Rebaixamento para a segunda divisão. Denúncias de corrupção envolvendo até crianças. Aparelhamento de instâncias políticas e manipulação da opinião pública. Wagner Pires de Sá e Itair Machado fizeram no Cruzeiro uma das piores administrações da história. A análise é do jornalista especializado em negócios do esporte, Rodrigo Capelo (Globo Esporte)

A afirmação também tem base no resultado produzido por eles, respectivamente presidente e vice-presidente de futebol, nas finanças. As demonstrações contábeis referentes a 2019 mostram a degradação em tempo recorde de contas que já estavam ruins fazia alguns anos.

O deficit contabilizado no período foi o pior já registrado no futebol brasileiro, R$ 394 milhões. E não é só. O balanço apresentado no ano passado, referente a 2018, tinha apresentado um prejuízo de R$ 27 milhões. Este número foi revisto e reapresentado em R$ 78 milhões.

Os prejuízos, no entanto, talvez não sejam o melhor indicador para a tragédia cruzeirense. Para que entenda o que deu errado e o que vem pela frente, o torcedor deve passar pelas finanças em vários aspectos.

Aos números…

A comparação entre arrecadação na temporada e dívidas acumuladas dá a dimensão da crise. Em 2019, o Cruzeiro chegou a um endividamento três vezes maior do que o faturamento. E o detalhamento desses números mostrará como o caso é ainda pior do que parece.

Nas receitas, os direitos de transmissão ficaram na mesma ordem de outros grandes clubes, por volta dos R$ 100 milhões. O Cruzeiro foi beneficiado em 2019 pela disputa da Libertadores e por chegar à semifinal da Copa do Brasil, ambas competições com premiações altas.

Em 2020, tudo despencará. A cota da segunda divisão, por volta dos R$ 6 milhões, mal se compara ao que rende o Campeonato Brasileiro. Não há Libertadores. E a sequência da Copa do Brasil está arriscada por derrota para o CRB na primeira partida antes da pandemia.

A arrecadação com patrocínios caiu ao pior valor na década – corrigindo, logicamente, os números antigos pelo IPCA. Bilheterias e sócio-torcedor também caíram em meio à campanha que culminou no rebaixamento.

O quadro só não é ainda pior porque transferências de atletas – sobretudo a de Arrascaeta, marcante pela maneira como Itair Machado enfrentou o Flamengo – chegou a quase R$ 80 milhões. O problema nesta linha é: quantos jogadores sobraram para a venda?

Enquanto receitas despencaram, a gastança persistiu. Este problema vinha das administrações do antecessor Gilvan de Pinho Tavares – que endividou perigosamente o clube para ganhar troféus –, mas foi agravado em uma escala inimaginável por Wagner e Itair.

Apenas em remunerações do futebol profissional – uma linha que inclui salários, encargos trabalhistas, direitos de imagem, direitos de arena e premiações –, o Cruzeiro gastou quase todas as suas receitas. E ainda precisam ser considerados aumentos inexplicáveis em remunerações das áreas administrativas e social, além de outras despesas variadas.

Folha salarial do futebol
R$ 174 milhões em 2017
R$ 229 milhões em 2018
R$ 197 milhões em 2019

Folha salarial de sociais e administrativos
R$ 13 milhões em 2017
R$ 15 milhões em 2018
R$ 17 milhões em 2019

Despesas administrativas
R$ 11 milhões em 2017
R$ 23 milhões em 2018
R$ 47 milhões em 2019

O que são exatamente essas despesas administrativas? O balanço cruzeirense não as detalha. É correto presumir que se refiram a materiais comprados, serviços prestados por terceiros, manutenção de sedes e prédios administrativos, mas só mesmo com uma nota explicativa seria possível apontar o que aumentou. A nota não existe.

É oportuno lembrar dos pontos levantados pela reportagem veiculada pelo Fantástico em 26 de maio de 2019. Dirigentes como Itair Machado e Sérgio Nonato atribuíram a si mesmos salários muito acima do mercado. Empresários irregulares receberam comissões. Conselheiros foram colocados na folha de pagamentos, líderes de torcidas organizadas também. Até jornalistas recebiam dinheiro da diretoria.

O balanço ajuda a dimensionar a gastança com todas as partes que sustentaram a administração de Wagner e Itair, ainda que não entre em detalhes sobre a maior parte das despesas contabilizadas.

O resultado prático da diferença entre os números apresentados até este ponto (receitas menos despesas) você já sabe. Prejuízo. E esse prejuízo virou uma dívida para a qual não existe solução fácil.

Não apenas o endividamento do Cruzeiro disparou como um todo, explodiram as suas dívidas de curto prazo – aquelas que supostamente seriam pagas no decorrer de 2020, caso não fosse um caso de falência.

Para que fiquem mais claras as dívidas cobradas em curto prazo, até porque são elas as mais complicadas para um clube que está na Série B, paralisado pela pandemia do coronavírus, essas são as principais linhas:

Empréstimos e financiamentos
R$ 34 milhões em 2017
R$ 51 milhões em 2018
R$ 66 milhões em 2019

Nos empréstimos bancários, existem agravantes. Para que um banco aceite emprestar dinheiro a um clube de futebol, ele coloca duas condições: juros e garantias de pagamento. Neste caso, foram entregues a instituições financeiras os direitos de transmissão até 2022. O pouco que o Cruzeiro receberá na Série B está comprometido.

Salários e ordenados
R$ 37 milhões em 2017
R$ 30 milhões em 2018
R$ 62 milhões em 2019

Nos salários atrasados, estão os valores que nos próximos meses e anos serão cobrados por ex-atletas e ex-funcionários na Justiça. Notícias sobre penhoras e bloqueios de receitas, judicialmente, terão começado aí.

Obrigações sociais
R$ 15 milhões em 2017
R$ 41 milhões em 2018
R$ 66 milhões em 2019

Nas obrigações sociais, estão impostos correntes que o Cruzeiro não pagou. Na verdade, clubes são isentos da maior parte dos tributos. Restam impostos de natureza trabalhista, como o repasse do Imposto de Renda que a direção retém dos pagamentos aos atletas, mas não repassa ao governo. O dinheiro não pertence ao clube. Existe consenso entre advogados de que existe crime de apropriação indébita neste caso.

Obrigações tributárias
Zero em 2017
R$ 5 milhões em 2018
R$ 247 milhões em 2019

Nas obrigações tributárias, está o efeito da exclusão do Cruzeiro no Profut. Como a diretoria não pagou impostos correntes, apesar das cobranças por parte do governo, o clube está fora do programa que havia permitido o refinanciamento em 20 anos. O dinheiro que precisaria ser desembolsado em longo prazo foi reclassificado para o curto.

Títulos a pagar
R$ 65 milhões em 2017
R$ 97 milhões em 2018
R$ 112 milhões em 2019

E nos títulos a pagar estão vários tipos de contas, sobretudo compras de jogadores e comissões a agentes. Dívidas contestadas na Fifa, inclusive a que acarretou a perda de seis pontos na Série B, estão nesta linha.

Nota técnica: no gráfico abaixo, apenas parcelamentos tributários vigentes estão em “fiscal”. Cobranças de impostos não parceladas estão em “trabalhista”, junto de salários, até porque os impostos em questão têm esta natureza. Dívidas com clubes e agentes estão em “outros”.

Wagner Pires de Sá e Itair Machado deixaram com inveja até mesmo os piores dirigentes da história do futebol brasileiro. Enquanto muitos levaram anos para quebrar seus clubes, ex-presidente e ex-vice-presidente de futebol acabaram com o Cruzeiro em apenas dois.

Não há saída imediata por meios ordinários. Se tentar resolver a tragédia financeira fazendo apenas o básico – elevar receitas, reduzir despesas, renegociar dívidas e usar algum excedente de caixa para pagá-las –, este processo poderá levar uma década inteira e nem assim acabar.

Nem dá mais para contar que o mecenato resolverá tudo. Por mais que coloquem dinheiro a fundo perdido conselheiros como Pedro Lourenço, dono dos Supermercados BH, as dívidas ficaram grandes demais até para patrimônios pessoais de empresários como ele.

Com o retrato mais recente das finanças, o cruzeirense precisa considerar saídas não experimentadas por outros clubes na história do futebol brasileiro. Falência ou recuperação judicial, ainda que mudanças legislativas sejam necessárias, para que bens e marca possam ser vendidos e usados para pagar coletivamente todos os credores.

Não há solução fácil ou amigável para o que fizeram ao Cruzeiro. (Rodrigo Capelo/Globo Esporte)