Na vila e na cidade de Cuiabá, a presença escrava na coleta, transporte e venda de água potável, trabalho remunerado e prática comercial (a água como mercadoria) no interior da escravidão integravam formas assalariadas de trabalho escravo tipicamente urbano, as dos “escravos que vivem sobre si” e dos “escravos ao ganho” ou “de ganho”.

Sobre os carregadores de água, pelo menos quanto ao bairro do Porto, há registros da segunda metade do século XIX, de que colhiam pela manhã água do rio Cuiabá: (…) recordo-me com 7 anos (…) às 5 horas da manhã, ainda escuro, eu ia ao açougue comprar carne. Àquela hora, habitualmente, passava um negro espadaúdo, vestido de calças e sem camisa, levando uma lata de ferro, para conduzir água do rio. (…). Por esse tempo não havia em Cuiabá água encanada e os escravos é que supriam d‘água à população, vendendo barris d‘água e entregando ao senhor, ou a seu proprietário, o produto da venda.
(…) O escravo que, no fim do dia não trouxesse o jornal, entrava em palmatoadas. Inúmeras vezes assisti a minha mãe dar dinheiro a uma negra, a fim de que ela completasse a importância necessária para entregar ao senhorio, informou o historiador Firmo Rodrigues.

No caso do bairro do Porto, em Cuiabá, parece que mesmo nos anos 1870 a coleta de água doce potável era maciçamente feita no próprio rio Cuiabá. Não fica claro, porém, como se usava essa água do rio. Era ingerida logo que colhida? Passava por algum processo de purificação?

Voltando aos carregadores de água, predominavam (…) grupos de escravos sobraçando latas, ou trazendo sobre a cabeça potes de barro para abastecer de água boa parte da população (…), continua Rodrigues.

Como ocorria em outras cidades do Império brasileiro, as ruas e praças da cidade de Cuiabá eram também percorridas por mulheres vendedoras ambulantes de água e refrescos, como notou viajante nos anos de 1880. Usavam “vestidos de cores exuberantes” e ofereciam, entre outras coisas, “bebidas refrescantes”, ressalta Karl von den Steinen.

Mas não eram apenas escravos, os coletores e distribuidores de água. Pessoas livres, mas pobres também faziam esse trabalho. Inclusive já no século XX: Por isso, devo recordar ao colega sobre a minha juventude, vendendo água da bica da “Prainha”, em um carro de mão e duas latas de querosene (…).

A coleta de água potável em pontos públicos expunha, as pessoas que faziam esse tipo de trabalho. Seus corpos, suas roupas, seus gestos, seus falares, eram objeto diariamente observados, avaliados, julgados. Inclusive por seus “iguais”. Comparações, comentários, simpatias e antipatias manifestavam-se cotidianamente, várias vezes ao dia, desencadeando relações públicas e por isso mesmo mais agudas.

Nos pontos públicos de coleta ocorria com certa frequência o entrelaçamento conflituoso entre governo/governança e sociedade civil. É bem expressiva disso a correspondência publicada em 1831 na Matutina Meia-pontense, sobre violências em “bicas” da cidade de Cuiabá, em época de prolongada seca: Como no Cuiabá há falta d‘água, mandava os meus negros na bica, escoltados por soldados da minha guarda, com ordem de tirar para fora os que estivessem tomando água, e aqueles que repugnassem, que lhe metessem as espadas; alguns negros deram nos soldados, depois dei ordem que os matassem. No dia 31 de dezembro tiraram me este comando, informou Antônio Roiz da Costa, na publicação acima referenciada.

Em 1864, jornal local assumia a defesa de moradores da cidade, propondo a construção de açudes públicos: (…) nesta capital ainda há poucos chafarizes, cujas origens de água são pouco abundantes; sofre a população grande falta desse elemento e o único meio de remediar este mal é a criação de açudes.

Em 1874, o responsável pela manutenção de “depósito” público de água potável fora agredido: (…) às 9 horas mais ou menos, da noite, Manoel Francisco Avelino, encarregado do depósito d‘água do Chafariz do Largo da Conceição (em frente a Santa Casa), ao sair pelo portão do quintal onde mora, à Rua Cel. Peixoto, recebeu algumas pauladas, uma das quais fez-lhe um ferimento leve no alto da cabeça. Procedeu-se o corpo de delito no ofendido, o qual não havia distinguido o delinquente, mas depois se soube ser o escravo Honorato, do Tenente Coronel João Gualberto de Mattos, ficando sem processo por falta de queixa da parte.

Embora seja difícil saber exatamente por que o encarregado foi agredido por um escravo, não pode ser descartada a possibilidade de ser a agressão ligada a uma parcela de poder de que dispunha Manoel Francisco. Dias antes outro conflito noturno ocorrera, entre soldados, numa “Bica” da Prainha: (…) à noite, o Soldado de polícia Luciano de Souza Villela, estando de 1ª patrulha na rua da Prainha, n‘esta cidade, intimou à prisão da corneta do Batalhão 21ª de Infantaria, Benedito José da Silva, que promovia desordem em uma Bica próxima à última ponte dessa rua o qual resistiu-lhe acometendo-o com uma faca, resultando do conflito que então se deu, ficarem ambos levemente feridos. Foi preso o corneta e devidamente punido.

Certamente os conflitos nos pontos públicos de abastecimento de água potável da cidade aumentavam nos períodos de estio prolongado, ou de seca. Com a falta de água, inclusive os pequenos e médios empreendimentos de captação e venda com carroças e pipas aumentavam os preços da água-mercadoria: (…) cujo preço sobe a um ponto tal que se torna custosa obtenção para uma grande parte da população, máxime para aquela que não dispõe de abundantes meios de subsistência.

As disputas na coleta, transporte e venda; a falta de dinheiro, as compras “fiadas” e os atrasos nas datas de pagar, as cobranças e ofensas, combinavam-se na criação de relações por vezes violentas, pessoais, grupais, sociais. Os conflitos violentos nos pontos de abastecimento de água potável, continuaram até inícios do século XX: Aniceto José do Patrocínio, morador da Rua S. Benedito no bairro do Bahú, (…) disse que seu irmão Manoel Benedito Sigarini (…) quando enchia uma lata d‘água na Cacimba da Lixeira (…) foi ferido por um soldado.

Mas havia também a confraternização e a alegria, nesses pontos públicos de abastecimento de água. Sobre o tanque (ou cacimba) do bairro Lixeira, seu Adolfo Vilela de Miranda recorda: Das festas de São João/ Que o Mestre Bento fazia/ Dos pipocais do rojão/ Quando era meio dia/ E das lavagens do santo/ Lá no poço da Lixeira. (…) Saudade de beber desta água/ Cristalina e sem cloro/Ainda que custasse um tempo/ Das muitas noites de sono/ Das noites escuras de filas/ Das histórias e das piadas/ Dos barulhos que as latas faziam/ E também das gargalhadas/ Charrete e carro de mão/ Já estavam acionada/ Isto ao cantar do galo/ Nas altas da madrugada/ A sombra de um pé de Lixeira/ Ao lado do poço/ Reunia as lavadeiras/ Os meninos, velhos e moços/ Vinha ali apanhar água/ Para fazer o almoço/ Aqui o progresso chegou/ E tudo modificou/ As ruas foram traçadas/ O poço entupiu. Assim a água vem caminhando aos dias atuais enfrentando os mesmos tormentos.

(*) NEILA BARRETO é Jornalista. Mestre em História. Membro da AML e atual presidente do IHGMT.