Estamos vivendo uma situação de trauma psicossocial e luto coletivos diante das dezenas de milhares de mortes provocadas pela COVID-19. Até agora, o isolamento social tem sido a única medida eficaz para conter essa tragédia que nos assola, o que levou à suspensão das aulas presenciais na UFMT. Nesse período, há um consenso entre a comunidade universitária sobre a importância de nossa instituição manter-se ativa durante o período de isolamento social, havendo divergências quanto à direção desses esforços.
A gestão da UFMT apresentou uma proposta de flexibilização curricular em que se institui um calendário paralelo de oferta remota das disciplinas presenciais e outros componentes curriculares dos cursos de graduação, conforme deliberação dos colegiados de curso, com adesão facultativa de docentes e estudantes. Os defensores da proposta fizeram questão de demarcar que não se trata de EAD, mas de flexibilizar as regras acadêmicas para que conteúdos de disciplinas presenciais sejam oferecidos a distância. Ao compreender que haja mesmo uma diferença entre EAD e a oferta remota, via Tecnologias de Informação e Comunicação (TIC), de conteúdos planejados para os cursos presenciais, concluímos que por não ter a mesma estrutura, fluxos e suportes que sustentam a EAD, a flexibilização mostra-se muito débil, com desigualdades no acesso ao ensino que poderá se tornar também desigualdade na qualidade da formação.
Não fica claro se os conteúdos ofertados remotamente serão reofertados presencialmente. Assim, surge a pergunta: quem começar tais disciplinas, mas desistir ou quem nem tiver a possibilidade de escolha, poderá cursá-las presencialmente no retorno das atividades nos campi? Ao que se lê nas respostas dadas pela gestão da UFMT é que não, eles apenas poderão acessar o conteúdo que ficará armazenado no Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA). Veja que além de não garantir o acesso simultâneo de todos os estudantes a esse conteúdo mediado pelas TIC, criando uma sensação de “deixado para trás”, mesmo que não tenha sido essa a intenção dos que seguiram adiante, não há garantia de que eles tenham a mesma qualidade da formação, caso tenham que acessar ao histórico do AVA. Sem falar que a qualidade está em questão até para quem tem acesso à internet e a computadores, dado os problemas de oscilação de sinal, a tensão psicológica do momento da pandemia e do isolamento social, entraves causados com a mudança da rotina e estrutura dos lares.
Há referências a pesquisas de que 92% dos estudantes da UFMT afirmaram ter acesso à internet. Porém, essa informação não nos serve por vários motivos: 1) E o acesso a computadores? Muitos acessam a internet exclusivamente pelos celulares, com pacote de dados limitados e isso não era problema quando tinham a internet dos laboratórios de informática da UFMT; 2) muitos não têm condições de trabalho e estudo em seus lares, por diversos motivos; 3) a pesquisa traz informação de período anterior à grave crise que vivemos, em que muitas famílias perderam renda e podem não mais conseguir pagar a internet. Além disso, pesquisas publicadas recentemente na imprensa indicam que 1/3 dos brasileiros (70 milhões) têm acesso precário à internet ou nenhum acesso; entre as famílias de baixa renda (classes D e E), 85% somente acessam a internet pelo celular com pacotes de dados limitados.
Chama a atenção a rapidez com que se tentou aprovar essa proposta no Conselho Universitário de Ensino, Pesquisa e Extensão, em curto prazo para discussão e elaboração de alternativas; essa ferramenta de gestão do tempo deliberativo costuma ter efeitos antidemocráticos: aceitar o que se tem porque não dá tempo fazer diferente.
Tal debate traz à tona a profunda desigualdade social imposta pela sociabilidade capitalista e impõe à universidade pública, que pelas cotas se vê inclusiva, um dilema que já existia antes, mas que agora mostra suas vísceras: sob ataque das políticas de austeridade desde 2012, quando começamos a sofrer cortes e contingenciamentos orçamentários, até onde vai nosso compromisso com a inclusão e permanência dos estudantes oriundos de famílias com baixa renda?
Há os que parecem propor que o enfrentamento e solução da desigualdade social não cabem à universidade, mas sim ao Estado. Nas entrelinhas, parece haver a proposição: “não podemos fazer nada, sigamos o calendário acadêmico de forma remota e o Estado que se vire para dar o acesso a quem fica para trás. Quem não teve acesso às aulas on line, que busque estudar com conteúdo gravado quando puder acessá-los”. Esse é um grande dilema ético que atravessa a universidade pública e gratuita e põe à prova os discursos de inclusão.
Penso que temos debatido tal dilema de forma limitada, como se estivéssemos em um beco sem saída e isso ocorre porque não temos encarado sua determinação fundamental: a desigualdade do acesso às TIC e a um ambiente adequado de trabalho e estudo são apenas a ponta do iceberg; são expressão da questão social imposta pela sociabilidade capitalista, que deve ser modificada radicalmente. É certo que isso não se resolve pelo Estado nem pela ciência burguesa: é tarefa da classe trabalhadora organizada em sua luta anticapitalista, antirracista e contra o patriarcado. Por outro lado, mesmo sendo um campo de disputa de projetos de sociedade, dentro das contradições da “democracia” burguesa, a universidade pública brasileira, patrimônio de seu povo, deve estar a serviço da sociedade no enfrentamento à pandemia que nos assola, além de ser um estratégico agente do Estado (sim, a UFMT é parte do Estado!) para elaboração de políticas públicas de enfrentamento às desigualdades sociais, por mais limitadas que sejam.
Assim, em nome do compromisso ético de formação de qualidade para todos os segmentos da sociedade brasileira, sobretudo das famílias de baixa renda, deverá ser rejeitada qualquer proposta de continuidade do calendário acadêmico que não leve em conta a igualdade de condições de acesso e de padrões de qualidade. Tal posição jamais representou cruzar os braços e esperar a pandemia passar, ao contrário: é preciso intensificar as ações que se voltem para produção de conhecimento, tecnologias e serviços que auxiliem a sociedade brasileira a vencer a tragédia da Covid-19 e seus impactos socioeconômicos, psicológicos e culturais. É nessa direção que deveremos pensar nossos esforços para atualização (e não flexibilização) do tripé ensino-pesquisa-extensão.
*MAELISON NEVES é docente do Departamento de Psicologia, diretor da Associação dos Docentes (Adufmat-Ssind) e doutorando em Saúde Coletiva na UFMT – Campus Cuiabá.