LUCIANO PINTO

Entre os poderes do estado o legislativo, sem dúvida alguma, é aquele que mais simboliza a representação popular, pois seus integrantes são diretamente eleitos pelos eleitores. O poder judiciário, ao contrário, é composto, em sua imensa maioria, por pessoas aprovadas em concursos públicos. Por sua vez, o poder executivo conta com a liderança do candidato eleito (e seu vice), que terá a responsabilidade de nomear os demais integrantes (ministros de estado, secretários, etc.), que não são escolhidos pela população, mas apenas pelo mandatário.

Lidando com o óbvio, o poder legislativo, na teoria, deveria ser aquele que mais se identifica com as preferências da população. Presume-se, foram eleitos para atender os anseios populares.

Percebemos, contudo, que alguns recentes eventos mostram como a maioria dos integrantes do congresso tem se distanciado da vontade popular, e muitas vezes, ignoram completamente a realidade vivenciada pela grande massa da população.

Um primeiro exemplo, extremamente emblemático, é o projeto de lei em trâmite na câmara federal n.º 1.904, denominado de PL do Estuprador. Este projeto altera o Código Penal estabelecendo uma pena de até 20 anos de prisão para as mulheres que, vítimas de estupro, fizerem aborto após 22 semanas de gestação. Significa que a vítima poderá ser penalizada com o dobro da pena máxima do estuprador (dez anos). O congresso ignora totalmente os dados da realidade brasileira que demonstram (i) o baixíssimo nível de instrução da imensa maioria das vítimas de estupro, (ii) grande parte delas são menores de idade, (iii) sofrem o abuso dentro da sua própria casa por pessoas ligadas à família, (iv) e depende de autorização judicial, que muitas vezes levas meses para ser concedida.

Por estes e inúmeros outros fatores o aborto em casos de estupro não é algo simples, que pode ocorrer em poucos dias. Talvez este projeto possa ser interessante para algum país nórdico, extremamente desenvolvido, mas nunca para a realidade da população brasileira.

Outro exemplo é a PEC (projeto de emenda constitucional) que confere à vários servidores públicos um bônus de 5% nos vencimentos a cada cinco anos. Não se discute a necessidade de remunerar de forma adequada servidores públicos, contudo, esta proposta projeta uma bomba financeira de 42 bilhões de reais, onerando, inclusive, todos os estados da federação. Enquanto isso a grande massa da população recebe parcos rendimentos, totalmente insuficientes para oferecer uma vida com o mínimo de dignidade. Priorizar esta PEC, em detrimento de inúmeras outras discussões, mostra o quão afastado está o congresso da população, a mesma que elegeu seus integrantes.

Mais um exemplo é a manifestação do congresso após o julgamento do STF sobre o porte de maconha. A lei vigente (11.434/2006) já reconhece que a figura do usuário não poderia ser penalizada com prisão. O STF simplesmente definiu a quantidade de droga (apenas para maconha), que define o que é usuário (porte) e o que deve ser considerado traficante. Tudo isto para evitar uma verdadeira loteria que acontece no poder judiciário, que não contava com um critério quantitativo objetivo, criando um verdadeiro inferno para o acusado em determinados casos. Temos que ter em mente que cruzar a tênue linha de usuário para traficante significa transformar um crime de menor potencial ofensivo em um crime equiparado à hediondo, que não admite fiança, e pode ser apenado com até 15 anos de prisão. Até então não existia nenhum parâmetro quantitativo, pois o congresso nunca tomou esta iniciativa. E foi apenas isso que o STF decidiu, fazendo a expressa ressalva de que o próprio congresso poderá aprovar quantidade diversa futuramente.

Contudo, em resposta, o congresso criou mais uma PEC agora para incluir o inciso LXXX no art. 5º da constituição federal, onde criminaliza qualquer das figuras, mas faz a ressalva da distinção entre traficante e usuário, aplicando à este último penas alternativas e tratamento contra dependência. Passa ao largo das reflexões do congresso nacional o fato de que em torno de 30% da massa carcerária é formada por presos ligados ao crime de tráfico de entorpecentes, e em muitas vezes estas pessoas não passam de meros usuários, que estavam apenas portando maconha para uso próprio. Ao invés de se importar com esta realidade, tentando arquitetar alguma maneira pragmática para resolver o real problema do povo, os legisladores se preocupam com uma ação judicial que estava em trâmite desde 2015, em um exclusivo (e sem sentido) cabo de guerra político com o poder judiciário.

Além disso, também perderam uma bela oportunidade para oferecer à população uma regulação adequada da possibilidade de utilização de medicamentos extraídos da canabis, que comprovadamente podem auxiliar em vários tratamentos de saúde. Mais uma vez nos deparamos com uma total desconexão entre congresso nacional e os anseios da população.

A população precisa rapidamente refletir mais sobre o papel do congresso nacional nas suas vidas. Seu atual papel na democracia é fundamental para o futuro do país.

(*) LUCIANO PINTO é advogado (luciano@lpadvocacia.com.br).

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