De segunda a sexta-feira, o despertador de Vanessa Kanda, de 25 anos, toca às 5 horas da madrugada. Na cidade de Toyohashi, um polo industrial na província de Aichi, no centro do Japão, a maratona mal começou: ela acorda o filho de 7 anos, ajuda-o a vestir o uniforme, faz chá e torrada para o café da manhã, prepara o lanche da tarde e, da varanda do pequeno apartamento, observa o garoto subir no ônibus escolar às 5h58 em ponto.
O relógio continua correndo: Vanessa veste o uniforme da fábrica (uma calça cargo azul, uma camiseta preta e um boné) e sai de casa às 6h15, pega o ônibus às 6h40, bate o ponto por volta das 7h30 e trabalha das 8h às 20h10 em uma linha de produção de autopeças, em pé — uma longa jornada interrompida por uma pausa de 40 minutos para o almoço e três breves intervalos de 10 minutos.
Na volta, a operária pega o ônibus às 20h15, chega ao apartamento às 21h, confere lições e lê bilhetes mandados pelos professores do filho, prepara a marmita do dia seguinte, toma banho, come e dorme por volta das 22h — às vezes mais tarde se passa uns minutos zapeando o Facebook.
“Toda noite, também confiro se meu filho lembrou de deixar apontados sete lápis de escrever tipo 2B (cinco pretos e dois vermelhos). É uma exigência da escola japonesa, para os alunos não perderem tempo durante a aula”, diz a jovem paranaense, que há sete meses se mudou para o Japão.
Cada minuto conta na família Kanda. Vanessa é uma mãe dekassegui — nome que se dá aos imigrantes descendentes de japoneses que buscam trabalho no país — que tem uma jornada de trabalho de quase 20 horas por dia, se somados os períodos passados no trajeto, no trabalho fora e nos cuidados com a casa, a cozinha e o filho, como muitas mães brasileiras radicadas no Japão.
Marina Yoko Hungria, por exemplo, acorda às 5h30 da manhã e só volta para casa por volta da meia-noite. Entre breves viagens ao Brasil, a paulista de 38 anos já está há quase 17 anos no Japão. Mas hoje, diz ela, a rotina é mais “leve”.
“Sempre trabalhei em fábricas. Saía de casa às 5h da manhã e só voltava às 10h da noite, isso é, todo dia fazia 5 horas de zangyo [hora extra, em japonês]. Depois, precisei diminuir o ritmo”, diz Marina, que há cerca de 5 anos passou a trabalhar como cuidadora de idosos. Neste mês, ela se inscreveu em um curso para se especializar em gerontologia — no país com o maior número de idosos no mundo (35 milhões, o que representa quase 30% da população), esse é um nicho de mercado. Entre seus pacientes atuais, por exemplo, está uma senhora de 101 anos.
Mãe de duas meninas (de 14 e 18 anos) e dois meninos (de 5 e 9 anos), e agora grávida do quinto filho, Marina mora em Toyota, mas trabalha em um asilo da cidade vizinha Okazaki.
“O trajeto até o trabalho dá uns 35 minutos. No caminho, dirigindo, vou me virando para lixar uma unha, tirar um fio de sobrancelha. Na volta, pego o menino mais novo na creche. As meninas mais velhas adiantam o gohan [arroz, em japonês]. Janto e confiro a lição e a leitura de kanji do meu filho de 9 anos. Depois, vou atender pacientes na casa deles, como home helper [auxiliar de enfermagem domiliciar] das 20h às 21h30. Às vezes volto para casa e os pequenos já estão dormindo”, narra. “Não paro nunca.”
S.O.S. Mamães
No Japão, fora de casa, as mulheres trabalham tanto quanto os homens, mas ganham salários menores, divulgados abertamente: nas fábricas, por exemplo, mulheres recebem entre 900 e 1.300 ienes (entre R$ 34 e R$ 49) por hora; homens, a partir de 1.300 (R$ 49).
De acordo com os dados de 2017 da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que analisa 37 nações, o Japão é o 3º país com a maior desigualdade salarial entre homens e mulheres (24,5%), superado apenas por Estônia (28,3%) e Coreia do Sul (34,6%). E, segundo relatório do Fórum Econômico Mundial de 2019, o Japão teve sua pior marca no ranking de igualdade de gênero, que mede participação de mulheres no mercado e na política: despencou 11 posições ante o ano anterior, ficando na 121ª posição de 153 países analisados. O Brasil ficou na 92ª.
Já dentro de casa, elas trabalham muito mais que eles. Dados do Instituto Nacional de Pesquisa sobre População e Seguridade Social divulgados no ano passado mostram que mulheres casadas dedicam, em média, 4 horas e 23 minutos aos cuidados da casa e dos filhos por dia. Entre aquelas que têm trabalho fora por tempo integral, a média é de 3 horas e 7 minutos — ela cai para apenas 37 minutos entre os homens.
A tendência também foi identificada no estudo da economista Noriko Tsuya, da Universidade Keio, em Tóquio: mulheres que trabalham mais de 49 horas semanais fora dedicam mais de 25 horas semanais aos afazeres domésticos; homens contribuem com menos de 5 horas.
Hoje, Marina conta com a ajuda das filhas. “Antigamente, meu marido ajudava mais, mas ele teve dois infartos. Ele precisa tomar remédio e cuidar dos batimentos cardíacos e, ainda assim, faz 3 horas extras todo dia, trabalhando das 8h às 20h. Quando está de folga, faz arubaito [bico, em japonês]. É extremamente corrido para todos nós.”
Já Vanessa conta com a ajuda da mãe. “Como minha mãe trabalha ‘só’ 8 horas por dia em uma fábrica mais tranquila, ela cuida da casa na minha ausência: deixa a janta pronta e a louça lavada. Meu marido trabalha nikotai [em turnos alternados] em outra fábrica — quer dizer, uma semana durante o dia, uma semana durante a noite. Quando dá tempo, ele tira o lixo e busca água mineral. No fim de semana, faço tudo: lavar roupa, lavar louça, cozinhar… E, finalmente, passar tempo com meu filho”, diz.
Para ter mais oportunidades de trabalho fora, Vanessa matriculou o garoto em dois colégios: das 8h30 às 15h ele frequenta a escola japonesa (que lhe cobra mil ienes por mês, o equivalente a R$ 38) e das 15h às 19h30, a escola brasileira particular (que pode custar até 45 mil ienes por mês, R$ 1,7 mil).
Ainda nos primeiros dias no Japão, ela descobriu um centro comunitário que reúne doações de randoseru, a famosa mochila quadrada, feita de couro ou couro sintético, que as crianças devem levar à escola — uma randoseru nova pode custar até 60 mil ienes (R$ 2,3 mil).
A descoberta aconteceu na página Mamães de Toyohashi, uma divisão regional do grupo SOS Mamães no Japão no Facebook, que reúne informações para ajudar as mulheres no dia a dia, como indicações de trabalho, oferta de doações (como material escolar, móveis e eletrodomésticos) e orientações de serviços (consultórios pediátricos com apoio de intérprete japonês-português, atendimento de hospitais, horários de ônibus, entre outros).
Fundado em 2015, o grupo de Toyohashi (que contempla cidades vizinhas como Gamagori, Shinshiro, e Toyokawa) tem 3 mil membros; já o grupo maior, SOS. Mamães no Japão, fundado em 2012, tem mais de 34 mil membros — e, diferentemente da divisão regional, não permite doações.
Feliz Natal
No domingo, 29 de dezembro, as mamães realizaram uma festa de Natal em um centro comunitário em Toyohashi — já que, nos dias 24 e 25 de dezembro, todos trabalham normalmente no Japão, onde não se celebra a data católica. A confraternização, que teve direito a árvore, brindes e Papai Noel, reuniu cerca de 100 adultos e crianças.
A paulista Alessandra Higashi, de 38 anos, há 17 no Japão, é uma das moderadoras do grupo no Facebook. “Como muitas famílias chegaram há pouco tempo e ainda estão se adaptando, a ideia era dar um clima de festa brasileira. Incluímos brinquedos como fliperama e cama elástica, pois muitas mães são solteiras e não têm condições de levar as crianças aos centros de games. Foi um dia de diversão para os filhos e de encontro para as mães, para elas não se sentirem tão sozinhas nessa época de fim de ano”, diz.
Mãe de um menino de 3 anos, Alessandra pretende montar um negócio próprio como confeiteira. Antes da maternidade, trabalhava 12 horas em fábrica; depois, passou a trabalhar “apenas” 8 horas.
A rotina não diferia muito das de Marina e Vanessa: Alessandra acordava às 6h, arrumava-se, preparava o café e a marmita do marido, levava o filho para a creche, trabalhava das 8h às 17h10, pegava o filho na creche, dava banho, brincava, fazia janta, lavava louça e, por volta das 22h, quando a família ia dormir, adiantava afazeres do dia seguinte como lavar roupa, preparar mochilas, verificar agendas. De quarta a sábado, também fazia doces e bolos sob encomenda. Às vezes, encerrava o expediente à meia-noite.
Entretanto, Alessandra se afastou da fábrica em setembro, após um diagnóstico de depressão. A ideia é voltar à ativa em fevereiro, “se tudo der certo”, diz.
Emy Ueda, outra moderadora do Mamães de Toyohashi, também preferiu desacelerar. “Trabalhava muito, de 3 a 4 horas extras por dia. Um dia, meu filho me perguntou: ‘Mamãe, por que você nunca tem tempo de me levar ao parque?’ Isso me pesou o coração. Tive uma crise de estresse, depois descobri que estava grávida pela segunda vez. Aí decidi parar de trabalhar em fábrica e passar a investir em outros projetos. Gosto de artesanato”, conta a paulista de 28 anos, há 4 no Japão, hoje mãe de um menino de 5 anos e uma menina de 11 meses.
Diáspora
Segundo as entrevistadas, os dirigentes das fábricas não são muito compreensivos com os compromissos das mães. Apreensivas diante do risco de seus filhos brasileiros se tornarem alvo de bullying nos colégios japoneses, por serem diferentes e não dominarem o idioma, elas fazem questão de participar das atividades escolares, como jogos e reuniões de pais e professores. Elas pedem, mas nem sempre são liberadas do trabalho. A falta de flexibilidade de horários é um dos principais motivos para os pedidos de demissão.
No estudo “As brasileiras no Japão de longa duração”, publicado na coletânea Histórias Migrantes: Caminhos Cruzados (Humanitas, 2016), organizada pelo sociólogo Sedi Hirano e pela historiadora Maria Luiza Tucci Carneiro, a socióloga Yumi Garcia dos Santos aborda papéis diferentes desempenhados por brasileiras moradoras de cidades periféricas de metrópoles como Tóquio e Osaka: como trabalhadoras, companheiras e mães.
“Quando se trata de mães, a questão da educação dos filhos se torna objeto central no processo de construção familiar em um país estrangeiro, onde elas reveem a sua identidade brasileira e pensam em repassar aos filhos os valores que condizem com o que entendem por ‘ser brasileiro'”, diz o artigo. Segundo a autora, as mães tentam oferecer aos filhos uma educação bicultural (o aprendizado dos dois idiomas, por exemplo), mas também buscam apresentar a eles um “estilo de vida brasileiro”. Assim, elas dão corpo a uma comunidade — “uma diáspora brasileira no Japão”, na expressão da autora.
As mães ouvidas pela BBC News Brasil dizem que querem criar seus filhos como brasileiros — e, no futuro, eles poderão escolher entre viver no Japão ou voltar ao Brasil.
Yumi, que atualmente é professora da Universidade Federal de Minas Gerais, lembra, entretanto, de uma similaridade negativa entre os dois países: em ambos, as mulheres ocupam posições menos promissoras e estáveis no mercado de trabalho do que os homens.
“A maior diferença é que a divisão sexual do trabalho opera de maneira mais típica no Japão: as mulheres se retirando do mercado de trabalho quando se tornam mães, principalmente por pressão social. Ainda é considerado que o cuidado das pessoas dependentes é responsabilidade exclusiva da esposa/mãe. Assim, de maneira importante, elas retornam ao mercado de trabalho depois que o filho caçula passa a ser escolarizado. Há mães trabalhadoras, sim, mas com forte desaprovação social”, observa a socióloga.
Desde fins da década de 1980, muitas famílias brasileiras de ascendência japonesa buscam trabalho em fábricas. Ainda atualmente, a expectativa de muitos é trabalhar o maior número de horas possível para poupar dinheiro e, aproveitando a atual alta do dólar e do iene, convertê-lo em real. Um salário de 1.250 ienes (R$ 47) a hora, com 3 horas extras diárias, pode render cerca de 270 mil ienes no fim do mês, isso é, aproximadamente R$ 10 mil.
É o caso de Vanessa, que pretende trabalhar pesado e poupar por 2 ou 3 anos. “Tudo é diferente. No Brasil, eu tinha tempo ao lado do meu filho. No Japão, eu só o vejo no café da manhã e no fim de semana. É pouco? É, mas é tempo. Foi uma aposta que a gente fez: trabalhar, trabalhar, trabalhar e juntar dinheiro, pra garantir um futuro melhor pra ele. Na minha infância, quando eu tinha 10, 11 anos, meus pais vieram para cá e me deixaram no Brasil — e tudo o que eu queira era estar ao lado deles. Então, eu quis fazer diferente e vir com a família toda. É mais difícil, mas é melhor estar junto.”