O filósofo Kierkegaard me ensinou que cultura é o caminho que o homem percorre para se conhecer. Sócrates fez o seu caminho de cultura e ao fim falou que só sabia que não sabia de nada. Não tinha as certezas científicas. Mas que aprendera coisas di-menor com a natureza.
Aprendeu que as folhas das árvores servem para nos ensinar a cair sem alardes. Disse que fosse ele caracol vegetado sobre pedras, ele iria gostar. Iria certamente aprender o idioma que as rãs falam com as águas e ia conversar com as rãs.
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E gostasse mais de ensinar que a exuberância maior está nos insetos do que nas paisagens. Seu rosto tinha um lado de ave.
Por isso, ele podia conhecer todos os pássaros do mundo pelo coração de seus cantos. Estudara nos livros demais. Porém aprendia melhor no ver, no ouvir, no pegar, no provar e no cheirar. Chegou por vezes de alcançar o sotaque das origens. Se admirava de como um grilo sozinho, um só pequeno grilo, podia desmontar os silêncios de uma noite!
Eu vivi antigamente com Sócrates, Platão, Aristóteles — esse pessoal.
Eles falavam nas aulas: Quem se aproxima das origens se renova. Píndaro falava pra mim que usava todos os fósseis linguísticos que
achava para renovar sua poesia. Os mestres pregavam que o fascínio poético vem das raízes da fala.
Sócrates falava que as expressões mais eróticas são donzelas. E que a Beleza se explica melhor por não haver razão nenhuma nela. O que mais eu sei sobre Sócrates é que ele viveu uma ascese de mosca.
Breve análise LITERÁRIA – O cuiabano da Travessa da Marinha – Porto, Manoel de Barros, usa, em “Aprendimentos”, tanto a filosofia “existencialista” (Kierkegaard) quanto a clássica (Sócrates) para explicar a aquisição do conhecimento e do próprio fazer poético.
Em uma linguagem, na qual predomina a ordem direta, com marcas de coloquialidade (“di-menor” ; “ia conversar com rã”) ressalta a importância do Empirismo na construção do saber: a natureza e as “coisas do chão”, pela experimentação, são as responsáveis por uma melhor compreensão da existência.
Apesar da aparente simplicidade na sintaxe, o poema manoelino é marcado por tempos verbais pouco usuais, como o pretérito-mais-que-perfeito (“aprendera”) e futuro do pretérito (“iria”); além de usar a palavra – quase arcaica – “ascese” (é o esforço para renunciar aos prazeres sensíveis tendo em vista o aperfeiçoamento moral ou espiritual) para, de forma paradoxal, encerrar o poema (“ele viveu uma ascese de mosca.”).
Como é recorrente em sua poesia, a linguagem sinestésica aqui se manifesta nas expressões “desmontar os silêncios”; “coração de seus cantos”.
Além disso, a metalinguagem, ou melhor, a metapoesia (“Píndaro falava pra mim que usava todos os fósseis linguísticos que achava para renovar sua poesia.”), outra marca estilística sua, revela a busca incessante pelas palavras em desuso (“fósseis”) para construir o poema, caracterizando-o não penas pelos arcaísmos como também pelos neologismos, inclusive quando das corriqueiras “alquimias” verbais usadas pelo nosso mais ilustre poeta.
Em síntese, “Aprendimentos”, que é um neologismo, reforça o tom da poesia de Barros ao mostrar que, em um mundo caracterizado pelo imediatismo e pelo consumo exacerbado, observar (experimentar) e viver (com reflexão) são os responsáveis pelo saber (a Paideia grega), mesmo que isso faça com que se chegue à máxima socrática: “Só sei que nada sei”.
*SÉRGIO CINTRA é professor de Linguagens e de Redação em Cuiabá; coordenador e fundador de cursinhos pré-vestibulares e pré-Enem
CONTATO: sergiocintraprof@gmail.com — — www.facebook.com/sergio.cintra.77