“… : o hábito do desespero é pior que o próprio desespero.”

                                                                                                      (Albert Camus)

Há, de tempos em tempos, tragédias que assolam a humanidade: século XIV, a Peste Negra (Bubônica) – matou 50 milhões de pessoas; a Gripe Espanhola (1918 – 1919) – ceifou 20 milhões de vidas, inclusive a do presidente Rodrigues Alves; todavia, existem outras ainda mais letais, porém diluídas ao longo de quartéis: a Tuberculose que, entre 1850 e 1950, aniquilou 1 bilhão de humanos; a AIDS que, de 1981 até hoje, tragou 22 milhões indivíduos. No entanto, infelizmente, nada é mais avassalador do que a peste camusiana que infesta a contemporaneidade.

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O franco-argelino Albert Camus, Nobel de literatura em 1957, narra, usando o Realismo Absurdo, no “A Peste” uma epidemia que assola a cidade fictícia de Orã. A calamidade é tão somente um pano de fundo para revelar os conflitos existenciais do homem contemporâneo. “A multidão festiva ignorava o que pode ler nos livros: o bacilo da peste não morre nem desaparece, fica dezenas de anos a dormir nos móveis e nas roupas, espera com paciência nos quartos, nos porões, nas malas, nos papéis, nos lençóis – e chega talvez o dia em que, para desgraça e ensinamento dos homens, a peste acorda os ratos e os manda morrer numa cidade feliz”. Entre as muitas metáforas desse romance, está a da ignorância; aliás, nada mais paradoxal, na atualidade, que, em que pese toda a possibilidade do acesso à informação, à ciência; grande parte da população orienta-se por crendices, especulações e fanatismos.

Além disso, em tempos pestilentos ou não, quase todos tornamo-nos condescendentes com as atitudes mais desumanas, mais espúrias e mais torpes que nos infligem.

Parece estarmos imunes à dor e ao sofrimento do outro; não os vemos e se os vemos é como se não os víssemos: a maioria, como afirma Camus, torna-se cúmplice: “Não mudei. Tenho vergonha há muito, vergonha enorme de ter sido, embora de longe, embora com boa vontade, um assassino também. Depois notei que até os melhores não poderiam deixar de matar, ou consentir que matassem, pois isso era da lógica admitida, e não fazíamos um gesto nesse mundo sem nos arriscarmos a matar. Continuei a ter vergonha, percebi que vivíamos na peste – e sumiu-se a paz.”

Assim, pululam “Orãs” repletas não só de títeres ignorantes e condescendentes com o execrável como também hordas de imbecilizados, para os quais a única lógica é a mesma presente na obra camusiana: “…e a cidade inteira parecia uma sala de espera. Os que tinham ofício trabalhavam seguindo o exemplo da peste: meticulosamente e sem brilho. Todos eram modestos. Pela primeira vez, falavam com facilidade nas pessoas ausentes, usavam a linguagem comum. Examinavam a separação como examinavam as estatísticas da epidemia”.

O mesmo muro invisível que isolava Orã e seus ratos e sua peste do resto mundo, também cerceia a capacidade de sentir e amar em tempos de Coronavírus. Afinal, “o amor exige um pouco de futuro” (Camus) e, por hora, tristemente, a maioria não o vê.

 

*SÉRGIO CINTRA   é professor de Redação e de linguagens em Cuiabá.

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