Em agosto deste ano, a NBA teve jogos da fase final cancelados devido à paralisação dos jogadores. O protesto ocorreu após Jacob Blake, homem negro, ser alvejado com sete tiros nas costas na frente dos filhos. George Floyd, outro afro-americano que morreu por conta da violência policial, também mobilizou os atletas das franquias e a Liga, que pintou as quadras com a frase “Black Lives Matter” (Vidas Negras Importam).
Mas como funciona no futebol, um dos principais esportes do Brasil? Por que o posicionamento dos atletas é tão diferente? A cobrança é válida? O ge ouviu especialistas e atletas para entender esse fenômeno.
Segundo Marcelo Carvalho, criador do Observatório Racial do Futebol, um dos principais fatores para a falta de posicionamento dos jogadores brasileiros é o medo de ter a carreira prejudicada. Além disso, existe a falta de percepção de que o futebol é um importante instrumento de luta contra o racismo.
– A falta de posicionamento com certeza está atrelada às represálias que os jogadores que já se manifestaram sofreram. Todo jogador de futebol da atualidade que pensa em se posicionar vai lembrar da história de jogadores que foram silenciados, então ele vai ter esse medo de se manifestar.
Marcelo Carvalho, fundador do Observatório Racial do Futebol — Foto: Divulgação / UFRGS
Carvalho também destaca a falta de incentivo dos clubes e estafes que acompanham os jogadores. Ele explica que o futebol “acredita ser um espaço democrático” pela quantidade de atletas negros presentes dentro de campo – mas observa que a realidade fora dele é bem diferente, já que quase não há treinadores e dirigentes negros.
–Jogar toda a responsabilidade nas costas dos jogadores, a parte mais frágil do processo, é cruel demais. A gente precisa cobrar clubes e federações, esses sim podem se posicionar e fazer com que jogadores se posicionem também. Eles vão se sentir estimulados – completa.
Hyuri, do Atlético-GO, começou a ter uma conscientização racial faz dois anos, depois que começou a pesquisar sobre o tema. O jogador sempre se identificou como negro e nunca passou por nenhuma situação explícita, mas começou a desconfiar que, assim como outros atletas, poderia ser atacado socialmente. Ele afirmou que já teve medo de se posicionar porque, muitas vezes, o jogador acaba correndo o risco de lutar sozinho contra o racismo.
– Nem sempre você vai ter a ajuda das pessoas que podem te ajudar, mas o medo foi se diluindo e se tornando uma necessidade, uma coisa que sinto que devo fazer.
– No momento de o time fazer greve por atraso de salário e não treinar, o grupo todo o faz, mas quando é um soco nacional, digamos assim, é uma coisa mais explícita, só vai partir do interesse da pessoa. Então, acho que nesse momento todo mundo precisaria se unir, estar junto, literalmente, e fazer. A partir do momento em que nós nos juntamos, as coisas acontecem. Eu tenho isso pra mim – afirmou o jogador do Atlético-GO.
Hyuri, atacante do Atlético-GO, com o punho erguido — Foto: Heber Gomes/ACG
A partir de um ataque direto
Não são todos os jogadores, como Hyuri, que começam a se posicionar sem antes sofrer um ato de discriminação racial explícito. Segundo levantamento inédito do ge em 2019, quase metade dos atletas negros das séries A, B e C sofreram racismo no futebol. Entre os que sofreram, 92,4% afirmam que o incidente ocorreu no estádio.
Em uma partida entre Paris Saint-Germain e Olympique de Marselha, pelo Campeonato Francês, Neymar acusou o zagueiro Álvaro González de tê-lo chamado de macaco. Por causa da discussão, o brasileiro foi expulso.
Neymar com o punho cerrado — Foto: REUTERS/Benoit Tessier
Após a partida, o jogador desabafou e se exaltou em sua conta do Twitter. Por fim, a Liga definiu que “não há provas convincentes que permitam estabelecer a materialidade dos fatos”.
– No momento em que o racismo está no âmbito recreativo, os jogadores conseguem lidar com ele. Porém, é pior quando acontece um ataque direto, porque o atleta se descobre um sujeito negro e sente todos os prejuízos que as pessoas sentem quando despertam a consciência racial – explica o psicólogo Everton Mendes.
Everton também diz que isso acontece porque no Brasil as pessoas negras levam muito tempo para se reconhecerem como pessoas negras, diferente do que acontece nos Estados Unidos.
– Nos EUA, a partir da base, elas já vão conhecer personalidades negras e já vão saber muito sobre a sua história. Isso faz com que eles já estejam mais fortalecidos na hora de ter um determinado posicionamento.
Casos de boicote
Infelizmente, os casos de boicote após um posicionamento concreto de um jogador não ficam só na teoria. Reinaldo, maior artilheiro da história do Atlético Mineiro, comemorava seus gols com punho cerrado, repetindo o gesto dos Panteras Negras.
Defendendo o fim da Ditadura Militar, Reinaldo foi para a Copa do Mundo de 1978 depois de muita pressão popular, já que sua convocação era mal vista pelo governo.
Reinaldo, ídolo do Atlético-MG, comemorava seus gols com o punho cerrado — Foto: Reprodução
No primeiro jogo, o camisa 9 marcou um gol e comemorou, mais uma vez, com o punho cerrado. No jogo seguinte, Reinaldo ficou no banco. O relato está em sua biografia “Punho cerrado: a história do Rei”.
– Vai jogar bola, garoto. Deixa que política a gente faz – disse o então presidente Ernesto Geisel.
Quando ainda era goleiro do Santos, Aranha foi chamado de “macaco” por torcedores do Grêmio durante uma partida da Copa do Brasil, em 2014. Câmeras de televisão flagraram as ofensas, e o clube gaúcho foi excluído do torneio. Três semanas depois do episódio, os times voltaram a se enfrentar, e o goleiro foi vaiado durante toda a partida na Arena do Grêmio.
Na época, em entrevista para uma rádio gaúcha, o ex-presidente do Grêmio Luiz Carlos Silveira Martins, o Cacalo, defendeu o clube e acusou o Aranha de fazer “cenas teatrais” após ouvir um “gritinho”.
– Creio que as portas foram se fechando para mim porque sempre que acontece algum episódio voltam a procurar, e aí muitas vezes o clube não quer estar alinhado a isso, não quer ter a sua imagem atrelada a esse tipo de situação – comentou Aranha sobre os impactos que sua carreira sofreu depois dos atos racistas na Arena do Grêmio.
O ex-atleta diz que não se arrepende da decisão e afirma ter certeza de que agiu corretamente ao acionar o árbitro da partida, mas mostra incômodo com o impacto do episódio em sua trajetória.
– Isso foi muito ruim porque tudo o que eu tinha feito no futebol, minha carreira, se resume hoje ao jogador que foi chamado de macaco. E isso é muito ruim para qualquer atleta.
Cobrar ou não cobrar?
Depois de ver o protestos de atletas como LeBron James, George Hill e Giannis Antetokounmpo, será que devemos cobrar uma postura como essas dos atletas brasileiros? Para Marcelo Carvalho, a resposta é não. Ele ilustra que antes de cobrar um posicionamento, é necessário entender que muitos atletas nunca tiveram um diálogo para saber de que forma o racismo opera.
– Essa cobrança é injusta porque a gente não conhece o histórico de cada jogador, a gente não conhece o histórico de vida de um atleta dentro de clube. Precisamos de uma rede proteção, acolhimento e debate para que eles entendam o que a gente está falando e se posicionem – explicou.
Além disso, é preciso entender que falar sobre racismo ou se posicionar contra uma discriminação que está presente na estrutura da nossa sociedade é acessar traumas e dores. Por esse motivo, Marcelo destaca que é necessário também cobrar o posicionamento de pessoas brancas.