Qual foi a última planta que você viu? E qual o nome daquela florzinha que brota da calçada no caminho que você faz até o trabalho? Se você não se lembra dos detalhes ou sequer sabe o nome das espécies, é possível que também esteja sob influência da cegueira botânica. Esse fenômeno, estudado há pouco mais de duas décadas, define a falta de percepção que temos das plantas em nosso cotidiano. Isso pode nos levar a negligenciá-las, ignorar o papel essencial que desempenham em nossas vidas e, em muitos casos, a considerá-las seres de menor valor que os animais, por exemplo. Mas por que isso importa?

Mais do que uma mera preocupação de botânicos ou “pais de planta”, essa desconexão pode afetar a forma como interagimos com a natureza. “Todo mundo sabe reconhecer um elefante. Mas se digo que uma planta é um ciclame, poucos reconhecem”, explica a bióloga Suzana Ursi, professora do departamento de Botânica do Instituto de Biociências da USP (Universidade de São Paulo). “Se a gente não reconhece o valor e a importância das plantas, ficamos cada vez mais distantes de nos conscientizar e tomar ações para mitigar fenômenos como as mudanças climáticas”, completa a professora, que prefere chamar o fenômeno de “impercepção”, em vez de cegueira.

Cegueira botânica — Foto: Ilustração: Marcela Setta/Design: Flavia Hashimoto
Cegueira botânica — Foto: Ilustração: Marcela Setta/Design: Flavia Hashimoto

Esse conceito apareceu pela primeira vez em 2001, nos trabalhos dos botânicos e educadores americanos James H. Wandersee e Elisabeth E. Schussler. Em um artigo publicado na revista Plant Science Bulletin, os pesquisadores definiram a teoria da cegueira botânica em três pontos: a incapacidade de reconhecer a importância das plantas na biosfera e nos assuntos humanos; a dificuldade de apreciar as características estéticas e biológicas únicas do reino vegetal; e a classificação equivocada e antropocêntrica das plantas como inferiores aos animais, que faz com que elas pareçam indignas de consideração.

Os autores justificam esse comportamento pelo aspecto visual da coisa: plantas costumam ser discretas, se destacando na paisagem apenas quando estão no período florescimento frutificação. Além disso, não se movem, o que as torna menos ameaçadoras para os humanos. Por isso, é esperado que chamem menos nossa atenção.

Isso tem a ver com a forma como o nosso cérebro processa a informação que enxergamos. O olho humano gera 10 milhões de bits de dados visuais por segundo. Desse total, cerca de 40 bits por segundo são extraídos pelo cérebro – que faz o processamento de 16 bits de dados por segundo. Ou seja: filtramos tantas informações sobre aquilo que vemos diariamente que a maior parte das percepções sobre as plantas acaba descartada.

Embora tenha muito a ver com a cognição e a percepção visual humana, o fenômeno não afeta todos igualmente. Segundo Ursi, ele está relacionado a fatores culturais, e ocorre principalmente em pessoas que não têm muito contato com a natureza – caso de 85% da população brasileira que vive em centros urbanos, por exemplo.

Negligência visual ou cultural?

As causas por trás da cegueira botânica ainda não são consenso. No ano seguinte à publicação de Wandersee e Schussler, o biólogo David R. Hershey escreveu um artigo na mesma revista criticando a teoria da dupla. Ele apontou a falta de evidências que justificassem a limitação na percepção visual humana como causa da cegueira botânica. “A literatura citada por Wandersee e Schussler sobre os limites da percepção visual aparentemente não contém experimentos específicos sobre a percepção humana de plantas”, escreveu. No entanto, reconheceu que há indícios que apontam o zoochovinismo (preferência por animais em detrimento das espécies vegetais) e a negligência generalizada com as plantas como possíveis causas do fenômeno.

Um argumento para o embate veio em 2014, em um artigo dos pesquisadores Benjamin Balas e Jennifer L. Momsen, dos departamentos de Psicologia e Ciências Biológicas da Universidade de North Dakota, nos EUA. A dupla colocou voluntários para detectar animais e plantas quando que apareciam em sequências de imagens rápidas. O resultado? Os participantes se deram melhor identificando animais. “Esses resultados sugerem que existem diferenças fundamentais em como o sistema visual processa plantas”, escreveram os cientistas.

As conclusões dos estudos levam ao dilema do ovo e da galinha: a cegueira botânica, enquanto fenômeno visual, é causada pelo desinteresse no assunto, ou o desinteresse é causado por essa impercepção? Para a professora da USP, é algo que se retroalimenta. “Eu diria que é uma característica inata do ser humano observar e perceber menos as plantas. Por exemplo, quando a gente olha para uma paisagem que não tem muita diferença de cor, em que os elementos não estão muito definidos ou que não há um movimento brusco, acabamos percebendo menos”, explica.

“Todo mundo sabe reconhecer um elefante. Mas se eu digo que uma planta é um ciclame, poucos reconhecem.”
— Suzana Ursi, bióloga e professora do Instituto de Biociências da USP
Cegueira botânica — Foto: Ilustração: Marcela Setta/ Design: Flavia Hashimoto
Cegueira botânica — Foto: Ilustração: Marcela Setta/ Design: Flavia Hashimoto

Por outro lado, ela destaca a importância da questão cultural, principalmente na educação das crianças. Afinal, se não veem valor em enxergar as plantas desde cedo, elas muito provavelmente se tornaram adultos que se importam menos com o ambiente. “A gente tem um ensino que é muito conteudista. Em vez de mostrar e aproximar as pessoas da beleza das plantas, explicar que elas estão no nosso cotidiano, ficamos mais preocupados com aqueles nomes extravagantes, difíceis, fazendo os estudantes decorarem o ciclo de vida, coisas complexas que só nos distanciam mais”.

Boom botânico

Nem sempre as plantas tiveram pouco prestígio. A partir do século 15, a botânica passou a se desenvolver como uma ciência separada da medicina e do herbalismo (estudo das plantas para fins medicinais), impulsionada principalmente pelo surgimento da imprensa, que possibilitou o registro e a circulação das descobertas, e das grandes navegações, que permitiram as expedições botânicas.

No século 18, o grande nome da botânica foi o sueco Lineu, que propôs o primeiro sistema de classificação hierárquica para os seres vivos, incluindo o reino vegetal. No século seguinte, Charles Darwin também teve as plantas como objeto de estudo, fazendo esboços de exemplares coletados durante suas viagens.

No mesmo período, a botânica era o único espaço para as mulheres na ciência – que, à época, eram proibidas de frequentar as universidades. Cabia a elas tomar notas, preparar ilustrações e trabalhar na publicação das pesquisas. Até que começou a se tornar um hobby, em meados do século 19. “A botânica era considerada uma excelente ciência para as mulheres europeias porque podia ser executada nos jardins, mas tudo dentro da perspectiva machista da época”, explica Ursi. Trazer plantas para dentro de casa acelerou o distanciamento natural do espaço silvestre, inevitável com a urbanização.

Corta para o século 21. Um estudo feito em Londres em 2016 resolveu colocar à prova a capacidade da população de reconhecer flores silvestres comuns. A pesquisa concluiu que estudantes do ensino médio, pessoas com diploma de ensino superior e uma parte considerável dos professores de biologia analisados tiveram dificuldade em reconhecer dez flores. Não se tratam de nomes completamente desconhecidos, que só botânicos saberiam. Oito das dez flores do estudo são mencionadas em obras de Shakespeare, e todas aparecem no folclore britânico.

Um artigo publicado em 2023 por pesquisadores da Escola de Biologia e Ciências Ambientais da University College Dublin, na Irlanda, apontou uma crescente crise na botânica no Reino Unido devido ao baixo interesse em cursos de graduação relacionados ao tema.

Por outro lado, o mesmo estudo britânico observou um aumento no interesse público por tópicos relacionados a plantas, principalmente após a pandemia de Covid-19. Para os autores, esse “boom botânico” no país teve relação com o isolamento social, à conscientização dos benefícios terapêuticos das plantas, às comunidades online e aos “planfluences”, influencers focados em jardinagem. Eles também destacaram que esses fatores podem aumentar o engajamento de novos públicos.

No Brasil, dados econômicos mostram que o aumento de interesse também pode ter se repetido durante a pandemia. Segundo o Instituto Brasileiro de Floricultura (Ibraflor), o setor teve um crescimento de 10% nas vendas em 2020, e de 5% em 2021. “Os dados indicam que, talvez, a gente também esteja vivendo esse fenômeno”, pondera Ursi.

Cegueira botânica — Foto: Ilustração: Marcela Setta/Design: Flavia Hashimoto
Cegueira botânica — Foto: Ilustração: Marcela Setta/Design: Flavia Hashimoto
“A botânica era considerada uma excelente ciência para as mulheres europeias porque podia ser executada nos jardins”
— Suzana Ursi, sobre o crescimento do interesse por plantas no século 16

Existe, porém, um contraponto. A professora alerta para o risco do aumento de interesse, incentivado pelas redes sociais, acabar produzindo uma abordagem utilitarista das plantas. Um dos problemas são os grandes colecionadores, que exibem e estimulam na internet a criação de “plantas-troféu”, muitas das quais estão extintas na natureza e não se adaptam ao ambiente doméstico.

“Só ter o hobby não é o suficiente. Mas, com o estímulo certo, pode ser um caminho para sensibilizarmos o olhar. Porque se eu tenho uma planta e enxergo certa sazonalidade nela, talvez isso seja uma forma de captar minha atenção. Começar a se sensibilizar com algo que está perto e ampliar a visão”, afirma.

Planta não dá Ibope

Sensibilizar o olhar dos brasileiros quanto às plantas é tentar derrubar uma visão que persiste há séculos. Por aqui, os primeiros sinais de cegueira botânica remontam à colonização portuguesa. Se as diferentes populações indígenas tinham uma relação íntima com a natureza, a exploração predatória do pau-brasil representou a primeira ruptura bem documentada no território nacional. A árvore que dá nome ao Brasil quase foi considerada extinta no século 20 devido ao desmatamento da Mata Atlântica.

A dessensibilização em relação a eventos como desmatamentos e queimadas é também um sintoma da cegueira botânica. Apesar de nos sensibilizarmos ao ver animais sofrerem e as consequências amplas para os ecossistemas, não nos preocupamos tanto com as espécies vegetais. Para a professora da USP, essa desconexão afeta campanhas de conservação e investimentos destinados a elas. “Quanto as pessoas investem e doam para campanhas que falam de espécies animais, e quanto para as que falam de vegetais? Quando falamos de investimentos e políticas públicas, o que um parlamentar vai transformar em Projeto de Lei? O que dá mais Ibope?”, questiona.

O egocentrismo de nossa espécie também tem a sua parcela de contribuição. Uma pesquisa de 2016 publicada na revista Conservation Biology mostrou que pessoas têm mais chances de apoiar a conservação de espécies que tenham características humanas. O distanciamento causado pela cegueira botânica tem impactos práticos em questões ambientais e econômicas. Um dos exemplos é quanto ao reflorestamento. Mesmo na arborização urbana, é preciso ter conhecimento sobre quais espécies são nativas e quais não são boas para cada ambiente. Um caso comum nas cidades brasileiras é o da espatódea – árvore de flores laranja que é título de uma música de Nando Reis. Embora bonita, ela é exótica no Brasil, e suas flores produzem uma substância que mata abelhas nativas.

Na visão da especialista, a resposta passa por jogar luz sobre o fenômeno e ampliar o conhecimento sobre plantas como um todo. Mas a solução definitiva é pelo caminho da educação e da política – e o desafio mais urgente é o currículo brasileiro, especialmente no Ensino Médio.

Professores do Ensino Médio que aplicaram um questionário a uma turma estudantes de Tangará da Serra (MT) em 2018 notaram esse desafio. A lista de questões continha imagens de interações entre plantas e animais. Cerca de 90% dos estudantes apontaram apenas a presença de animais ao descrever as cenas.

No texto da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), a palavra ‘planta’ não aparece nenhuma vez no segmento de ensino médio. O tema aparece com mais frequência no Ensino Fundamental 1, fase em que os professores não são especialistas em biologia, mas pedagogos.

“Somos o país que detém maior diversidade vegetal do planeta, provavelmente uma das mais ameaçadas, e temos o documento norteador da nossa educação que fala pouquíssimo de plantas”, diz a professora. Se ainda não temos certeza se a cegueira botânica é um fenômeno visual ou cultural, sabemos que, no Brasil, a impercepção parece ser também institucional.

(Por Marília Marasciulo)