação face a face. Se expressar pelo aplicativo é bem mais fácil.

 

Será que a mesma comparação é possível de se fazer entre os grupos sociais de redes sociais online (RSO) e grupos presenciais?

 

A essência de um grupo social não é a proximidade física, mas a consciência de interação conjunta. Pessoas em um ponto de ônibus não formam um grupo, a não ser que iniciem uma interação social a partir de um interesse em comum.

 

Uma reclamação pelo atraso do ônibus, por exemplo, que faça com que todos iniciem uma conversação e decidam tomar alguma atitude. Este tipo de incidente pode transformar um agregado de pessoas em um grupo social.

Grupos são comparativamente estruturas sociais pequenas compostas de um ou alguns tipos de status sociais, ligações densas entre alguns desses status, e claras expectativas culturais sobre o que se espera que as pessoas façam. Podem ter a durabilidade de uma reunião ou de laços permanentes entre membros de uma família unida, por exemplo. Variam também de tamanho. Podem ser pequenos como o grupo de três amigos que se encontram para lanchar antes de um curso ou grande como o grupo de funcionários de uma empresa em algum evento.

 

Quando os grupos aumentam de tamanho, tendem a aumentar a impessoalidade, o que faz com que nem todos os indivíduos tendam a interagir face a face.

 

Na sociedade moderna, participamos de vários grupos e não participamos de vários outros, mas daqueles que participamos, não estamos igualmente envolvidos. Posso ser um entusiasta no grupo de indivíduos que jogam bola no fim de semana e um tanto quanto indiferente ao grupo dos professores da escola que leciono.

 

O sociólogo austríaco Peter Blau formulou a hipótese de que indivíduos com características demográficas semelhantes provavelmente tendem a juntar aos mesmos grupos, adotar atitudes semelhantes, consumir os mesmos produtos e assim por diante. Ou seja, geram nichos, onde a informação flui através dos laços sociais e as pessoas provavelmente formarão laços sociais com outros semelhantes. São os chamados espaços de Blau.

 

Então, pode-se dizer que em grupos presenciais a informação fluirá por intermédio da estrutura social do grupo, indivíduos cooperarão, competirão e entrarão em conflito, mas tudo isso mediado pelas interações face a face.

 

Em um grupo de WhatsApp, é possível desenhar sua estrutura social, sua hierarquia, enfim, mas na ausência de interações sociais, as competições tendem a ser mais exacerbadas. Eu não tenho aqui o contato face a face, a tensão gerada pelo objetivo que o personagem de Andy Garcia sentiu quando foi se aproximar da bela mulher que ele queria conhecer.

 

Então, não tendo esses parâmetros que controlam as interações, expressões e sentimentos como medo e hesitação tendem a ser minorados, quase suprimidos, enquanto a raiva e a manifestação de agressividade podem ser manifestas sem os mecanismos de controle que as situações sociais presenciais tendem a ter.

 

Em uma reunião de um grupo presencial, um membro pode te provocar. Pode discordar da sua argumentação, fazendo certo deboche a partir de considerações ideológicas. E fazer cara de poucos amigos para você. Mas, tem outras pessoas olhando para ele, você também está olhando para ele. Esses olhares desenham um parâmetro de controle. Então você contra-argumenta.

 

Em um grupo de WhatsApp, ele dirá que sua argumentação é superficial, pode colocar emojis, memes e gifs, tirando sarro de você. A gramática da provocação nas redes sociais pode ser mais arrojada, pois a dimensão visual da interação face-a-face está ausente, portanto, a raiva e manifestação de agressividade podem ser mais intensas com a ajuda de uma simbologia indisponível no contato presencial.

 

Nos espaços de Blau, os indivíduos tendem a ter afinidades. Se você não é evangélico, tende a se expor menos em um grupo de evangélicos que estão reunidos e que contam com sua presença, pois, por alguma razão, você chegou até ali. Você pode ler atitudes e comportamentos pela dimensão visual.

 

Pense nisso, quando estiver em uma discussão em RSO, já tiver contra-argumentado e estiver usando gifs, emojis e memes para provocar seu interlocutor.
Nos grupos do Telegram, por exemplo, não. Como saber quem são eles e como estão as pessoas naquele momento se você não tem a dimensão visual, a interação face a face? É possível saber, mas é mais dificil. Se o sistema de recrutamento é feito pela internet, menores serão as chances de termos um espaço de Blau. Maiores serão as probabilidades de conflito. Os opostos não se atraem e não convivem facilmente.

 

Muitos dos conflitos tendem a ser construídos em torno da defesa de valores. Se alguém defende um valor, outra pessoa pode defender valor oposto ou um valor que desafia o valor em questão. Você diz que a medida tomada pelo governo em relação ao preço dos combustíveis é boa. Um discordante vai dizer que é ruim, pois agora o combustível está caro. Outro dirá que na época do governo FHC falaram mal e olha só como estão as coisas.

 

A discussão tende a se transformar numa reafirmação de valores ou de defesas de posicionamentos políticos. Não se discute a medida em si, mas somente o que ela representa para quem a defende e quem é contra ela. Temos aqui um ambiente favorável ao desenvolvimento de conflitos.

 

Quando alguém defende um valor, você pode concordar com ele, porque também é o seu valor, ignorá-lo porque você tem consciência que não vale a pena discutir aquilo, ou reafirmar o seu valor.

 

Quando alguém me diz que a filosofia política x é uma coisa boa, eu só posso concordar ou discordar – amar ou odiar meu dialogador, concordar ou lutar com ele. Não existe espaço para uma discussão mais racional, pois trata-se de um julgamento de valor. Algo é bom.

 

Em um grupo presencial, o conflito pode se desenvolver e, é claro, tudo isso dependerá do histórico de amimosidade entre os participantes. As ações sociais tendem a ter seus sentidos e significados compreendidos pelo contexto de interaçao entre os indivíduos. Mas, existe ali o controle social estabelecido pela interação face a face, dimensão ausente nos grupos de redes sociais online, o que sustenta a hipótese de que nesses grupos o conflito tende a ser maior e mais esperado do que em grupos presenciais.

 

Pense nisso, quando estiver em uma discussão em RSO, já tiver contra-argumentado e estiver usando gifs, emojis e memes para provocar seu interlocutor.

 

*ANDRÉ LUÍS RIBEIRO LACERDA   é   Sociobiólogo, psicólogo e professor titular de sociologia na Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), campus de Cuiabá.
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