Os bancos encontraram um porto seguro em meio à grave crise provocada pela pandemia do novo coronavírus: os servidores públicos. Como eles têm estabilidade no emprego tornaram-se alvo preferencial das instituições financeiras na hora de emprestar dinheiro.
Resultado: o crédito consignado ao funcionalismo continua crescendo como se não houvesse amanhã. Dados do Banco Central apontam que, somente no consignado, os servidores devem R$ 232,8 bilhões — um recorde.
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De janeiro a junho deste ano, esses empréstimos aumentaram R$ 10,4 bilhões. Isso significa que, na média, os bancos liberaram R$ 57,1 milhões ao dia por meio dessa linha de crédito, incluindo sábados, domingos e feriados.
Mas o que parece ser um empréstimo fácil e sem burocracia mascara um dos maiores assaltos que os bancos fazem pois essa modalidade representa risco zero para as instituições. Mesmo assim elas praticam taxas de juros estratosféricas e muitas vezes embutem cobranças indevidas nos contratos que escondem o real valor que o tomador vai pagar no final com tributos, tarifas, seguros, custos relacionados ao registro de contrato e outras despesas cobradas na operação.
Isso quer dizer que analisar isoladamente a taxa de juros praticada, que já é altíssima, não é suficiente para constatar o quanto o banco está abocanhando de fato ao emprestar o dinheiro.
As reclamações em relação ao consignado são rotineiras e as instituições estão a toda hora sendo multados por causa de cobranças indevidas.
Entre janeiro e julho deste ano, foram registradas na plataforma do Governo Federal 40.663 reclamações relacionadas a isso. O número é 127% maior do que o registrado em todo o ano de 2019, segundo levantamento da Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon). Se considerada apenas a faixa etária acima dos 60 anos, a alta é ainda mais expressiva, de 157%, no mesmo intervalo de comparação.
As reclamações mais comuns decorrem da dificuldade de obtenção de informações básicas sobre os cálculos, sobre o saldo devedor, além da cobrança por serviço ou produto não contratado. Se isso ocorresse em países que levam mais a sério a proteção às finanças da população daria até cadeia pois a usurpação do dinheiro alheio é crime, é roubo. Mas aqui a agiotagem autorizada segue impune.
No Mato Grosso, os bancos estão fazendo uma verdadeira farra às custas dos servidores. Essa semana tive acesso ao holerite de um PM que contraiu uma dívida junto ao Banco BMG. O que ele está pagando de juros corresponde a um dia do seu salário na polícia e nem com malabarismo está dando para fechar as contas do mês. Um retrato que se soma à dura realidade do nosso estado.
Em agosto de 2020, cada consumidor inadimplente no MT tinha em média 1,932 dívidas em atraso. O número ficou acima da média da região Centro‐Oeste (1,876 dívidas por pessoa inadimplente) e acima da média nacional registrada no mês (1,810 dívidas para cada pessoa inadimplente).
Esse fenômeno do crescimento da modalidade de empréstimo via consignado não é uma prerrogativa só do servidor público. Muitas empresas privadas viram seus funcionários se endividarem da noite para o dia devido a facilidade do empréstimo direto na folha.
O que elas fizeram para conter a onda foi criar programas de educação financeira para orientar os funcionários. A Revista Você S/A mostrou o exemplo do Hospital Santa Paula, em São Paulo. Após a implementação do programa de educação financeira, a utilização do crédito consignado pelos funcionários caiu pela metade.
Uma boa alternativa que poderia ser adotada no Mato Grosso, mas que não parece estar na pauta do nosso Governador Mauro Mendes. Ele é mais um dos que assiste com indiferença o sistema financeiro arrancar o couro das nossas famílias. No modelo consignado, inclusive, sob a batuta da sua própria caneta.
Servidores públicos devem ficar alertas. Às vezes o que parece uma alternativa pode ser uma armadilha
O descaramento é tão grande que os bancos lançam toda hora campanhas de captação de clientes recheadas de vícios contratuais. E ficam naquela de se colar colou. Mas às vezes (muito raramente) os desvios são tão grotescos que eles são obrigados a retroceder. No mês de maio, o Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor do Ministério da Justiça aplicou uma multa de 1,2 milhão de reais no Banco Olé Bonsucesso Consignado por violação do Código de Defesa do Consumidor.
O banco, que opera livremente na folha de pagamento do Governo do MT, foi flagrado cobrando tarifa de confecção de cadastro, a chamada TCC, em operações de crédito consignado sem previsão contratual. Além de pagar a multa, o Bonsucesso teve que devolver o dinheiro aos consumidores.
Também no mês de maio, o Banco BMG, outro conhecido no holerite dos servidores de MT, teve que suspender os descontos incidentes nos salários, proventos e pensões dos funcionários, aposentados e pensionistas do Estado de Alagoas, que aderiram à modalidade de empréstimo consignado vinculado ao cartão de crédito.
A obrigação foi garantida pela Defensoria Pública do Estado através de uma ação civil pública depois que o órgão reuniu uma série de denúncias de condutas abusivas praticadas pelo BMG nessa modalidade contratual, como a oferta de cartões de créditos não solicitados, propaganda enganosa, prática de venda casada, juros abusivos e contratos confusos.
Um descalabro desses deveria culminar em prisão para os envolvidos. É assalto à mão desarmada. Golpe do mais baixo nível a luz do dia e sob a regência da nossa classe política, que perpetua e consolida esse crime defendendo a tese de que taxar juros no Brasil compromete a saúde do sistema financeiro. E a saúde da população?
É por isso que os servidores públicos devem ficar alertas. Às vezes o que parece uma alternativa pode ser uma armadilha. E está mais do que claro que para o governo do nosso estado a única coisa que importa é tabular a conta dos juros que serão cobrados na folha do trabalhador no início do mês. Como dizia Abraham Lincoln: “O princípio moral é um título menos lucrativo do que os juros financeiros.”
*EUCLIDES RIBEIRO JÚNIOR é advogado especialista em Recuperação de Empresas e Empresários Rurais e candidato ao Senado pelo Avante.
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