Em Memorial de Aires vem a advertência: “Papel, amigo papel, não recolhas tudo o que escrever esta pena vadia (…). Não, papel. Quando sentires que insisto nessa nota, esquiva-te da minha mesa e foge. A janela aberta te mostrará um pouco de telhado, entre a rua e o céu, e ali ou acolá acharás descanso. Comigo, o mais que podes achar é esquecimento, que é muito, mas não é tudo.”

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Uma cabeça que rola por aí

A vida é mistério. Um amigo me disse ontem: papel nenhum no mundo resolve… falávamos sobre o “viver”. No papel em branco cabe o mundo, mas o mundo não sabe disso.

Sobretudo os documentos, os papéis de hoje, que trazem o vazio, as páginas descoradas. Todas as palavras são ditas, todos os Poderes decretam, publicam, sentenciam seus atos. Os órgãos proclamam seus documentos formais, deliberam todos os seus papéis monótonos. E muito ainda não existe, muito ainda é “em branco”, é silêncio. São como cartas sem conteúdo, sem um quê que preencha ou faça memorar.

Será por que o que se escreve procura um monólogo e um diálogo consigo mesmo?! Será que somos como alguém que, como disse Kant, conhece das coisas o que a gente mesmo põe nelas?!

Ferdinand Lassalle chamava a Constituição Federal de uma simples “folha de papel”. Dizia: “Onde a Constituição escrita não corresponder à real, irrompe inevitavelmente um conflito que é impossível evitar e no qual, mais dia menos dia, a Constituição escrita, a folha de papel, sucumbirá necessariamente perante a Constituição real, a das verdadeiras forças vitais do país.”

Sob a supervisão de Eleanor foi acordado um conjunto de direitos humanos; depois de um longo caminho, foi publicada a Declaração Universal dos Direitos Humanos. E todos viveram felizes para sempre! Exceto pelas mais de 800 milhões pessoas em todo o mundo que não têm acesso suficiente à alimentação, pelas pessoas presas por apenas expressar seu pensamento, pelas milhares que não têm acesso à educação e à saúde, ao esgotamento sanitário, as que vivem escravizadas, esquecidas em silêncio….

Ainda são palavras em uma página. Ainda são “cidadãos de papel”. Páginas e mais páginas de papel em branco, com espaço preenchível sem nada escrito, pálido, amarelado e cadavérico.

Entretanto, são as pessoas reais que vivem e lutam a vida (que dói sempre) com coragem. Nas cidades, nas periferias, ruas e guetos, nos postos de saúde, escolas… é aí que se escrevem as páginas do livro da vida, estas sim, feitas de sangue, suor e lágrimas.

Ora, quem vai fazer essas folhas de papéis realidade, quem vai escrever no papel em branco e preencher o oco? Somos nós: as pessoas, as gentes, as crianças, as mães, pais e filhos.

Eleanor Roosevelt disse: “Afinal, onde começam os Direitos Universais? Em pequenos lugares, perto de casa — tão perto e tão pequenos que eles não podem ser vistos em qualquer mapa do mundo. No entanto, estes são o mundo do indivíduo; a vizinhança em que ele vive; a escola ou universidade que ele frequenta; a fábrica ou escritório em que ele trabalha. Tais são os lugares onde cada homem, mulher e criança procura igualdade de justiça, igualdade de oportunidade, igualdade de dignidade sem discriminação. A menos que esses direitos tenham significado aí, eles terão pouco significado em qualquer outro lugar. Sem a ação organizada do cidadão para defender esses direitos perto de casa, nós procuraremos em vão pelo progresso no mundo maior.”

Num filme de fantasia épica e aventura eu ouvi isto: Por que o “pequeno”? Alguns acreditam que somente um “grande poder” pode manter o “mal” sobre controle, não é o que descobri. São as pequenas coisas, as tarefas diárias de pessoas comuns que mantêm o “mal” afastado, simples ações de bondade e amor…

Amigo(a) leitor(a), nós somos os autores de nossa vida, a caneta é nossa. “Escreve-se sempre com as mãos nuas, mas a nudez e a transparência da página é que permitem a penetração no obscuro, a revelação do invisível.” (Ramos Rosa)

*EMANUEL FILARTIGA ESCALANTE RIBEIRO  é promotor de Justiça em Mato Grosso

CONTATO:      emanuel.ribeiro@mpmt.mp.br