O direito fundamental à liberdade certamente se coloca no núcleo central das questões jurídicas e filosóficas mais relevantes do mundo contemporâneo e digital.
De um lado, vive-se o rompimento de dogmas e paradigmas que ensejam amplas possibilidades de expressão individual de cada cidadão, especialmente nas redes sociais, que deveriam se constituir um espaço de livre debate de ideias e opiniões.
De outro, o amplo domínio de todo o tráfego de dados e de informações por parte de poucas e potentes corporações permite o forte exercício de controle do conteúdo divulgado, bem como sobre a vida e a reputação de cada cidadão. Soma-se a isso a chamada cultura do cancelamento, em que os próprios usuários, ante a incapacidade de exercer empatia e buscar ao menos compreender o outro, promovem um linchamento virtual com franco objetivo de causar uma espécie de morte digital. Uma inquisição cibernética.
Em poucas palavras: terão voz apenas os que seguirem as diretrizes fomentadas no pensamento hegemônico dessas grandes corporações ou que se colocam a favor das tendências. Aliado à indústria de fake news (e é disso mesmo que se trata, de um negócio que enseja um modo de produção lucrativo), prenuncia-se um totalitarismo digital que afeta os mais básicos postulados da liberdade política e formação democrática da vontade.
Nesse contexto, um aparente paradoxo ínsito à ideia de Estado de Direito e governo das leis e não dos homens merece ser lembrado para que seja dado o devido tratamento à problemática: em uma primeira dimensão, a Lei Fundamental e as leis ordinárias possuem a função de garantia da liberdade ao mesmo tempo que constituem também seu limite. Essa ambivalência está bem expressa na regra fundamental do artigo 5°, inciso II da nossa Constituição de 88: ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.
O cidadão não se confunde com súdito porque encontra nas leis previamente elaboradas o campo de exercício da sua liberdade, não se submetendo a vontades arbitrárias. Mas se possui liberdade em um âmbito definido, normalmente vinculado ao espaço privado, a vida em sociedade exige que essa liberdade não se converta em desrespeito ou violação aos direitos do próximo, sob pena de incorrermos em um estado de barbárie regido pela lei do mais forte, mais astuto e/ou mais adaptável.
Essas são lições básicas que remontam aos primórdios do constitucionalismo liberal. Por exemplo, Locke em seu Segundo Tratado Sobre o Governo Civil defendeu a ideia de um estado de natureza em que o ser humano era racional e, mesmo assim, pregou a necessidade de um pacto pela formação da sociedade civil e, formada esta, de outro pacto para a instituição do Estado-juiz, que deveria atuar como árbitro quando as fraquezas e paixões humanas fossem mais fortes que a razão e a empatia pelo outro.
Assim, o governo instaurado pelo segundo contrato social deveria cumprir estritamente as finalidades para as quais foi criado: a defesa do indivíduo, da propriedade, da segurança jurídica e da liberdade. Para tanto, a Constituição e as leis atuam como meios de garantia desses direitos, devendo o governo respeitá-las e atuar nos estreitos limites de suas previsões.
Em momento algum isso significaria que as pessoas pudessem fazer tudo o que lhes vem à cabeça ou que desejam. A intervenção legal-estatal deveria ser mínima, porém necessária.
Um exemplo simplório que trato com meus alunos: adoro andar de motocicleta e sentir a sensação de liberdade que ela proporciona. Isso significa que posso dispensar o capacete porque quero sentir o vento no rosto? As pessoas podem deixar de usar o cinto de segurança quando utilizam um automóvel? Certamente tais condutas ensejariam a devida responsabilização e a consequente punição sem que seja possa invocar o direito fundamental à liberdade para impedir a aplicação de sanções.
De outro lado, as leis não devem extrapolar suas finalidades primeiras e promover verdadeira regulação e planificação do comportamento social. Os legisladores devem também respeitar as regras de proporcionalidade e razoabilidade na elaboração legislativa, ou seja, devem evitar a intervenção excessiva e mesmo abster-se de propor tratamento insuficiente para a tutela do bem jurídico.
Uma intervenção à liberdade só deve ser admitida quando além de necessária, não há outra solução melhor. Novas leis devem seguir estritamente a regra de adequação ao fim a que se destina, da necessidade e da proporcionalidade em sentido estrito (os problemas concretos a serem resolvidos devem servir de norte para que se delibere para a intervenção menos gravosa na esfera de direitos, especialmente em casos de aparente colisão entre direitos fundamentais, como a liberdade individual e a segurança coletiva).
Nessa perspectiva, é o devido processo legislativo democrático e coletivo que assegura a legitimidade das prescrições legais, uma vez que se pressupõe o debate entre as razões individuais que possam atingir o mínimo de acordo para a construção de uma regra coletiva.
O tratamento a ser dado é de índole público-coletivo, não necessariamente estatal, nem exclusivamente privado. Sem ingenuidade, permitir o controle das grandes corporações digitais sobre a vida das pessoas e sobre as manifestações individuais enseja grandes possibilidades de totalitarismo cibernético, com pessoas canceladas e vozes apagadas.
Contudo, o direito fundamental à liberdade admite restrição como todo direito fundamental e não pode ser usado pra incitar crimes, para o cometimento de injúrias raciais, morais, pessoais e outras atrocidades ou mesmo para justificar a violação os termos de uso e às políticas estabelecidas pelas plataformas que estejam dentro dos limites legais.
Em conclusão, o debate coletivo e transparente, com ampla participação da sociedade civil, agentes públicos e setores interessados, e a elaboração de legislação adequada são os antídotos a qualquer tipo de ação autoritária. Inclusive, a proteção de dados se revela importante vetor de garantia da privacidade e do direito à liberdade, o que reforça ainda mais a importância da Lei Geral de Proteção de Dados e o fomento de maior regulação protetiva. Paradoxalmente, a limitação da liberdade serve, assim, como garantia da liberdade.
*MARCO AURÉLIO MARRAFON é advogado, professor de Direito e Pensamento Político na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), doutor e mestre em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), com estudos doutorais na Università degli Studi Roma Tre (Itália). É membro da Academia Brasileira de Direito Constitucional (ABDConst).
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