Pouco antes de sua posse da presidência do Santos, o empresário Andrés Rueda deu uma longa entrevista ao ge para falar de seus planos. Ele falou sobre a crise financeira na qual o clube foi colocado por antecessores e usou uma frase curiosa: “cada semana é um susto”. O levantamento foi feito pelo jornalista Rodrigo Capelo para o Globo Esporte. Confira:

Essa é uma percepção comum entre candidatos à direção de um clube de futebol no Brasil. Assim como também é comum que alguns elementos de seus discursos, da época da campanha, mudem depois que esses dirigentes assumem efetivamente as decisões e heranças.

Naquela entrevista, em 18 de dezembro, Rueda citou que a arrecadação nunca foi um problema para o Santos. Nos anos anteriores, o faturamento tinha ficado próximo de R$ 400 milhões – valor incorreto, como você verá adiante. A desgraça era usar mal esse dinheiro.

Além disso, o negócio do Santos era “ser campeão”, não vender jogadores. O candidato que tinha acabado de sair vitorioso da eleição falava das joias das categorias de base, que acabam se despedindo muito antes de brilhar em campo por causa da crise financeira alvinegra.

– Eu não quero ter uma fábrica de craques para vender. Estaríamos totalmente fora da missão do clube. Temos de revelar jogadores para que fiquem no clube e nos ajudem a ganhar títulos.

Após seis meses de administração, Rueda provavelmente levou muitos sustos. A desordem financeira – que só seria retratada pelo balanço financeiro, publicamente, depois de 30 de abril – é seguramente uma das piores que o Santos já enfrentou em pelo menos duas décadas.

Este é o legado deixado por José Carlos Peres e Orlando Rollo. Peres presidiu a associação entre 2018 e setembro de 2020, quando foi afastado e substituído por Rollo, seu vice-presidente e desafeto. Ele conduziu o clube até dezembro. Rueda chegou para tentar resolver.

Desde o começo, o novo presidente vem colocando em prática a austeridade que havia prometido na campanha. Custos estão sendo cortados em todos os departamentos, profissionais têm sido desligados.

No futebol, essa crise se manifesta de algumas formas. Em abril, o clube precisou vender Soteldo para uma franquia do Canadá. Reforços? Só em negociações sem custo. Se for por empréstimo, com salários divididos. Obviamente, fica mais difícil encontrar boas opções.

Para piorar, a direção santista vem tentando há meses segurar Kayo Jorge – ou, ao menos, conseguir alguma receita com eventual transferência para a Europa. Até agora, as notícias são desanimadoras.

Neste contexto, o ge passa pelo balanço alvinegro mais recente, referente a 2020, para ajudar o torcedor a dimensionar os problemas.

As finanças do Santos — Foto: Infoesporte

As finanças do Santos — Foto: Infoesporte

Panorama

Ao comparar o faturamento (tudo o que foi arrecadado em cada temporada) com o endividamento (o que havia a pagar no último dia de cada exercício), não resta dúvida de que a atual crise do Santos é uma das piores que já enfrentou nas últimas duas décadas. Se não a pior.

As dívidas chegaram ao patamar mais alto da história. Mais de meio bilhão de reais. E o pior é que mais da metade vence no curto prazo, em menos de um ano, o que faz de 2021 desafiador para a nova gestão.

As receitas caíram bruscamente. Em partes por ter vendido menos atletas, também por causa da pandemia, ainda que existam alguns asteriscos a assinalar. Entenderemos cada número no detalhe a seguir.

Receitas

Os direitos de transmissão merecem uma explicação à parte, pois a pandemia do coronavírus causou uma anomalia na contabilidade dos clubes. Em resumo: parte relevante de pagamentos vindos de emissoras foi adiada e aparecerá somente no próximo balanço.

Acontece assim porque, como o Campeonato Brasileiro foi encerrado somente em 2021, assim como a final da Libertadores, da qual o Santos participou, as receitas vinculadas a essas competições foram adiadas. É importante ter em mente que elas não foram perdidas.

O clube não detalhou quanto dinheiro foi postergado para o balanço seguinte. Com base na divulgação da Conmebol, sabemos apenas que o vice-campeonato na Libertadores rendeu US$ 6 milhões – próximos de R$ 33 milhões, segundo o câmbio no dia da final, 30 de janeiro.

Ainda sobre ressalvas, há um problema na contabilização santista. A sua diretoria mistura na mesma linha ganhos com bilheterias e “premiações” – que, na verdade, são repasses financeiros com origem na transmissão dos campeonatos e costumam aparecer em direitos de mídia.

Esse registro incomum faz com que a receita com “torcida e estádio” apareça, no gráfico acima, muito mais alta do que deveria. Enquanto os “direitos de transmissão” ficam abaixo. Cuidado ao fazer comparações!

No departamento comercial e de marketing, há uma vantagem. O valor arrecadado pelo Santos é maior do que o obtido pelo São Paulo, por exemplo, apesar das diferenças em termos de tamanho de torcida e economia local (cidade). Isso aponta para bom aproveitamento alvinegro, apesar da quantidade excessiva de marcas estampadas na camisa.

As bilheterias provavelmente chegaram a um valor próximo a zero, pois, com os portões da Vila Belmiro fechados pela pandemia, não havia como vender ingressos. Os números precisos, no entanto, são impossíveis de se obter por causa do detalhamento inadequado no balanço.

Outra parte da receita diretamente relacionada à torcida está na associação. O Santos tem R$ 10 milhões arrecadados por meio de seu quadro social, um valor que está em queda constante há cinco anos.

Por fim, nas transferências de atletas, está a principal razão para a queda do faturamento alvinegro na comparação com o ano anterior. Em 2019, foi contabilizada a venda de Rodrygo para o Real Madrid. Foram mais de R$ 200 milhões arrecadados. Em 2020, não houve transferência tão alta.

Orçado versus realizado

A comparação entre orçamento (com projeções feitas pela então diretoria) e balanço (com os resultados efetivamente alcançados) permite a avaliação do trabalho de uma administração.

Esses números nada têm a ver com Andrés Rueda, que fique claro. Orçado e realizado apontam para o trabalho da gestão encabeçada por José Carlos Peres em 2020, seu último ano de mandato.

Entre as receitas, houve frustração relevante. O Santos contava com R$ 249 milhões e registrou R$ 175 milhões. Ainda que receitas adiadas para 2021 expliquem parte da decepção, não contam a história inteira.

Bilheterias provavelmente zeraram por causa da pandemia. Transferências de atletas estiveram muito abaixo da expectativa. Ambas as linhas apontam para um clube que arrecadou menos do que deveria.

2020Orçado (em R$ milhões)Realizado (em R$ milhões)Variação (em R$ milhões)
Direitos de transmissão12373-50
Marketing e comercial2025+5
Bilheterias1530*Não se aplica
Associação10100
Outros1216+4
Transferências de jogadores6920-49
Folha salarial do futebolND-136ND
Resultado financeiro-303+33
Resultado líquido36-120-156

*No balanço, o clube insere “premiações” de competições entre bilheterias e impede a comparação correta entre orçado e realizado

Entre as despesas, o detalhe oferecido pelos documentos publicados pelo Santos é insuficiente. O orçamento não mostra separadamente, por exemplo, quanto o clube pretendia gastar com a folha salarial – combinação de salários, encargos, direitos de imagem e de arena.

Peres falava muito em austeridade e reduções de gastos. Como o orçamento não permite que a afirmação seja checada considerando o cenário de 2020, a saída para conferir se houve cortes de gastos, então, está na comparação entre os últimos anos santistas.

Esses foram os gastos com folha salarial do futebol profissional e amador – desconsiderando despesas administrativas, inclusive com salários de funcionários de outros departamentos:

  • R$ 86 milhões em 2016
  • R$ 113 milhões em 2017
  • R$ 125 milhões em 2018
  • R$ 166 milhões em 2019
  • R$ 136 milhões em 2020

Peres reduziu a folha apenas no ano passado, depois de ter aumentado nas duas temporadas anteriores em busca de resultados em campo. Modesto Roma Júnior, antecessor dele, já havia começado um movimento de alta em seu último ano de administração, em 2017.

O resultado líquido aponta para contas no vermelho. Mesmo se as receitas de televisão tivessem sido registradas em 2020, o Santos teria acabado a temporada com um prejuízo maior do que esperava. E aí, quando falta dinheiro para pagar tudo, a diferença negativa vira dívida.

Dívidas

Imagine que, na sua vida, dívidas “urgentes” representem mais do que o dobro de um ano inteiro de salários. E o pior: mês a mês, não há dinheiro suficiente nem mesmo para pagar todas as despesas, quem dirá haveria uma sobra para dar conta dessas cobranças. Esta é a situação do Santos.

O endividamento alvinegro disparou em 2020, mas o que há de mais preocupante está no prazo. O Santos registrou em 31 de dezembro um total de R$ 312 milhões a pagar em menos de um ano, portanto no decorrer de 2021. Uma quantia impraticável de todos os pontos de vista.

Na prática, a diretoria faz o que pode para “rolar” essa dívida. Ou pega empréstimos para cobrir os pagamentos de imediato, o que gera uma outra dívida para resolver depois, ou tenta fazer acordos com os credores para que eles tenham paciência. Quando nada funciona: calote.

Por que as dívidas aumentaram tanto? Há várias explicações. Uma delas está nas “obrigações trabalhistas” e também nas “tributárias”. Elas incluem salários, férias, décimo terceiro salário, INSS, Imposto de Renda Retido na Fonte (IRFF). O Santos perdeu o controle sobre essas linhas.

Obrigações trabalhistas (curto prazo)

  • R$ 29,5 milhões em 2019 (a pagar em 2020)
  • R$ 51 milhões em 2020 (a pagar em 2021)

Obrigações tributárias (curto prazo)

  • R$ 19,5 milhões em 2019 (a pagar em 2020)
  • R$ 46 milhões em 2020 (a pagar em 2021)

Além disso, houve um aumento relevante em dívidas relacionadas a direitos de jogadores. A compra de Cueva acrescentou R$ 36 milhões; uma violação do direito de preferência na ida de Gabigol para o Barcelona gerou R$ 18 milhões. Fora acordos judiciais e extrajudiciais.

No caso específico de Cueva, a administração de Rueda conseguiu um alívio recentemente, ao firmar um acordo com o credor para que o pagamento seja feito em prazo alongado. O parcelamento esticará a dívida até 2023. Sem dinheiro para quitar logo, esta é a saída que resta.

Em relação às dívidas bancárias, o Santos conseguiu reduzir um pouco as suas pendências em 2020. Esses são os valores de curto prazo:

  • R$ 46,5 milhões em 2019 (a pagar em 2020)
  • R$ 38 milhões em 2020 (a pagar em 2021)

Não deixa de ser uma boa notícia, ainda que pequena. Esses empréstimos estão vinculados a contratos, geralmente de transmissão, dados como garantia para que as instituições financeiras liberassem o crédito no passado. Não piorar esse tipo de dívida é um alívio.

Para não ter de recorrer a empréstimos bancários, no entanto, é necessário lembrar que houve a participação de Andrés Rueda. O empresário colocou R$ 16,5 milhões do bolso dele para que o Santos, no final da administração passada, conseguisse pagar algumas contas.

No gráfico abaixo, seguindo critério que o blog aplica em todos os balanços, a contribuição de Rueda aparece entre os bancários. Pois, geralmente, empréstimos de “partes relacionadas” têm as mesmas características: taxas de juros, prazos para pagamento, garantias.

Em “fiscal”, estão impostos parcelados. A maior parte está no Profut. Desde que o pagamento das mensalidades não atrase, não há motivo para preocupação. Em “trabalhista”, além dos atrasos recentes, há R$ 113 milhões em ações judiciais que o Santos acredita que perderá. Nos “outros”, estão jogadores comprados, intermediários e fornecedores.

Dívidas não provisionadas

O Santos tem ações judiciais (cíveis e trabalhistas) movidas contra ele em andamento. Em cada balanço, a diretoria determina a probabilidade de perda nesses processos segundo as nomenclaturas:

  • “Provável”
  • “Possível”

Apenas os valores de perdas “prováveis” são inseridos no passivo e consequentemente no endividamento demonstrado nos gráficos anteriores. Além deles, o Santos possui R$ 44 milhões em processos em que seu departamento jurídico considera a derrota apenas “possível”. Isso significa que o endividamento pode ficar ainda maior.

Futuro

A história é batida no futebol brasileiro. Sucessivos presidentes gastam mais do que podem e endividam o clube. Às vezes, conseguem títulos para atingir a consagração pessoal que buscam. Geralmente, nem isto.

Como as finanças não zeram junto com a tabela, entre uma temporada e outra, a sucessão de riscos assumidos e erros cometidos fica para alguém. Um dirigente que se proponha a recuperar a instituição.

Não é fácil. Qualquer reestruturação financeira só sai do papel se arrecadar mais, gastar menos e usar a “sobra” para reduzir dívidas. Austeridade nada mais é do que adequar as contas para reorganizar a casa. Só que, na real, colocá-la em prática requer coragem para enfrentar possíveis maus resultados em campo e críticos fora dele.

No caso do Santos, Andrés Rueda assumiu uma péssima herança de José Carlos Peres, Orlando Rollo, Modesto Roma Júnior e até Odílio Rodrigues. Os malfeitos desses cartolas perduram na forma de dívidas e cobranças.

Aumentar a arrecadação é um desafio para um clube de torcida proporcionalmente menor do que adversários diretos. Que está situado numa cidade de menor população. Não dá para contar com bilheterias e associações em grandes quantias, mesmo depois da pandemia.

Direitos de transmissão hoje estão mais variáveis do que no passado. Mais meritocráticos. Copa do Brasil e Libertadores remuneram muito; parte do Brasileirão está condicionada à tabela. Para quem se propõe a passar por um período de austeridade, como faz Rueda, será preciso eficiência para render em campo e arrecadar mais nessa frente.

Mesmo assim, a impressão que fica é de que a saída para o Santos está na venda de atletas – sobretudo, os que vêm das categorias de base. Justo o que Rueda, antes de chegar à cadeira, pretendia evitar. São transferências como a de Rodrygo – cuja oportunidade Peres desperdiçou, aliás – que podem acelerar o processo de recuperação.

A missão fica ainda mais difícil quando se tem uma torcida exigente, como a do Santos. Que há poucos meses estava numa final de Libertadores. Que costuma competir para valer os campeonatos que entra. Vender jogador e cortar custo não agrada ninguém.

Andrés Rueda parece estar no caminho certo, ainda que ingrato. Ele trata da crise financeira com clareza, como quando fez uma longa entrevista coletiva para explicar à torcida as ações nos 100 primeiros dias de gestão. O noticiário indica que ele está realmente empenhado em consertar o Santos dos estragos feitos por antecessores. Falta saber se o entorno terá paciência e dará a ele a oportunidade para chegar lá.

PS.: Escrevi um livro sobre o futebol brasileiro, “O futebol como ele é”, para contar como o dinheiro e a política interferem no que acontece em campo. Ele está à venda na loja da Grande Área (é só clicar no link). (Rodrigo Capelo/Globo Esporte)