JOSUÉ MARSILLA
Sempre que eu chegava ao hotel, estava ali junto ao poste aquela mulher vestida de negro. Pelo talhe, pelos trejeitos provocantes, eu imaginava que ela esperava alguém que pegasse e levasse. Mas depois começou a me parecer que ela fazia menção de se dirigir a mim, parecia querer atrair minha atenção ou me dizer alguma coisa. Não conseguia distinguir as feições dela, fosse porque, diretamente debaixo do poste, a luminosidade não fosse favorável, ou, de qualquer maneira, porque me parecia que ela não queria que eu visse sua cara. Mas imaginava que fosse uma bela mulher, por suas roupas e seus preenchimentos.
Eu andava numa pindaíba de fazer gosto, e não podia me dar ao luxo de pagar um programa. Devo dizer que naquela época, as mulheres não se exibiam nas ruas como fariam mais tarde, e como não vivi no final do século, não sei como seria, mas sei porque o idiota a quem dito estas maltraçadas (meu psicógrafo, preciso esclarecer?) ainda vive entre vocês, nessa avançada e incrível civilização.
Vivia naquele hotel já fazia alguns meses; a dona ainda não me cobrara desde quando eu interrompera os pagamentos, e ela estava na esperança de que eu quitasse meus débitos, já que eu alegava estar esperando um depósito na minha conta que era sempre adiado. A aposentadoria que eu recebia mal dava pra comer. Eu sempre dizia que o dinheiro dos meus negócios na capital sofrera um atraso, mas que mais dia menos dia eu quitaria tudo, com juros. Ela acreditava, coitada.
Eu andava o dia inteiro pela cidade, via passarem as diligências, via passar o trem, e tudo me parecia monótono e eventualmente sombrio. Tudo tinha um clima europeu, não sei por quê, acho que é porque era na Europa mesmo. O inverno vinha chegando, eu não tinha roupas suficientes, o dinheiro não vinha e às vezes eu ficava meio desesperado, apesar de estar quase acreditando também nas minhas lorotas.
Embora meus preconceitos contra essas mulheres de rua continuassem em vigor, eu estava caindo numa situação tal que às vezes até pensava que elas é que tinham razão, pelo menos exerciam suas putarias honestamente, tinham o seu dinheirinho e não precisavam mendigar, como às vezes eu me via obrigado, quando o dinheiro da aposentadoria se acabava e o mês não, então eu me via na necessidade de pedir um pão, fiado ou grátis, na padaria onde era conhecido, e o dono me dava de bom grado algum pão amanhecido, acreditando que com isso estava emprestando a alguma divindade.
Eu me lembrava do discurso de um pastor protestante, na época eu achei estranha sua posição, mas depois, revendo as coisas, até que ele não estava totalmente errado. Ele defendia uma espécie de “prostituição organizada e legal”. Que isso é a prostituição organizada e legal – dizia ele – uma válvula de escape. Embora não se atrevesse a defender esse ponto de vista em público, manifestava em conversas com qualquer. Ou há mulheres de má vida controladas pelo estado, ou as instituições básicas podem vir água abaixo. As moças de família estão perdendo o sossego hoje, e mais ainda seus pais. Os meninos, em tenra idade, vivem excitados pelos cinemas, por publicações pornográficas, enfim, que se pode esperar? A rapaziada não tem mais os freios que outrora lhe impunha um lar com sólidos princípios…
Na época, o discurso do pastor me deu náuseas…
Esses pensamentos fora de contexto foram bruscamente interrompidos ao chegar ao meu quarto e ver um envelope que abri imediatamente; ali estava um ultimato: a dona da pensão exigia o pagamento das minhas diárias, ou eu seria despejado num prazo de vinte e quatro horas. Fui procurar por ela e descobri que estava pendurada do teto, o que a princípio me pareceu muito estranho, mas depois tudo ficou explicado: o sobrinho dela tirara a escada enquanto ela trocava uma lâmpada, e ela ficara naquela posição incômoda enquanto o garoto não trazia a escada de volta. Então fui tentar ajudar a mulher na sua descida e o resultado foi que, com meus gestos torpes, acabei por provocar uma queda ainda mais grave que se eu não tivesse interferido. Ela começou a gritar histericamente, o que me desanimou de pedir uma nova dilação.
O que eu decidira era lhe garantir que eu acabara de receber um telex me comunicando que minha propriedade de Dublin fora vendida com sucesso, e o dinheiro me seria enviado por malote num prazo de três dias.
Com a queda fragorosa da dona do pensionato, eu me dirigi muito pesaroso ao meu quarto, mas então encontrei o companheiro do quarto ao lado, com quem travara amizade. Ele quis saber como estavam as coisas, me perguntou sobre o clima em Moscow e sobre a bolsa de valores de Nova York, e afinal quis saber se aqueles empreendimentos que eu tinha em L. eram reais ou fictícios. Eu lhe confessei que na verdade não tinha tais somas, que estava mesmo na pindaíba, era um jornalista fracassado e não tinha onde cair morto.
– Veja bem – disse ele – eu tenho essa passagem pra T., seria melhor você ir até lá até as coisas se acalmarem por aqui. O clima não está muito favorável pra você.
Eu ia lhe dizer que estava prestes a ser despejado, e era ele quem me dava as notícias; me surpreendeu que estivesse mais inteirado da minha situação que eu. Peguei a passagem, ajeitei meus trapos e saí à rua, em direção à estação. Ao chegar à esquina, encontrei a dama de negro, que me falava com voz melíflua.
– Venha, venha, preciso muito falar com você.
Cheguei mais perto dela pela primeira vez, e ela me contou uma longa história sobre suas desventuras, sua infância incerta, sua juventude cheia de peripécias, de altos e baixos, como fora muito afortunada algumas vezes e depois caíra na mais negra miséria, e como conseguira ir driblando as dificuldades até chegar a ser o que era.
– E o que você é? – quis saber eu.
Já anoitecera, e por mais que tentasse, eu não conseguia distinguir as feições dela mesmo à luz do luar; então percebi que um fino véu ocultava seu rosto e, embora fino, me impedia de saber se era bonita ou feia.
– Você saberá – respondeu.
– Não quer dizer agora?
– Não posso.
– Por quê?
– Estou sendo vigiada.
– E quando poderei desvendar esse mistério?
– inquiri, tentando me adequar ao clima que ela parecia querer criar.
– Na próxima semana. Sexta-feira estarei esperando por você.
Fui até a estação, mas já não queria viajar. Estava realmente muito curioso pra saber quem era aquela criatura, e como acabaria a novela.
Acabei decidindo pela viagem, pensando que sexta-feira da outra semana ainda estava longe e, de qualquer maneira, se eu não voltasse talvez não perdesse grande coisa. Em T., fui recebido efusivamente por um sujeito que me esperava na estação, certamente me confundiu com alguém que ele esperava. Ele me passou uma maleta e se despediu sem me dar tempo de me identificar.
Eu me dirigi ao primeiro hotel que encontrei, e abri a maleta muito intrigado. Estava repleta de libras esterlinas! Fiquei três dias no hotel e depois, atrevidamente, paguei minhas diárias e outras despesas com algumas daquelas notas, que eu sabia falsas.
Na outra sexta-feira, estava eu sob o poste do lampião próximo à pensão, que eu pagara também com algumas notas daquelas. A mulher apareceu no horário previsto, e por mais que eu insistisse não queria levantar a véu que lhe vedava a cara.
Afinal, consegui chegar mais perto e ergui o pano. Era uma caveira.
(*) JOSUÉ MARSILLA, o autor, é jornalista, poeta e mestre em estudos literários, autor de A Conspiração dos Dinossauros, a ser lançado em breve. Passa a assinar Marsilla, retomando o nome de seu avô Alfonso Marsilla Alvarez.
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