Quatro horas antes da partida, antes mesmo do roupeiro, o técnico Aderbal Lana já está em sua pequena sala no estádio Gilberto Mestrinho, o Gilbertão. O clima úmido e o sol imperdoável castigam os poucos torcedores que se reúnem em um bar em frente ao estádio. Eles fazem muita festa numa roda de samba e gritos pelo Tubarão, forma como o Princesa é conhecido.

Internamente, na parede, um monitor pequeno, um campo com imãs dos jogadores para orientações táticas e fileiras de cadeiras vermelhas de plástico ao centro. Como ela é a última sala do estádio, logo após os dois vestiários, a quantidade de luz que entra é pequena. Não é breu total, mas está longe de ser bem iluminado.

A simplicidade mora ali. Como companheiros de Lana, o cigarro, a garrafa térmica de café e o futebol amazonense. Entre uma pitada e outra, me oferece um pouco da bebida. Coloco num copo de plástico, dou um gole fundo e começamos a conversar sobre a vida.

Na sua sala de preleções no estádio Gilbertão, Aderbal Lana faz da simplicidade incentivo — Foto: Thiago Lemos

Na sua sala de preleções no estádio Gilbertão, Aderbal Lana faz da simplicidade incentivo — Foto: Thiago Lemos

Manacapuru, cidade no interior do Amazonas, que fica a 100 quilômetros de Manaus, é onde está a sede do Princesa de Solimões, time dirigido por Aderbal Lana, técnico mais velho (76 anos) nas quatro divisões nacionais.

— Treinador é um ser solitário. O café e o cigarro são meus companheiros. Sou caseiro, fico muito sozinho. Você não pode ir pra boteco. Todo mundo quer dar pitaco e escalar o seu time, às vezes a gente balança. Você acha que eu não me pergunto sempre se estou colocando o time certo? — indaga.

Ainda que diga não ser possível frequentar um boteco, escutamos na cidade que o treinador gosta de um bar. Nas vitórias do time, sempre toma a sua pinguinha na comemoração com os jogadores. Com problemas no nervo ciático, costuma brincar com os mais próximos que o remédio não o cura, mas a bebida ajuda.

Mineiro de Uberlândia, onde teve uma curta carreira como jogador, Lana acumula títulos, bons trabalhos e muito respeito na região Norte. Não há quem não o cite como pilar no Amazonas. Foi por lá que ele construiu vida, arrumou mulher e teve dois filhos. Ajudou a desenvolver o futebol local e criou raízes.

— Esse lugar me adotou, sabe? Tenho uma casa em Manaus. Aprendi a trabalhar aqui. É um calor infernal, o jogador chega a perder três, quatro quilos em um treino. Não é fácil a adaptação. Quem fica é porque quer muito, tem fome. Gosto de trabalhar com gente assim.

Mineiro de Uberlândia, onde teve uma curta carreira como jogador, Lana acumula títulos, bons trabalhos e muito respeito na região Norte. Não há quem não o cite como pilar no Amazonas. Foi por lá que ele construiu vida, arrumou mulher e teve dois filhos. Ajudou a desenvolver o futebol local e criou raízes.

— Esse lugar me adotou, sabe? Tenho uma casa em Manaus. Aprendi a trabalhar aqui. É um calor infernal, o jogador chega a perder três, quatro quilos em um treino. Não é fácil a adaptação. Quem fica é porque quer muito, tem fome. Gosto de trabalhar com gente assim.

Aos 76 anos, Aderbal Lana comandou 22 times na carreira — Foto: Thiago Lemos

Agressão e vida na Arábia

Aos 76 anos, Aderbal Lana já viveu (praticamente) de tudo no futebol. Aposentou-se cedo como jogador, treinou times de Uberlândia e foi para Goiás dirigir o Itumbiara. Foi lá que viveu um dos momentos em que mais se arrepende na carreira.

— Eu era professor de escola, dava aula para os alunos. Recebi um convite do Itumbiara e aceitei. Num jogo, acabei agredindo feio um árbitro. Invadi e dei um soco nele. Você é jovem, acha que estão te sacaneando. Como é novo, acaba tomando umas medidas intempestivas. Peguei um gancho pesado, disso eu me arrependo.

Cumprida a punição, o técnico decidiu viver uma aventura na Arábia Saudita durante a década de 1990 (1991 a 1994). Foi comandar o Al Raid, time localizado na cidade de Buraida.

— Se a sociedade é fechada hoje na Arábia, imagina naquele tempo. Fiquei sumido na década de 90 por lá. Deu pra juntar um dinheirinho, mas gastava bastante nas noites de folga em Amsterdã quando íamos para lá em pré-temporada. Aprontei bastante — recorda com nostalgia e sorriso no rosto.

Quando voltou ao Brasil, começou uma trajetória pelo São Raimundo, que lhe renderia vitórias marcantes e títulos – ao todo, são 11 campeonatos amazonenses pelos mais diversos clubes e duas Copas do Norte (representavam a atual Copa Verde). Ele tinha sido abraçado pelo Amazonas.

O estilo linha-dura

Metódico e disciplinador, Aderbal pode ser visto como um técnico com filosofia nas linhas de Telê Santana e Muricy Ramalho.

— Podemos não ter a melhor estrutura do mundo, mas o dinheiro cai em dia e damos alojamento para eles. Eu sou dessa época, do futebol raiz. Futebol do jeito que o Muricy fala. Esse negócio de ter reuniões motivacionais… Que nada! Não tem nada que administrar vestiário, fico ouvindo a imprensa falar isso. Hoje você precisa ficar abraçando, beijando jogador e ainda não serve. Quando perde, o treinador leva porrada, e eles vão lá tomar cachaça — desabafa.

Ouvimos relatos de jogadores que não se acostumam com o estilo duro do treinador. Em 2023, Felipinho, meia nascido em São Paulo, pediu para deixar o clube. Thiago Spice, atualmente zagueiro do Amazonas, chegou a quase trocar socos com o treinador numa discussão durante o treino e também saiu.

— Todo dia ele tinha uma dorzinha, quando entrava em campo não se doava muito. Falei para ele: “Está trazendo essa nhaca para dentro de campo”. Eu fiz uma chegada forte nele que poderia ter evitado, ele também poderia ter evitado a reação. Sorte que separaram. Você sempre pensa depois, isso faz a gente evoluir. Hoje converso com ele, não tenho problema nenhum. Mas não é por causa da minha idade que eu vou abaixar a cabeça para jogador, se tiver que sair no pau a gente vai sair.

Não tem espaço para muita brincadeira com Aderbal. Na véspera do jogo contra o São Francisco, pela primeira fase da Série D, os jogadores pediram para que tivesse um rachão (treino recreativo). Ele não aceitou de cara. Disse que pensaria. Primeiramente, iriam fazer um “treino fantasma” (os 11 que iniciariam o jogo repetiriam movimentos e situações da partida sem adversário do outro lado). Depois disso, bola parada.

Após o trabalho sério, pudemos ouvir o grito: “Vão lá, podem fazer rachão. Mas não quero ninguém machucado e fora do jogo”. Tudo terminou com gol do massagista e muita festa entre os jogadores.

Concentração?

Adepto de uma relação aberta com os atletas, Lana é contra o regime de concentração adotado por praticamente todos os times de futebol.

— Já vi de tudo nesse esporte, claro que tem muita gente que faz besteira. Mas o caminho não é enclausurar ninguém. O jogador tem família, precisa aproveitar isso. Tem uns que gostam da cervejinha, eu não vou podar ninguém. Com responsabilidade sempre, claro. Sabendo o momento certo. Mas quero que eles vivam e curtam a curta carreira.

Em Manacapuru, Lana vive em um hotel. A esposa e os filhos ficam em Manaus. Talvez por isso ele seja contrário às concentrações: sente na pele o que é ficar longe da família.

— Nós temos viajado demais, são viagens difíceis. A malha aérea de voos é muito difícil. Precisamos bater sempre em Brasília. Você sai daqui de madrugada e vai chegar só no final do outro dia. Para Roraima, por exemplo, optamos em ir de ônibus. A Série D é vida real, desgasta muito o jogador. A família nessas horas é fundamental.

A vivacidade de um homem sentado

Nos jogos do Princesa, Aderbal desfruta de um presente feito pelo Zé, massagista do clube. É um banquinho para que o técnico amenize o problema no ciático e possa ficar sentado na sua área técnica e esteja mais próximo ao campo.

Engana-se quem pensa que ele fica ali todo o tempo. Levanta, esbraveja, grita e depois senta. Nem o placar de 4 a 0 que seu time aplicou no São Francisco o deixou tranquilo.

Confidenciou a pessoas próximas que o Princesa poderia ter ganho de mais e não devia ter perdido tantas chances (incluindo um pênalti batido pelo meia Marcelinho). Ao final do jogo, saiu rapidamente do estádio e só reapareceu na tradicional pizza da vitória, que não vinha há mais de 80 dias. Ele considera que vestiário pós-partida é lugar de jogador.

— Tudo que eu preciso fazer é feito no dia a dia. Antes do jogo, chego muito antes para preparar tudo com eles. Depois da partida, é momento deles. O futebol me ensinou isso.

Questionado pelos atletas sobre uma folga após o triunfo, não pensou duas vezes:

— Não, ainda não ganhamos nada. Todo mundo aqui amanhã às 15 horas.

Sentado no banquinho feito pelo massagista Zé, o técnico vive seus dias de Princesa — Foto: Thiago Lemos

Sentado no banquinho feito pelo massagista Zé, o técnico vive seus dias de Princesa — Foto: Thiago Lemos

E a idade?

Se Lana sempre está pronto para o treino do dia seguinte, ele mostra com palavras que a idade é só um mero detalhe. Como exemplo de longevidade na profissão, cita Vanderlei Luxemburgo, atual técnico do Corinthians.

— Tudo é a forma que você vive. Apesar do problema no ciático, faço fisioterapia e me sinto bem. Cheio de vontade de estar aqui todos os dias. Se eu me sinto bem, por que não posso trabalhar?

— Torço muito pra ele, não ganhou tudo que ganhou à toa. Foi um cara inovador. A gente tem a mania de querer aposentar todo mundo. A vida me deu experiência pra saber lidar com isso, mas muitas vezes falta respeito.

Fernando Diniz na Seleção

Se Aderbal torce por Luxemburgo no Corinthians, ficou ainda mais feliz ao ver um outro famoso treinador brasileiro na Seleção. Ele é adepto do escolhido como interino pela CBF para iniciar o ciclo das Eliminatórias para a Copa do Mundo 2026.

— O Fernando Diniz não perde nada para ninguém no Brasil e no mundo. A imprensa tirou o título do São Paulo e ferrou o Diniz. Xingar no futebol é do jogo. Pelas entrevistas, pela forma como ele pensa o futebol, está certo de ser o técnico da Seleção Brasileira. Tinha que ser ele.

Como torcedor da Seleção Brasileira nas décadas de ouro da amarelinha, Aderbal encontra-se desanimado com o atual momento. Já não vê a mesma entrega que os jogadores tinham antigamente. Com o olhar baixo, sentenciou uma análise muito mais emotiva do que racional.

— Esse negócio de Seleção não é como antigamente. O brasileiro amava a Seleção, hoje não está nem aí pra ela. Precisamos voltar à nossa essência. Os jogadores vêm da Europa e não estão nem aí pra ela. Tínhamos que ter um treinador brasileiro. Se continuar desse jeito, não vamos ganhar mais nada.

Um homem solitário que não quer largar o futebol

Enquanto encara as dificuldades da última divisão nacional, Aderbal Lana vai vivendo seus últimos momentos no futebol.

Nem sempre sentado. De pé, ironizando a arbitragem, Lana segue se entregando ao futebol — Foto: Thiago Lemos

Nem sempre sentado. De pé, ironizando a arbitragem, Lana segue se entregando ao futebol — Foto: Thiago Lemos

Lana é durão no início, mas se abre ao sinal de confiança. Capaz de fechar a cara e pedir para que a nossa equipe saía do vestiário durante um papo mais sério com os jogadores, mas também de relatar por longos minutos momentos mais íntimos vividos no futebol. Como acontece com as pessoas ricas em histórias, gosta de ser ouvido. Às vezes, emenda uma na outra e não para. É que ele não quer parar. Sobretudo, de viver o futebol.

— Ninguém precisa falar, sei que está chegando a minha hora de parar. Até por isso vivo cada segundo. Mas sei que aguento mais uns aninhos. O futebol é apaixonante.

Quem é Aderbal Lana?

Nome: Aderbal Domingos Lana
Nascimento: 10/11/1946 (76 anos), em Uberlândia-MG
Profissão: treinador de futebol
Clubes onde trabalhou: Itumbiara, Goiânia, Al Raid, Uberlândia, Mixto, Goiás, Anápolis, Nacional-AM, Rio Negro, São Raimundo, Fortaleza, Vila Nova, Uberaba, Galo Maringá, Canedense, Anapolina, Fast Clube, Peñarol-AM, Sul América, Manaus, Baré e Princesa. (GE)