Pela segunda vez em poucos anos, a Chapecoense demonstra ser capaz de se reconstruir. A primeira após uma tragédia que matou jogadores, comissão técnica, dirigentes e comoveu o mundo. A segunda, ainda em curso, depois de uma série de decisões erradas tomadas pelo próprio clube, ainda como consequência do acidente aéreo ocorrido em 2016.
Após 23 rodadas, quase dois terços do campeonato disputados, a Chape lidera a Série B com 47 pontos – quatro a mais que o segundo colocado América-MG e dez acima do Cuiabá, primeiro time fora da zona de classificação para a Série A. Embora todos nos clube adotem um discurso cauteloso, é mais do que provável a volta da Chape para a elite em 2021.
Exatamente um ano atrás, num 27 de novembro como hoje, o Chapecoense aprendeu o significado do termo rebaixamento. Uma derrota por 1 a 0 para o Botafogo cortou a sequência de seis anos seguidos na primeira divisão do Campeonato Brasileiro, série que nem a tragédia na Colômbia havia sido capaz de interromper.
A queda para Série B em 2019 fez soar todos os alarmes em Chapecó. Pacificado politicamente, o clube voltou algumas casas, reduziu os custos com futebol e apostou na receita que funcionou lá atrás: um time mais barato, sem estrelas, identificado com a cidade, liderado por duas figuras bem conhecidas do torcedor, que viveram os melhores e sobreviveram aos piores momentos da história da Chapecoense.
Alan Ruschel, Neto e Jakson Follmann na Chapecoense — Foto: Marcio Cunha/ACF
Um ano atrás, Alan Ruschel declarou ao ge que precisou deixar a Chape porque não queria mais ser tratado com piedade. Foi para o Goiás, onde recuperou futebol e autoestima, e voltou para ser decisivo na reconstrução da Chapecoense.
– Voltar para Chapecó tinha de ser desse jeito, tinha de ser numa reconstrução. E as coisas estão se encaminhando para que a gente coroe o ano da melhor maneira possível. Voltar para cá está sendo um momento marcante para mim, estou numa sequência de 30 jogos que não tinha há muito tempo, estou muito feliz com o momento profissional e pessoal, e principalmente pelo clube, que está atingindo seus objetivos – disse Alan Ruschel.
Alan Ruschel Lateral Chapecoense — Foto: Márcio Cunha / Chapecoense
– Seria egoísta não fazer algo em um momento em que o clube precisava de socorro. Infelizmente em campo não consigo mais colocar em prática o sonho de ver a Chapecoense lutando por grandes coisas, por um lugar na Série A, por um mata mata de Copa do Brasil, de Sul-Americana. Mas como dirigente quero fazer a Chapecoense ser o que foi lá atrás, antes daquela tragédia. Um clube forte.
O ano de 2020 começou turbulento em Chapecó. Após seis partidas e nenhuma vitória no Campeonato Catarinense, a diretoria decidiu demitir o técnico Hemerson Maria. Uma semana antes de completar 40 anos, o ex-volante Umberto Louzer foi anunciado como treinador da Chape. Seu último trabalho havia sido no Coritiba, do qual fora demitido em setembro de 2019.
Sob o comando de Louzer, a Chapecoense desafiou todas as probabilidades e ganhou o Campeonato Catarinense de 2020, avançou à segunda rodada da Copa do Brasil – da qual foi eliminada nos pênaltis pelo São José (RS) – e disparou na liderança do Campeonato Brasileiro da Série B. A ponto de atrair a atenção do Cruzeiro.
Em 14 de outubro, por meio de uma nota oficial publicada no site da Chapecoense, o treinador admitiu ter recebido uma proposta do clube mineiro e declarou que continuaria em Santa Catarina.
O episódio causou alguma turbulência entre os dois clubes. Mano Dal Piva, vice-presidente de futebol da Chapecoense, chegou a declarar na época que “faltou respeito e educação” ao Cruzeiro, amaldiçoou o rival e desejou o rebaixamento. Mais tarde, se desculpou em uma ligação telefônica.
Hoje o episódio é considerado superado pelo presidente da Chape, Paulo Magro, que faz questão de ressaltar “o respeito que toda a diretoria tem pelo Cruzeiro”. Nesta semana, o time perdeu em casa por 1 a 0 para o Cruzeiro de Felipão – contratado após a recusa de Umberto Louzer. Foi apenas a segunda derrota da Chapecoense na Série B. A primeira havia sido três meses antes, para o Cuiabá, por 2 a 1.
– Eu diria que o projeto da Chapecoense foi o que mais pesou para o Umberto ficar. Em primeiro lugar, porque ele sempre honra os compromissos. E realmente foi uma proposta interessante [do Cruzeiro], mas ele foi fundamental aqui, porque nós tivemos jogadores que receberam propostas de outros clubes, inclusive da Série A, ele foi importante para esses jogadores ficarem – contou ao ge o presidente Paulo Magro.
Os jogadores que tiveram proposta de times da Série A, segundo o presidente Paulo Magro, foram o goleiro João Ricardo, os zagueiros Kadu e Derlan, além do atacante Anselmo Ramón. O lateral-direito Matheus Ribeiro, o zagueiro Luiz Otávio e o volante Willian Oliveira também foram procurados. Todos ficaram.
O assédio de outros clubes virou brincadeira, mas com contornos de seriedade. No vestiário, em viagens e entre uma conversa e outra nos corredores do clube é comum a frase: “não vai sair ninguém”.
Líder mesmo com salários atrasados
A Chapecoense conseguiu conter o assédio de clubes maiores e da elite do futebol brasileiro. E, o que é mais incrível, enquanto deve salários a atletas e ao próprio treinador.
– Neste ano nós estamos com a CLT com um mês de atraso e desde abril não pagamos os direitos de imagem (cerca de 40% dos vencimentos). Pretendemos até fevereiro de 2021 saldar isso com alguns recursos que a gente imagina que vão entrar – admitiu o presidente.
Paulo Magro conta como conseguiu convencer os jogadores a acreditar no projeto da Chape.
– Usando a maior sinceridade possível desde o início. É claro que eles querem receber e estão no direito. Fazemos reuniões com frequência, falamos com os jogadores. E eles estão entregando um resultado espetacular. É que, além de termos contratado bons jogadores, trouxemos homens comprometidos com o clube, com o projeto, e isso a gente consegue identificar no dia a dia.
O plano do presidente da Chapecoense é pagar tudo o que deve até fevereiro de 2021, quando termina o Campeonato Brasileiro. Seu plano depende da venda de jogadores. Enquanto isso, o clube de planeja o orçamento do ano que vem como se fosse disputar de novo a Série B, algo que o matemático Tristão Garcia já julga quase impossível – ele estima em 98% as chances de a Chape subir.
– Em 2017, depois do acidente, a Chapecoense recebeu muita ajuda, muitos jogadores vieram com seus salários pagos por outros clubes. Depois o clube não soube administrar isso. A Chapecoense não pode ser maior do que o tamanho dela. E isso não e demérito. Tentou-se manter uma folha salarial de R$ 5 milhões mês, que não é a nossa realidade. [Hoje a folha do clube é de R$ 1,5 milhão por mês – contou Paulo Magro.
Umberto Louzer, técnico da Chapecoense na Série B — Foto: Ailton Cruz/Gazeta de Alagoas
Aos poucos, discretamente, tal qual fez em 2013, a Chapecoense pavimenta seu caminho de volta para a elite do futebol brasileiro. De maneira tão cuidadosa que o orçamento de 2021 está sendo elaborado prevendo que o time vai jogar de novo a Série B em 2021.
– A nossa ideia era fazer uma Série B segura, sem correr risco de cair. Isso nós já conseguimos. Agora estamos na expectativa de algo maior. Mas vamos jogo a jogo, com os pés no chão. Se não chegarmos [na Série A em 2021], é claro que vai ficar um pouco de frustração. Mas vamos dar os passos de acordo com o nosso tamanho.
Voo 2933: disputas na Justiça continuam
Enquanto tenta retornar à elite do futebol nacional, a Chapecoense ainda tenta se acertar com os familiares das vítimas do voo à Colômbia em 2016 que matou 71 pessoas. Em maio do ano passado, o clube anunciou que fechou acordo de indenização com 20 famílias. O valor gira em torno de R$ 14 milhões e foi parcelado.
– No que diz respeito a ações trabalhistas, faltam fechar cinco acordos. Quase todas as ações trabalhistas estão negociadas, com o aval da Justiça. A Chapecoense tem ações contra a Lamia, contra os governos de Bolívia e Colômbia e também tem ações contra a Lamia, que estão tramitando nos EUA. Nós não contamos com isso, os prazos são muito difíceis. A gente tinha uma informação de que a troca de governo na Bolívia deve fazer a coisa andar. Mas não contamos. Se houver justiça, alguma coisa o clube deve receber
– O relacionamento [com as famílias] é bom, a gente tem a obrigação de honrar mensalmente os compromissos. E até agora temos conseguido, felizmente – afirmou o presidente Paulo Magro.
Neto e viúvas protestam em Londres, Chapecoense — Foto: Marcel Camilo/Divulgação
Um dos seis sobreviventes no acidente, Neto ainda cobra justiça. Em setembro do ano passado, ele e as viúvas de quatro jogadores da tragédia aérea se reuniram em frente às sedes da corretora de seguros Aon e da seguradora Tokio Marine Kiln, em Londres, para protestar pela falta de indenização pela queda do avião.
– As famílias precisam ter uma voz ativa na sociedade, no nosso país, para que vejam que aconteceu algo muito errado. Desde os contratos assinados com seguradoras até o final, que todo mundo sabe. Como sobrevivente, seria ideal ter representante e me coloco a disposição. Minha vida não valeria a pena se vivesse de maneira egoísta. Minha vida está sendo doada para minha família, para o clube e para todas as famílias que sofreram acidente também.
– Algumas pessoas me ligam. Tenho contato com algumas esposas. Minha luta é por todas elas, e a gente procura fazer o que é certo. Qualquer compensação financeira não traz de volta o marido, pai de família, o filho. Mas saber que algo está acontecendo, que a justiça vai ser feita, dá alívio para qualquer sofrimento – disse Neto. (Globo Esporte)