Sob pena de gancho, os árbitros de futebol no Brasil não podem ter barba e, por isso, precisam se apresentar de cara limpa aos jogos em que são escalados. Não podem ter cabelo grande – com exceção das mulheres, é claro. Também é de bom tom evitar tatuagens. Anderson Daronco recentemente até fez uma no braço, mas só depois de se consolidar na elite da arbitragem, com seis anos de quadro da Fifa, e ainda assim numa região em que a manga da camisa cobre mais da metade do desenho.
Todas essas são regras veladas. Fazem parte da cultura da arbitragem, embora não estejam escritas em lugar algum – e há vários exemplos de quem foi punido por descumpri-las. Mas há também as normas restritivas descritas em regulamento. Como, por exemplo, a de que árbitros não podem ter nome sujo no Serasa ou SPC, instituições que avaliam crédito e dívidas; os limites de idade que sobrepõem a capacidade física e técnica; e a obrigação de manter “boa conduta e elevada postura moral” fora das quatro linhas.
Há pouco tempo, no Rio de Janeiro, alegando que havia recebido reclamações sobre o tema, a comissão de arbitragem oficializou por meio de um comunicado a necessidade de estar “bem apresentado e asseado” na chegada ao estádio. Ter asseio significa estar limpo, higiênico.
Diante desse cenário, existe o que ex-árbitros e gente do meio chamam de “lei da mordaça”. Como juízes e bandeirinhas recebem por jogo trabalhado (apesar de não haver o vínculo empregatício que lhes garanta direitos trabalhistas), eles dependem exclusivamente de quem faz a escala para conseguir botar dinheiro no bolso. Com o risco de retaliações, portanto, não falam, não postam e não dão entrevistas.
– Os árbitros pouco se posicionam – reconhece Salmo Valentim, presidente da Associação Nacional dos Árbitros de Futebol, única instituição de representatividade da classe a nível nacional. – Só para ter uma ideia, no grupo de árbitros da CBF, só quem pode falar são os membros da comissão nacional, o árbitro não tem direito a falar.
Procurador-geral do Ministério Público do Trabalho, Alberto Bastos Balazeiro criou no início deste mês um Grupo Especial de Atuação Finalística (GEAF) para apurar especificamente as condições em que se dão a formação e o recrutamento de árbitros no Brasil. A partir de uma denúncia feita pelo Sindicato dos Trabalhadores da Arbitragem Esportiva, o Sintrace-RJ, de abuso de poder e represálias, cinco procuradores foram designados para levantar a discussão sobre a relação de subserviência dos profissionais do apito com federações e CBF.
– A gente foi demandado porque acontece de o sujeito ingressar (no quadro nacional), mas nunca ser chamado para um jogo, ficar três meses sem apitar. Daí é chamado para outro, só que não pode porque está trabalhando como professor de educação física em algum lugar ou alguma outra atividade. E aí nunca mais é chamado – explica o procurador Rafael Garcia Rodrigues, coordenador do grupo.
– A constituição garante o direito não só do trabalho, previsto especialmente na CLT, mas ela também garante direito ao trabalho. Se eu quero ser árbitro de futebol, eu tenho direito de ser árbitro de futebol. E, se por um acaso não sou chamado para trabalhar, devem existir critérios que estabelecem os motivos de eu não ter sido chamado. Pelo que estamos levantando ainda de forma muito preliminar, isso inexiste ou pelo menos não é claro – acrescenta ele.
Os movimentos do Ministério Público em prol da classe têm sido mais frequentes nos últimos anos, embora quase nada tenha mudado na prática. Em 2016, o órgão entrou com ação contra a CBF para retirar as certidões negativas de SPC e Serasa dos pré-requisitos para ingressar na Seleção Nacional de Árbitros de Futebol (SENAF), que é o quadro nacional. A alegação é de que se trata de uma prática discriminatória, mas a CBF venceu nas duas primeiras instâncias com o argumento de que árbitros devedores são mais frágeis numa indústria que movimenta milhões. O processo está no momento nas mãos de um desembargador do Tribunal Superior do Trabalho.
Na decisão anterior, a juíza do Trabalho Patrícia Lampert Gomes concordou com a defesa da CBF, pois trata-se de “um mercado que movimenta expressivas quantias no país e no exterior, representando um esporte que faz parte da própria cultura nacional, (portanto) é natural a preocupação quanto à ocorrência de desvios de conduta em relação à arbitragem, em razão da sua influência em resultados de jogos e campeonatos, especialmente diante da realidade de denúncias de corrupção e de escândalos que envolveram a própria ré em passado recente”.
Em julho de 2017, dessa vez com maior acompanhamento da mídia, o MPT voltou a acionar a CBF na Justiça. O motivo: cotas de patrocínio em camisas que não foram repassadas para a arbitragem. A entidade foi condenada em agosto de 2018 a pagar uma receita milionária aos árbitros, além de multa de R$ 2 milhões por danos morais coletivos. A CBF recorreu. A exemplo do primeiro processo, esse também está no TST, que é a última instância.
O grupo recém-constituído ainda está em fase de recolhimento de depoimentos e informações, mas os trabalhos do MPT partem de um entendimento prévio de que a estrutura da arbitragem brasileira precisa mudar. O ge ouviu nas últimas semanas árbitros, ex-árbitros, representantes da classe, CBF e federações para traçar o panorama de juízes e bandeirinhas brasileiros e entender a vida do profissional cuja responsabilidade é legitimar o resultado do esporte mais popular do país.
A MILITARIZAÇÃO
Então recém-formado pelo curso de arbitragem da federação do Rio, Geovane Jorge Xavier Heringer foi suspenso do quadro carioca por tempo indeterminado em agosto de 2015. O comunicado oficial publicado no site da comissão da arbitragem, a Coaf-RJ, justificava a punição pela “péssima aparência” com que Geovane apitou a partida entre Cruzeiro e Brasileirinho, pelo Campeonato Amador da Capital. Ele atuou com a barba por fazer.
Geovane explicou ao ge que naquela semana estava acometido de uma alergia no rosto e que, por isso, não pôde fazer a barba: “Eu errei em não avisar”, acredita.
Ele conseguiu desfazer a punição assim que comprovou à comissão que a aparência se deu por necessidade médica, cerca de duas semanas depois. Professor de educação física, o árbitro de 27 anos ainda pertence ao Módulo Azul da Ferj e apita partidas das categorias de base de vez em quando – não sem antes se barbear.
Não há uma linha sequer em regulamentos de federações, CBF ou mesmo no livro de regras da Fifa que verse sobre a aparência estética de árbitros de futebol. Mas esses profissionais aprendem desde cedo, ainda em sua formação, que existe uma regra velada de que não podem apitar ou bandeirar de barba. Basta notar que não existe árbitro barbudo no Brasil. Procurada, a Comissão Nacional de Arbitragem negou que proíba barba e tatuagens.
Diferente de agora, o bigode antigamente era até comum: são os casos de Dacildo Mourão, Cabelada e Wagner Tardelli, por exemplo, todos juízes dos anos 80 e 90. Árbitros e ex-árbitros ouvidos pelo ge contam que não houve uma recomendação para deixar de usar bigode, ele só saiu da moda mesmo. O comentarista da Globo Salvio Spinola até brinca: “O bigode era o contrário da barba, eles falavam que era bom ter porque o jogador respeitava mais”.
No caso dos homens, as restrições estéticas também se aplicam ao tamanho do cabelo. O carioca Álvaro Quelhas, que nos últimos anos da carreira atuou por Minas Gerais, depois de ser sacado do quadro do Rio por um desentendimento com o então presidente da federação, o falecido Eduardo Viana, sempre manteve o cabelo baixo. Ele foi árbitro Fifa por cinco anos, entre 2000 e 2004.
Em 2008, prestes a ser retirado do quadro da CBF pelo limite de idade, que era de 45 anos, Álvaro começou a deixar o cabelo crescer e notou que estava sendo deixado de lado nas escalas. Quando escalado, apitava apenas jogos de Série B ou C do Brasileiro.
– Aí ele (Sérgio Corrêa, então presidente da comissão) me mandou um recado através de um amigo. Disse que eu parecia desmotivado, que estava com o cabelo grande – contou Álvaro, que por outro lado desconfia que o chefão da arbitragem “usou esse negócio do cabelo como argumento”, porque não ia muito com a sua cara.
Álvaro Quelhas (centro) deixou o cabelo crescer no fim da carreira
Na esteira de um cenário em que a barba é proibida e o cabelo precisa estar sempre baixo ao agrado de seus superiores, o árbitro de futebol lembra um militar. É o que explica o pesquisador Gabriel Correia, que entrevistou 21 ex-árbitros mineiros para sua dissertação do Mestrado em administração pela UFMG. Ele foi o vencedor do Prêmio Brasil de Dissertações sobre Futebol, no mês passado.
– O árbitro precisa se apresentar sempre com a barba bem feita, postura firme, ser claro na tomada de decisão. Com o gestual, se puder, sempre muito claro para todos entenderem qual é a tomada de decisão naquele momento. Isso passa pela hierarquia, eles estão numa posição hierárquica inferior. Se eles são inferiores, existe então uma posição de comando superior que manda, e eles devem obedecer. Então é proibido que o árbitro tenha barba. Mas, espera aí, e se o árbitro quiser ter barba? Ele não vai ter porque existe uma federação acima que dita como ele deve ou não servir – elucida Gabriel, que tem 27 anos.
O processo de militarização, na opinião dele, começa na transformação da Confederação Brasileira de Desportos (CBD) em Confederação Brasileira de Futebol em 1979, momento em que o Brasil estava mergulhado na ditadura militar. E se estende até hoje. O primeiro presidente da CBF, Heleno Nunes, era militar – a exemplo do Coronel Nunes, que sentou na cadeira da presidência até Rogério Caboclo assumir o posto, em 2019.
Até hoje, o número de árbitros e assistentes oriundos de força de segurança e controle é significativo – a quarta categoria, conforme gráfico abaixo. Este número já foi maior. Em 2014, outra reportagem do ge apontava mais de 40 pessoas do quadro nacional da CBF nesta área.
– Os presidentes dessas instituições eram coronéis e pessoas ligadas ao período militar. Essa cultura vinda desse período se manteve dentro das confederações e federações. A forma com que esses sujeitos lidam com o jogo de futebol ainda tem interferência dessa cultura ditatorial, dessa cultura que não aceita que o árbitro tenha uma tatuagem, uma barba grande, um cabelo descolado, porque isso vai dar menos credibilidade ao resultado do jogo. O árbitro ali faz parte de um espetáculo, ele está ali para legitimar esse espetáculo. Então, essas pessoas estão preocupadas com a forma com que esse resultado será legitimado. Se colocar uma pessoa descolada, de barba grande, cabelo grande, para eles a imagem que passa é que o resultado pode ser contestado, porque não é uma imagem de segurança, de firmeza. Mesmo que essa pessoa tenha competência física, tática e técnica – arremata o pesquisador.
A denúncia do Sindicato do Rio que originou o grupo especial de atuação foi desmembrada em vários inquéritos no MPT, e um deles tem a missão de apurar justamente se essas exigências estéticas por parte da comissão de arbitragem da CBF configuram discriminação.
– Uma limitação que um empregador imponha a um trabalhador tem que ter relação com o trabalho executado. Temos que fazer uma análise mais profunda, mas a princípio eu penso: o que que uma barba pode prejudicar? – indaga o procurador Artur Azambuja, responsável pela investigação que ainda está em fase inicial.
Outro ponto investigado no inquérito de Azambuja é o limite de idade. O quadro nacional, por exemplo, só aceita o ingresso de árbitros de até 38 anos. Uma vez dentro da relação, eles só podem ficar até 45, caso pertençam à categoria C/D (que atuam preferencialmente em jogos das Série C e D do Brasileiro), e 55 no caso de outras categorias. A nível estadual, esse limite varia de federação para federação.
Um dos árbitros mais reconhecidos do futebol brasileiro, Marcelo de Lima Henrique foi retirado do quadro do Rio este ano porque vai completar 50 em agosto. No entanto, ele segue no quadro da CBF e inclusive apitou o primeiro jogo da final da Copa do Brasil entre Palmeiras e Grêmio, em fevereiro. Marcelo, que pertence à categoria Master por ter sido árbitro Fifa, pode atuar em qualquer partida do Brasileiro no máximo pelos próximos cinco anos, mas seus dias de Campeonato Carioca chegaram ao fim.
Em 2017, o presidente da comissão carioca Jorge Rabello disse em comunicado oficial que, aos 45 anos (que era o limite até então), “é hora de largar a teta da vaca”.
“O processo de renovação é cíclico e vai continuar (precisamos cuidar para que a vaca continue dando leite)”, justificou.
“ASSÉDIO MORAL”
– Sempre existiu a canetada, a verdade é essa. A CBF e as federações têm a caneta. Você só vai para a CBF se estiver em uma federação. Você tem que estar bem com sua federação local e, depois, ir para a CBF. Se se indispuser, você não vai para a CBF.
O depoimento acima é de Dacildo Mourão, ex-árbitro cearense de prestígio – ele ficou muito conhecido nos anos 1990 pelo episódio de preconceito regional de Edmundo, que disse “viemos na Paraíba e botam um ‘paraíba’ para apitar”, num jogo em Natal (RN), contra o América. Aos 59 anos, ele se tornou um crítico contumaz da arbitragem, principalmente das práticas da federação local no seu estado.
Até certo ponto, o sistema da arbitragem brasileira é simples de entender: os árbitros são formados pelas escolas das federações estaduais, que no fim de cada ano indicam à CBF aqueles que estão aptos para ingressar no quadro nacional. Os candidatos precisam atender a algumas exigências da CBF, como o mínimo de três anos de diplomação e ter atuado em ao menos oito jogos da primeira divisão do estado, por exemplo. Uma vez preenchidos esses requisitos, os critérios de indicação dependem de cada federação – e é aí que repousa o lado obscuro do processo.
– Dentro dessas entidades, existe uma equipe que avalia os árbitros. Mas por que, então, não são os 10 melhores nesse ranking os indicados para o quadro da CBF? E, dentro do quadro da CBF, por que não são os 10 ou cinco melhores os indicados para o quadro da Fifa? Existem outras questões aí que eles não falam, mas que interferem na arbitragem. Que são questões políticas, pessoais que não se relata – afirma o pesquisador Gabriel Correia.
São Paulo e Rio de Janeiro são as federações com o maior número de árbitros no quadro da CBF. Ao ge, a FPF explicou que, “por meio da Comissão Estadual de Arbitragem, indica os profissionais levando em conta o desempenho na última temporada, o número de jogos apitados na divisão principal do Estadual e a faixa etária dos profissionais”. Por sua vez, a Ferj afirmou que os critérios são “totalmente técnicos” e que se baseia principalmente em relatórios dos seus analistas e nos resultados de “avaliações físicas e teóricas” no momento da indicação.
Sancionada pela então presidente Dilma Rousseff em outubro de 2013, a Lei nº 12.867 determina que o árbitro de futebol é um trabalhador autônomo e dá a ele a possibilidade de se organizar em associações para reger a própria classe – como acontece na Inglaterra, onde a Professional Game Match Officials Limited (PGMOL) recruta, treina e remunera os juízes e assistentes que atuam nas competições da FA; ou na Itália, país onde tudo que diz respeito à arbitragem fica sob responsabilidade da Associazione Italiana Arbitri (AIA), organização que funciona de maneira independente da federação e cujos presidentes são eleitos pelos próprios árbitros.
Só que, na prática, os árbitros brasileiros ainda não se organizaram em entidades e continuam numa relação de dependência com seus “patrões”, que são a CBF e as federações.
– A lei determinou que o árbitro é um prestador de serviço autônomo. Você pode contratar um pedreiro autônomo e, se ele não fizer nenhum serviço bem feito, você não contrata mais. A diferença é que, se você não contrata, outros 210 milhões de brasileiros podem contratar. O árbitro não, ele só tem um empregador, só uma entidade a nível nacional e as 27 federações a quem ele tem que ser filiado – diz o comentarista e ex-árbitro Salvio Spinola, que cita como exemplo o caso de Guilherme Mandetta, que saiu do Brasil após trocar farpas com a CBF e agora tenta dar sequência à carreira nos Estados Unidos.
“Não tem segurança jurídica e financeira nenhuma nesse modelo de trabalho no Brasil. Eu sempre falo que é a atividade profissional no Brasil com o maior assédio moral que se pode encontrar. Se ele não se dá bem com a CBF, ele não vai conseguir mais nenhum emprego e não vai mais trabalhar em lugar algum”, conclui Salvio.
É a tal da “canetada”, como se refere Dacildo. E os exemplos são inúmeros.
Janderson Bandeira se inscreveu no curso de arbitragem da federação cearense em 2014, ainda muito desacreditado por causa de seu peso – um dos testes mais rigorosos na carreira do árbitro de futebol é o físico. Mas ele se empenhou numa rotina de alimentação saudável e exercícios e conseguiu perder 45 quilos até o início de 2015, quando concluiu a formação. Tornou-se praticamente outra pessoa para poder apitar.
Janderson emagreceu 45kg para se tornar árbitro
Como é de praxe, ele começou apitando jogos da base para, em seguida, ser inserido no profissional. Fez jogos importantes da Série C do estadual, depois da Série B. “Eu descobri que tinha o dom mesmo, porque você sabe que árbitro é dom, né?”, comenta. No fim de 2018, Janderson foi promovido ao quadro CBF Eventual, uma espécie de seleção de árbitros aspirantes ao quadro nacional que existe no Ceará. Passou a viver expectativa de entrar para a elite da arbitragem do Brasil.
O árbitro de 32 anos, que naquele momento já havia pedido dispensa do emprego de vigilante para se dedicar integralmente ao apito, conta que perdeu espaço desde a mudança na diretoria da comissão de arbitragem cearense. A relação com o presidente Paulo Sílvio piorava à medida que sua promoção foi sendo adiada. Até que se tornou insustentável em abril de 2020, quando fez contato com Paulo para saber se árbitros CBF Eventual receberiam o auxílio anunciado por Rogério Caboclo.
Diante da negativa (o dinheiro era apenas para árbitros CBF), Janderson discutiu feio com o presidente da comissão e saiu por conta própria dos grupos da arbitragem num ataque de raiva. Pouco depois, descobriu que não fazia mais parte do quadro cearense. “Eu batalhei muito”, lamenta ele. “Aqui é assim: ou você faz o que eles mandam ou fica isolado”.
Ao ge, a comissão de arbitragem cearense negou que tenha havido retaliação e informou que a decisão de sair do quadro partiu do próprio Janderson: “Se ele mudasse de ideia, o receberíamos de braços abertos”. Disse que ele “estava em um processo de evolução”, que chegou a ser promovido de categoria sob o comando da atual gestão e que o ingresso na CBF “era questão de tempo”.
O CASO CEARENSE
Assistente CBF desde 2007, com vários jogos de Série A do Brasileirão no currículo, Carolina Romanholi também alega retaliação por problemas com o atual chefão da arbitragem cearense. O ge teve acesso ao áudio da reunião realizada em abril do ano passado, em que Carol foi comunicada do desligamento do quadro nacional. A comissão disse que colocaria em seu lugar uma bandeirinha que havia feito o teste físico masculino – procurada, a Comissão Nacional de Arbitragem negou que esse critério exista.
Paulo Sílvio –
Aquelas que atenderam aos índices que a CBF exige… E não estamos falando aqui em questão de qualificação técnica, a sua qualificação técnica com relação a da Camila e com relação a da Carol é indiscutível, você tem uma qualificação técnica maior. Mas, dentro do processo futuro, a gente sabe que a maior dificuldade do feminino é o teste físico. Então a gente precisa priorizar as meninas que têm facilidade e condição de passar no teste masculino.Carolina – Tá, mas você acabou de me dizer que eu não vou ter oportunidade de tentar o masculino. Porque, se eu tentar, eu passo.
Paulo Sílvio – Porque a gente só tem duas vagas.
Carolina – Tá, mas e se eu passar? A minha história não conta?
Paulo Sílvio – E se você não passar?
Carolina – Vamos lá, a gente está trabalhando em cima do “se”. Se eu passar ou se eu não passar. Se eu for lá e passar, a vaga tem que ser minha. Só que você não está me dando a chance de tentar fazer uma coisa que é um direito meu, que a CBF me dá.
Paulo Sílvio – Não, não, não. Não é direito, não existe vaga da CBF. Desde que a gente assumiu a comissão, a gente vem falando pra todos: que a vaga da CBF é da federação.
Carolina – Pronto, então você tem que dizer o seguinte: Carol, eu não lhe quero mais no quadro e eu vou lhe tirar. E não dizer que vai botar outra e que eu não vou ter oportunidade de fazer o meu teste.
Em seguida, diante da acusação de injustiça e favorecimento à outra árbitra, o presidente da comissão de arbitragem citou o histórico de desentendimentos com Carolina.
Carolina –
Eu estou vendo que ela não está entrando por mérito, porque ela não passou. E, pra minha felicidade, eu tenho os vídeos que ela não passou no teste dela porque me enviaram. Se ela entrar, eu vou ser obrigada a mostrar que ela não passou no teste físico.Paulo Sílvio – Certo, faça isso! Você tá só fazendo o que você sempre fez.
Carolina – Exatamente. Ninguém respeita minha história. Ninguém respeita minha história, eu fiz o que fiz, trabalhei em Série A e ninguém respeita minha história.
Carolina Romanholi, 34 anos, decidiu abrir mão da carreira e não trabalha mais com arbitragem de futebol. Ela é casada desde 2016 com o também árbitro Uilian Verly, que foi desligado do quadro cearense horas depois de sua esposa. Verly questionou Paulo Sílvio sobre o motivo do desligamento e ouviu como justificativa que a comissão estava atendendo a uma solicitação dele próprio.
Uilian Verly afirma que nunca pediu para deixar de ser árbitro.
Sobre Carolina, a comissão cearense disse que a decisão de fazer o teste masculino ou feminino cabe a cada árbitra: no dia marcado para a avaliação, Carol optou pelo feminino, enquanto Camila Sousa, que ficou com seu lugar no quadro da CBF, escolheu o masculino. Sobre a frase “você tá só fazendo o que você sempre fez”, Paulo Silvio diz que se referiu ao “comportamento desrespeitoso (de Carolina) com a hierarquia e contra suas colegas”. Com relação a Uilian Verly, a comissão reafirmou que a saída se deu após o próprio árbitro “comunicar o seu desligamento em reunião” – o ge solicitou alguma prova da existência dessa reunião, mas não teve a solicitação atendida.
A mineira Janette Arcanjo não sabe até hoje, seis anos depois, o motivo pelo qual foi jubilada. Primeira mulher a bandeirar no clássico Cruzeiro x Atlético-MG na Série A do Brasileiro, ela ingressou no quadro da Fifa em 2012 e trabalhou, por exemplo, no Sul-Americano Sub-17 na Bolívia, Copa América no Equador e fez vários jogos da Libertadores – todos pelo futebol feminino. Em 2015, ela foi a única representante brasileira na Copa do Mundo do Canadá. A CBF na ocasião até comemorou com reportagem em seu site: “Janette é o Brasil na arbitragem da Copa”.
Logo depois do Mundial, quando estava na Colômbia a serviço da Conmebol na Libertadores, Janette sentiu algo estranho no ar.
– Eu estava junto de outra árbitra brasileira e ela recebeu a mensagem sendo parabenizada por ter continuado no quadro internacional. Eu pensei em dar um tempo, vai ver estavam mandando para todo mundo e a minha mensagem ia logo chegar – conta ela, antes de completar desapontada. – Mas a minha mensagem nunca chegou.
De uma hora para outra, Janette estava fora do quadro da Fifa. Ela perguntou à CBF o motivo, mas o que recebeu em contrapartida foram respostas vazias. “A CBF é quem detém o escudo, é ela que dá e é ela que tira. Então foi uma coisa que partiu deles. Não tive justificativa, não diseram nada, nada”, queixa-se ela. Depois de 15 anos de carreira (sete de CBF e três de Fifa), desanimada, ela saiu da arbitragem para se dedicar à vida de professora.
A LEI DA MORDAÇA
Na ação em que o Ministério Público do Trabalho tenta suspender a cobrança de certidões negativas de SPC ou Serasa, pesou a favor da CBF o fato de não haver depoimentos de árbitros nos autos do processo. “Esta situação permite concluir que as pessoas de bem, sérias, honestas e íntegras não se sentem violentadas com a conduta do tomador dos serviços”, escreveu o desembargador Álvaro Luiz Carvalho Moreira em decisão na segunda instância.
Ao ge, o procurador Artur Azambuja, responsável também por essa ação, reconheceu que a dificuldade de encontrar árbitros que queiram falar é um dos maiores empecilhos. Ele diz que dispensa depoimentos que possam causar retaliações para evitar de ter que “apagar fogo” mais adiante.
“Na arbitragem, impera a lei da mordaça, é uma estrutura extremamente autoritária”, crava o ex-árbitro Álvaro Quelhas.
O ex-árbitro Marçal Rodrigues Mendes é o atual presidente do Sintrace-RJ, instituição responsável nos últimos anos por diversas denúncias que viraram inquéritos no Ministério Público do Trabalho – entre elas a que originou o grupo especial de trabalho instituído no mês passado. Ele endossa as palavras de Quelhas.
– A lei da mordaça é um costume escravocrata. Da era da escravidão, em que ninguém podia falar. A forma de manter seus interesses sem nenhum tipo de interferência é manter o árbitro calado. Vai que o árbitro, de maneira involuntária, emprega mal uma frase, deixa em aberto alguma situação que possivelmente pode ferir algum interesse dentro dessa instituição? – indaga Marçal.
Abrir a boca pode culminar em “geladeira”, que em muitos casos significa privar o árbitro de sua principal fonte de renda. Embora a exigência de preservar uma profissão paralela exista justamente para evitar que isso aconteça, grande parte desses profissionais depende do dinheiro que vem do apito para pagar as contas no fim do mês. “É um dinheiro que ajuda, sim”, sentencia Janette Arcancjo.
Na Série A do Brasileirão do ano passado, a taxa para árbitro central Fifa ou Master foi de R$ 5 mil por jogo (veja valores abaixo). Em janeiro, Raphael Claus, árbitro Fifa apontado como um dos melhores em atividade no país, apitou cinco partidas da Série A: Sport 1 x 0 Fortaleza, Vasco 3 x 0 Botafogo, Grêmio 1 x 1 Atlético-MG, Sport 2 x 0 Bahia e Fluminense 3 x 0 Goiás. Levando em conta Marcílio Dias 1 x 1 Altos (pela Série D) e Ypiranga 1 x 0 Paysandu (pela Série C), que também tiveram Claus como árbitro principal, o personal training faturou no mês R$ 31.700 só com taxas – isso sem contar as diárias.
Série A 2020 (Fifa/Master e Básica)
- Árbitro central – R$ 5 mil e R$ 3.600
- Assistente – R$ 3 mil e R$ 2.160
Série B 2020 (Fifa/Master e Básica)
- Árbitro central – R$ 3.900 e R$ 2.600
- Assistentes – R$ 2.340 e R$ 1.560
Série C 2020 (Fifa/Master e Básica)
- Árbitro central – Fase classificatória: R$ 2.900 e R$ 1.400 / a partir da 2ª fase: R$ 3.300 e R$ 1.500
- Assistentes – Fase classificatória: R$ 1.740 e R$ 840 / a partir da 2ª fase: R$ 1.980 e R$ 900
Série D 2020 (Fifa/Master e Básica)
- Árbitro central – Fase classificatória: R$ 2.400 e R$ 975 / a partir das oitavas: R$ 3.350 e R$ 1.260
- Assistentes – Fase classificatória: R$ 1.440 e R$ 585 / a partir das oitavas: R$ 2.010 e R$ 760
Copa do Brasil 2021 (Fifa/Master e Básica)
- Árbitro central – 1ª a 3ª fases: R$ 2.720 e R$ 2.300 básica / 4ª e 5ª fases: R$ 5.230 e R$ 3.760 / semifinal: R$ 7.840 e R$ 5.640 / final: R$ 10.450 e R$ 7.525
- Assistentes – 1ª a 3ª fases: R$ 1.630 e R$ 1.380 / 4ª e 5ª fases: R$ 3.140 e R$ 2.260 / semifinal: R$ 4.700 e R$ 3.390 / final: R$ 6.270 e R$ 4.515
Presidente da Associação Nacional dos Árbitros, a Anaf, Salmo Valentim deixa claro que a luta da classe não tem nada a ver com os valores das taxas – que inclusive aumentaram em 2020, ano de pandemia. Mas, sim, pelo fato de que são poucos os que conseguem chegar no patamar mais alto da estrutura da arbitragem brasileira.
– Se você me pergunta: você acha muito ou pouco (o valor das taxas)? Se analisar o Brasil, o cara que apita a Série A recebe R$ 5 mil livres por jogo, mais R$ 720 de diária, mais passagem aérea paga, para sair de casa um dia e atuar 90 minutos. Eu vou dizer que poucos brasileiros têm uma oportunidade dessa. Então eu posso dizer que estou bastante satisfeito – afirma Salmo.
“Só que o grande problema da arbitragem é o número excessivo de árbitro nos quadros, são muitos árbitros com poucas oportunidades. Esse cara que está embaixo não consegue chegar na ponta e ganhar bem”, completa.
No mesmo mês em que Raphael Claus pôs mais de R$ 30 mil no bolso, seu colega Daniel Alejandro Idalgo, um dos dois solitários representantes de Roraima no quadro nacional, recebeu R$ 300 pelo único jogo em que atuou: foi quarto árbitro de São Raimundo 3 x 4 Galvez, pela Copa Verde. José Ordilo Soares, o outro juiz roraimense, não foi escalado em janeiro. Perguntamos à CBF quantos dos mais de seus 600 profissionais foram escalados na última temporada. “Todos os habilitados física e teoricamente”, limitou-se a responder a Comissão Nacional de Arbitragem.
O QUE MUDAR?
Afinal de contas, se o sistema atual aparentemente está errado, qual seria o modelo ideal para a arbitragem brasileira?
Marçal Rodrigues parte do princípio de que é “imprescindível que haja a independência dos árbitros”. Ex-Fifa com quase 900 partidas no currículo, Salvio Spinola por sua vez sugere que a CBF comece a formar seus próprios árbitros em vez de “pegar emprestados” os das federações.
– Antigamente, o campeonato estadual era muito mais importante que o campeonato nacional. Hoje é fato que o nacional é muito mais importante do que o estadual. Com essa mudança radical, o que mudou na arbitragem? Zero. O que eu estou querendo dizer é: antes, quem formava eram as federações, porque elas tinham um papel muito importante. E, quando ia começar o campeonato nacional, a CBF pegava esses árbitros emprestados. Mas isso mudou com o Estatuto do Torcedor em 2003, você vê… quanto tempo faz, quase 20 anos, e a estrutura de formação de árbitros não mudou nada – critica.
Salvio acredita que passou da hora de deixar de haver árbitros da federação paulista, gaúcha, paranaense… Na opinião dele, os árbitros precisam ser da CBF. Também seria uma solução para o frequente conflito de escalas que impede, por exemplo, que o carioca Wagner do Nascimento Magalhães apite um jogo do Flamengo ou que o mineiro Igor Junio Benevenuto trabalhe em partidas do Atlético-MG. “Tinha que contratar o árbitro de abril a dezembro. Fazer um contrato e remunerar para que ele possa apitar a competição”, conclui o comentarista.
A ideia também passa pela cabeça do presidente da Anaf. Embora não exatamente agora ou no ano que vem. “Eu acredito que, em três ou cinco anos, isso possa acontecer no Brasil. Não da maneira que se pensa, mas pelo menos haver um grupo seleto”, opina Salmo Valentim.
A estrutura sugerida é muito parecida com o atual modelo inglês de arbitragem, mas não precisa ir tão longe para se apegar a um bom exemplo. Em Santa Catarina, os esforços entre “patrão” e sindicato de árbitros convergem de tal maneira que o ex-presidente do Sinafesc, Marco Antônio Martins, assumiu a vice-presidência da federação e é o atual chefe da comissão de arbitragem do estado.
O sindicato catarinense é o responsável pela formação dos profissionais e tem voz ativa em outras frentes, como na negociação de patrocínios, por exemplo. Também é o único estado do Brasil em que árbitro recebe por direito de transmissão. Desde 2011, 1% da verba de TV do estadual é destinado à classe: metade vai para o sindicato e a outra metade direto para o bolso do árbitro. Martins se coloca como um defensor da luta sindical, embora, à frente da comissão, tenha dificuldade na hora de montar as escalas.
– Tem que entender que, a cada fim de semana, eu tenho seis jogos, então eu realizo o desejo de seis e frustro 19, porque são 25 árbitros que trabalham na Série A do Catarinense. Eu mais frustro do que realizo sonhos, e isso é que o gestor de pessoas tem que entender – explica ele, antes de completar:
– Só que eu não posso descartar as pessoas. Aqui a gente trabalha com o ser humano. (Globo Esporte)