A execução imediata das condenações do tribunal do júri
Uma forma inconstitucional de compensar o resultado das ADC’s 43 e 44/STF
O Supremo Tribunal Federal está debatendo no Recurso Extraordinário n. 1.235.340, com repercussão-geral reconhecida, a possibilidade (ou não!) das sentenças condenatórias proferidas pelo Tribunal do Júri serem executadas imediatamente.
Ainda quanto a este tema, entrou em vigor o denominado “pacote anticrime”, alteração legislativa materializada na lei n. 13.964/2019, que, entre outras mudanças, promoveu as seguintes no Código de Processo Penal:
Art. 3º O Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941 (Código de Processo Penal), passa a vigorar com as seguintes alterações:
[…]
“Art. 492. ……………………………………………………………………………….
I – …………………………………………………………………………………………..
………………………………………………………………………………………………
e) mandará o acusado recolher-se ou recomendá-lo-á à prisão em que se encontra, se presentes os requisitos da prisão preventiva, ou, no caso de condenação a uma pena igual ou superior a 15 (quinze) anos de reclusão, determinará a execução provisória das penas, com expedição do mandado de prisão, se for o caso, sem prejuízo do conhecimento de recursos que vierem a ser interpostos;
………………………………………………………………………………………………
§ 3º O presidente poderá, excepcionalmente, deixar de autorizar a execução provisória das penas de que trata a alínea e do inciso I do caput deste artigo, se houver questão substancial cuja resolução pelo tribunal ao qual competir o julgamento possa plausivelmente levar à revisão da condenação.
§ 4º A apelação interposta contra decisão condenatória do Tribunal do Júri a uma pena igual ou superior a 15 (quinze) anos de reclusão não terá efeito suspensivo.
§ 5º Excepcionalmente, poderá o tribunal atribuir efeito suspensivo à apelação de que trata o § 4º deste artigo, quando verificado cumulativamente que o recurso:
I – não tem propósito meramente protelatório; e
II – levanta questão substancial e que pode resultar em absolvição, anulação da sentença, novo julgamento ou redução da pena para patamar inferior a 15 (quinze) anos de reclusão.
§ 6º O pedido de concessão de efeito suspensivo poderá ser feito incidentemente na apelação ou por meio de petição em separado dirigida diretamente ao relator, instruída com cópias da sentença condenatória, das razões da apelação e de prova da tempestividade, das contrarrazões e das demais peças necessárias à compreensão da controvérsia.” (NR)
A alteração no Art. 492, I, “e” do Código de Processo Penal, e, consequentemente, dos parágrafos 3º, 4º, 5º e 6º, positivaram na legislação infraconstitucional a possibilidade de execução imediata das sentenças condenatórias proferidas pelo Tribunal do Júri, quando forem iguais ou superiores a 15 anos de reclusão.
Quanto ao RE antes mencionado, seu julgamento se iniciou em plenário virtual, ocasião em que o relator, Min. Luis Roberto Barroso, proferiu voto no sentido da possibilidade da execução imediata das sentenças condenatórias proferidas pelo Tribunal do Júri, independente da pena aplicada, no que foi acompanhado pelo Min Dias Toffoli.
O Min. Gilmar Mendes divergiu do relator.
O Min. Ricardo Lewandowski pediu vista, razão pela qual o julgamento foi suspenso e aguarda continuidade, possivelmente em ambiente físico.
Neste contexto, dois acontecimentos chamam atenção.
O primeiro deles foi a inclusão do RE em julgamento virtual.
Dispõe a resolução n. 642/2019/STF:
Art. 1o O ministro relator poderá submeter a julgamento listas de processos em ambiente presencial ou eletrônico.
§ 1o A critério do relator, poderão ser submetidos a julgamento em ambiente eletrônico, observadas as respectivas competências das Turmas ou do Plenário, os seguintes processos:
I – agravos internos, agravos regimentais e embargos de declaração;
II – medidas cautelares em ações de controle concentrado;
III – referendum de medidas cautelares e de tutelas provisórias;
IV – recursos extraordinários e agravos, inclusive com repercussão geral reconhecida, cuja matéria discutida tenha jurisprudência dominante no âmbito do STF;
V – demais classes processuais cuja matéria discutida tenha jurisprudência dominante no âmbito do STF.
Verifica-se, portanto, que os recursos extraordinários com repercussão-geral reconhecida somente podem ser julgados em ambiente virtual (ou eletrônico) quando a “matéria discutida tenha jurisprudência dominante no âmbito do STF”.
Segundo o Ministro relator afirmou em diversos despachos proferidos nos autos, o tema (execução imediata da pena no Júri) seria “pacífico na primeira turma”.
Ora, ainda que houvesse procedência nesta afirmação, não justificaria o julgamento virtual a alegação de que a matéria é pacífica na primeira turma. Conforme o regimento interno e a resolução n. 642/2019 da Corte, a matéria, para justificar o julgamento eletrônico, precisa ser dominante “no âmbito do STF”.
Sendo assim, contando o Supremo Tribunal Federal com duas turmas, deveria o relator apontar precedentes do plenário ou dos dois órgãos fracionários, para que pudesse colocar o recurso em julgamento virtual, o que não ocorreu.
Por outro lado, diferente do que alegou o Min. Luis Roberto Barroso nos autos, a matéria não é pacífica na primeira turma. Pelo contrário!
Não há um único precedente da primeira turma que respalde a alegação de que este tema encontra-se ali pacificado. O que existe é um julgado, proferido no habeas corpus n. 118.770/SP, onde a maioria dos ministro votou no sentido de NÃO CONHECER da impetração, enquanto o Min. Luis Roberto Barroso, que redigiu a ementa, votou por denegar a ordem no mérito, assentando a possibilidade da execução imediata das condenações proferidas pelo Tribunal do Júri.
Em outras palavras, o julgamento do habeas corpus n. 118.770/SP não respalda a afirmação posta nos autos do RE n. 1.235.340, no sentido de haver jurisprudência dominante no âmbito da primeira turma em qualquer sentido.
A propósito, esta não é uma constatação isolada!
Conforme aclarou o Min. Reynaldo Soares da Fonseca, ao prover no Superior Tribunal de Justiça o RHC n.º 113.920, para “assegurar ao recorrente o direito de aguardar em liberdade o encerramento do julgamento perante as instâncias ordinárias”, a conclusão do julgado do Supremo Tribunal Federal no HC. 118.770/SP foi no sentido de não conhecer da impetração por motivos formais, não havendo que se falar que a tese divergente invocada pelo Exmo. Min. Luis Roberto Barroso foi acolhida.
No ponto é válida a transcrição do voto do ilustre ministro do STJ na parte em que analisa o teor dos pronunciamentos dos componentes da Primeira Turma do STF por ocasião do julgamento do mencionada habeas corpus, veja:
[…] os votos dos quatro ilustres componentes do referido Colegiado presentes no julgamento não acompanharam, expressamente, a tese jurídica sustentada pelo eminente Relator para o acórdão, Min. Luís Roberto Barroso, de que não viola o princípio da presunção de inocência ou da não culpabilidade a execução da condenação pelo Tribunal do Júri, independentemente do julgamento da apelação ou de qualquer outro recurso.
O Relator, Ministro Marco Aurélio, vencido, concedeu a ordem, por não vislumbrar, na hipótese, o preenchimento dos requisitos dos arts. 312 e 313 do CPP. A Ministra Rosa Weber não vislumbrou excesso de prazo posterior à sentença condenatória.
Já o Ministro Luiz Fux registrou, textualmente, que não conhecia do Habeas Corpus, porque era substitutivo de recurso ordinário, observando a jurisprudência do STF. A conclusão do julgado foi em não admitir a impetração e revogar a liminar.
Exatamente neste mesmo sentido é o entendimento do Exmo. Min. Jorge Mussi, consoante se verifica do que fora por Sua Excelência consignado no bojo do habeas corpus nº 515.611/SC, perante o Superior Tribunal de Justiça, confira-se:
Finalmente, no que se refere à aventada ilegalidade da expedição de mandado de prisão em desfavor do paciente, tem-se que respondeu ao processo em liberdade, sendo que, ao proferir sentença condenatória no feito, o togado de origem, invocando a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do HC n.118.770 ED, determinou o início do cumprimento da pena que lhe foi imposta, independentemente da interposição de recurso.
Por sua vez, a Corte Estadual entendeu que “independentemente da configuração ou extensão da motivação do comando judicial impugnado, o Supremo Tribunal Federal já decidiu que a medida tomada pelo Magistrado de Primeiro Grau, consistente na execução antecipada da pena imposta pelo Tribunal do Júri, é adequada” (e-STJ fl. 26).
Delineado o contexto fático-processual, verifica-se que o acórdão impugnado trata da execução provisória da pena, discutindo a possibilidade de se determinar o cumprimento antecipado da pena privativa de liberdade imposta pelo Tribunal do Júri, ou seja, com a prolação da sentença condenatória pelo Juiz Presidente, independentemente de qualquer possível impugnação do réu, tal como fez o juízo de 1º grau neste caso.
Fundamentou-se o magistrado – e, neste ponto, mantida a decisão pelo Tribunal a quo – no HC n. 118.770 do Pretório Excelso que, em síntese, entendeu compatível a execução provisória da pena com a lógica do ARE 964.246-RG, eis que em eventual recurso o Tribunal não poderia reapreciar fatos e provas, tendo em conta a soberania do veredicto do Júri, razão pela qual o cumprimento antecipado da reprimenda ocorreria de pronto, independentemente do julgamento da apelação ou de qualquer outro recurso.
Ocorre que analisando os fundamentos da decisão da Corte Suprema, proferida por maioria de votos, constata-se que se discutiu o próprio cabimento do habeas corpus, prevalecendo a tese pelo não conhecimento, inexistindo voto vencedor redigido, mas apenas as notas taquigráficas do julgamento, das quais se extrai que não houve a expressa anuência dos demais membros do colegiado quanto à tese da execução provisória da pena.
Esta circunstância já foi apontada por esta Quinta Turma, no HC n. 462.763-SC, oportunidade em que o eminente Relator, Ministro Reynaldo Soares da Fonseca sublinhou que “os votos dos quatro ilustres componentes do referido colegiado presentes no julgamento não acompanharam, expressamente, a tese jurídica sustentada pelo eminente Redator para o acórdão, Min. Luiz Roberto Barroso”, razão pela qual “a conclusão majoritária do referido julgado foi no sentido de não admitir a impetração, sem comprometimento com a respeitável tese esboçada na ementa do digno Relator para o acórdão” (HC 462.763/SC, Rel. Ministro REYNALDO SOARES DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 18/09/2018, DJe 28/09/2018).
Tem-se, assim, que os fundamentos dos integrantes do colegiado para não conhecer do mandamus foram distintas, subtraindo da decisão a força necessária para que seja utilizada como precedente a nortear a atuação futura dos demais tribunais.
Aliás, cumpre destacar que nem mesmo a superveniência dos embargos de declaração ao aludido julgamento autoriza conclusão diversa, pois nestes concluiu-se tão somente pela inexistência dos vícios do artigo 619 do Código de Processo Penal, julgando-se prejudicado o recurso ante a superveniência da certificação do trânsito em julgado da condenação.
Concluiu-se, portanto, que a discussão quanto à execução provisória ficou à margem, não se podendo cogitar, assim, que se trata de razão de decidir, mas apenas um obter dicta. […]
Portanto, a questão NÃO é pacífica na primeira turma, muito menos da segunda turma, o que desautorizava a inclusão do mencionado RE em plenário virtual.
O segundo acontecimento que chama atenção, foi a tese firmada pelo relator do RE n. 1.235.340 quando do início do julgamento em plenário virtual, no sentido da possibilidade da execução imediata das sentenças condenatórias proferidas pelo Tribunal do Júri, independente da pena aplicada.
Quanto ao tema, necessário um rápido retrospecto. No ano de 2016, ao julgar o habeas corpus n.º 126.292, a Suprema Corte, modificando seu entendimento consolidado, admitiu o início do cumprimento de pena antes do trânsito em julgado, desde que esgotados os recursos perante as instâncias ordinárias.
A orientação referia-se, na oportunidade, a qualquer condenação criminal não substituída por penas restritivas de direitos (Art. 44 do Código Penal), não apenas aquelas proferidas pelo Tribunal Popular do Júri.
Após o julgamento do citado habeas corpus n.º 126.292, o Partido Ecológico Nacional e o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil ingressaram no STF com as ADC’s 43 e 44, por compreenderem que referida posição contrariava a Constituição Federal, obtendo o seguinte resultado:
Decisão: O Tribunal, por maioria, nos termos e limites dos votos proferidos, julgou procedente a ação para assentar a constitucionalidade do art. 283 do Código de Processo Penal, na redação dada pela Lei nº 12.403, de 4 de maio de 2011, vencidos o Ministro Edson Fachin, que julgava improcedente a ação, e os Ministros Alexandre de Moraes, Roberto Barroso, Luiz Fux e Cármen Lúcia, que a julgavam parcialmente procedente para dar interpretação conforme. Presidência do Ministro Dias Toffoli. Plenário, 07.11.2019.
Assim, a Suprema Corte, reconhecendo o erro do julgamento proferido em 2016 no citado habeas corpus, restabeleceu o entendimento no sentido de que a execução da sentença penal condenatória somente se legitimaria e se compatibilizaria com o texto Constitucional quando realizada após o trânsito em julgado.
Imaginava-se que a questão estava solucionada, contudo ela reaparece sob nova roupagem, qual seja, a de que as condenações do Tribunal do Júri devem ser vistas de maneira diferente daquelas de competência do Juiz singular.
O fundamento utilizado para sustentar a possibilidade de execução imediata das sentenças condenatórias proferidas pelo Tribunal do Júri se ampara em três premissas: (i) a soberania dos veredictos; (ii) a impossibilidade de reapreciação dos fatos e provas pelo Tribunal de 2a instância nas condenações do Júri; e (iii) a lei 13.964/2019.
Pois bem.
A alteração legislativa promovida pela lei n. 13.964/2019, bem como o eventual provimento do RE n. 1.235.340, objetivam, em verdade, “driblar” a posição majoritária da Suprema Corte no julgamento das ADC’s n. 43 e 44, promovendo uma espécie de compensação de resultados.
Isto porque os julgados referenciados (ADC’s 43 e 44) impediram a execução provisória de sentenças condenatórias criminais tanto dos Juízes singulares, quanto àquelas proferidas pelo Tribunal do Júri, ja que o Art. 283 do Código de Processo Penal, declarado Constitucional pela Suprema Corte, se aplicava a ambas as hipóteses.
Agora, com a nova lei, excluiu-se a aplicação do Art. 283 do Código de Processo Penal nas condenações pelo Júri que alcancem 15 anos de prisão. Já no RE n. 1.235.340, o voto do relator exclui a aplicação do Art. 283 do CPP a qualquer condenação do Tribunal do Júri, independente da pena.
Isto viola de maneira direta o princípio Constitucional da Presunção de Inocência, plasmado no Art. 5º, LVII, da Carga Magna, verbis:
Art. 5º.: …………………………………………………………………………………..
LVII – ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;
Não é compatível com a Constituição Federal a previsão legal ou o julgado que autoriza alguém cumprir pena por crime que ainda é considerado inocente.
Ademais, a previsão Constitucional da soberania dos veredictos não autoriza a execução antecipada das condenações do Tribunal do Júri. Em verdade, tanto mencionado princípio (soberania dos veredictos), quanto o da presunção de inocência, se completam e convivem harmonicamente.
A soberania dos veredictos, prevista na Constituição Federal, nada mais faz do que impossibilitar que um Tribunal de togados profira decisão em substituição ao que implementado pelo Conselho de Sentença. Em claras palavras, os recursos interpostos contra as decisões do Tribunal do Júri não possuem efeito substitutivo.
Contudo, pode o Tribunal, a depender do caso concreto, anular (e não substituir!) o julgamento e submeter o réu a um novo, seja quando (a.) ocorrer nulidade posterior à pronúncia; (b.) for a sentença do juiz-presidente contrária à lei ou à decisão dos jurados; (c.) houver erro ou injustiça no tocante à aplicação da pena; ou (d.) for a decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos.
Dito de outro modo, a decisão do Conselho de Sentença não é intangível, podendo ser desconstituída inclusive quando “manifestamente contrária à prova dos autos”, nos termos do Art. 593, III, “d”, do Código de Processo Penal.
A propósito, este dispositivo legal já foi declarado compatível com a Constituição Federal pela Suprema Corte em mais de uma oportunidade, veja:
HABEAS CORPUS – JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL CONSOLIDADA QUANTO À MATÉRIA VERSADA NA IMPETRAÇÃO – POSSIBILIDADE, EM TAL HIPÓTESE, DE O RELATOR DA CAUSA DECIDIR, MONOCRATICAMENTE, A CONTROVÉRSIA JURÍDICA – COMPETÊNCIA MONOCRÁTICA QUE O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL DELEGOU, VALIDAMENTE, EM SEDE REGIMENTAL (RISTF, ART. 192, “CAPUT”, NA REDAÇÃO DADA PELA ER Nº 30/2009) – INOCORRÊNCIA DE TRANSGRESSÃO AO PRINCÍPIO DA COLEGIALIDADE – PLENA LEGITIMIDADE JURÍDICA DESSA DELEGAÇÃO REGIMENTAL – SUPOSTA NULIDADE DO JULGAMENTO EMANADO DO TRIBUNAL DO JÚRI – GARANTIA CONSTITUCIONAL DA SOBERANIA DO VEREDICTO DO CONSELHO DE SENTENÇA – RECURSO DE APELAÇÃO (CPP, ART. 593, III, “d”) – DECISÃO DO JÚRI CONSIDERADA MANIFESTAMENTE INCOMPATÍVEL COM A PROVA DOS AUTOS – PROVIMENTO DA APELAÇÃO CRIMINAL – SUJEIÇÃO DO RÉU (PACIENTE) A NOVO JULGAMENTO – POSSIBILIDADE – ACÓRDÃO PLENAMENTE FUNDAMENTADO – AUSÊNCIA DE OFENSA À SOBERANIA DO VEREDICTO DO JÚRI – RECEPÇÃO, PELA CONSTITUIÇÃO DE 1988, DO ART. 593, III, “d”, DO CPP – EXAME APROFUNDADO DAS PROVAS – INVIABILIDADE NA VIA SUMARÍSSIMA DO HABEAS CORPUS – RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO” (HC 84.486-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, Segunda Turma, Dje 6.8.2010 – grifos nossos).
HABEAS CORPUS. PROCESSO PENAL. TRIBUNAL DO JÚRI. DECISÃO MANIFESTAMENTE CONTRÁRIA À PROVA DOS AUTOS. APELAÇÃO PROVIDA. DETERMINAÇÃO DE NOVO JULGAMENTO. VIOLAÇÃO DA SOBERANIA DOS VEREDICTOS. INOCORRÊNCIA. REEXAME DO CONJUNTO FÁTICO-PROBATÓRIO. IMPOSSIBILIDADE. ORDEM DENEGADA. I – A determinação para que o Tribunal do Júri realize novo julgamento, na hipótese prevista no art. 593, III, d, do Código de Processo Penal, não constitui violação à soberania dos veredictos. Precedentes. II – A discussão sobre o acerto ou desacerto do acórdão do Tribunal que cassa decisão dos jurados contrária às provas dos autos, demandaria o reexame do conjunto fático-probatório, o que é vedado em sede de habeas corpus. III – Ordem denegada. (HC 97.905, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, Primeira Turma, Dje 18.6.2010 – grifos nossos
Sendo assim, havendo a possibilidade legal e Constitucional de o Tribunal de 2ª instância revolver o acervo probatório para proclamar a decisão do Conselho de Sentença manifestamente contrária à prova dos autos, determinando a submissão do réu a novo julgamento, deve o acusado aguardar em liberdade o reexame da matéria quando ausentes requisitos de cautelaridade (Art. 312 do Código de Processo Penal), exatamente como proclamam o Art. 5º, LVII, da Constituição Federal e Art. 283 do Código de Processo Penal.
Não por outra razão o Código de Processo Penal, precisamente em seu Art. 597, assenta que “a apelação de sentença condenatória terá efeito suspensivo, salvo o disposto no art. 393, a aplicação provisória de interdições de direitos e de medidas de segurança (arts. 374 e 378), e o caso de suspensão condicional de pena”.
Ademais, a soberania dos veredictos não é absoluta (como nenhum outro princípio Constitucional). Ela sede espaço a outros princípios que ostentem força de resguardar a liberdade jurídica do acusado, quando seja possível ocorrer injustiça no caso concreto, em um claro exercício de ponderação.
Basta ver os reiterados pronunciamentos do Supremo Tribunal Federal para quem, mesmo nos casos de competência do Tribunal do Júri, pode o Tribunal competente, em revisão criminal, absolver o réu.
Neste sentido:
REVISÃO CRIMINAL. CONDENAÇÃO PENAL PELO JÚRI. ERRO JUDICIÁRIO. INOPONIBILIDADE DA SOBERANIA DO VEREDICTO DO CONSELHO DE SENTENÇA À PRETENSÃO REVISIONAL. JULGAMENTO DESSA AÇÃO AUTÔNOMA DE IMPUGNAÇÃO PELO TRIBUNAL DE SEGUNDO GRAU. CUMULAÇÃO DO JUDICIUM RESCINDENS COM O JUDICIUM RESCISSORIUM. POSSIBILIDADE. RECURSO DO MINISTÉRIO PÚBLICO A QUE SE NEGA SEGUIMENTO. – O Tribunal de segunda instância, ao julgar a ação de revisão criminal, dispõe de competência plena para formular tanto o juízo rescindente (judicium rescindens), que viabiliza a desconstituição da autoridade da coisa julgada penal mediante invalidação da condenação criminal, quanto o juízo rescisório (judicium rescissorium), que legitima o reexame do mérito da causa e autoriza, até mesmo, quando for o caso, a prolação de provimento absolutório, ainda que se trate de decisão emanada do júri, pois a soberania do veredicto do Conselho de Sentença, que representa garantia fundamental do acusado, não pode, ela própria constituir paradoxal obstáculo à restauração da liberdade jurídica do condenado. Doutrina. Precedentes. (STF; ARE 674.151, Rel. Min. Celso de Mello, DJe de 18/10/2013)
Destaca-se, por oportuno, as palavras do Ministro Celso de Melo no ARE 674.151, para quem “o Tribunal de segunda instância, ao julgar a ação de revisão criminal, dispõe de competência plena para formular tanto o juízo rescindente (“judicium rescindens”), que viabiliza a desconstituição da autoridade da coisa julgada penal mediante invalidação da condenação criminal, quanto o juízo rescisório (“judicium rescissorium”), que legitima o reexame do mérito da causa e autoriza, até mesmo, quando for o caso, a prolação de provimento absolutório, ainda que se trate de decisão emanada do júri, pois a soberania do veredicto do Conselho de Sentença, que representa garantia fundamental do acusado, não pode, ela própria, constituir paradoxal obstáculo à restauração da liberdade jurídica do condenado”. (grifo nosso)
Registre-se, por necessário, respeitáveis pronunciamentos já produzidos na Suprema Corte acerca da impossibilidade da execução provisória das condenações emanadas do Tribunal do Júri, proclamando que a soberania dos veredictos e a presunção de inocência são aplicáveis em sua inteireza em um caso penal, não se excluindo.
Neste sentido decidiu o Min. Gilmar Mendes no habeas corpus n.º 176.229/MG, para quem é “integralmente ilegítima a decisão que determina a execução provisória da pena, em razão de condenação dimanada do Tribunal do Júri, de modo que a privação de liberdade do condenado, em tais circunstâncias, somente pode se dar se presente motivo justo a reclamar a decretação da prisão preventiva (…)”.
De igual modo:
(…)
Não cabe invocar a soberania do veredicto do Conselho de Sentença, para justificar a possibilidade de execução antecipada (ou provisória) de condenação penal recorrível emanada do Tribunal do Júri, eis que o sentido da cláusula constitucional inerente ao pronunciamento soberano dos jurados (CF, art. 5º, XXXVIII, “c”) não o transforma em manifestação decisória intangível, mesmo porque admissível, em tal hipótese, a interposição do recurso de apelação, como resulta claro da regra inscrita
no art. 593, III, “d”, do CPP.
É nesse sentido – cabe insistir – que se orienta a posição jurisprudencial desta Suprema Corte, de que destaco, como expressão desse entendimento, a seguinte decisão:
“RECURSO ORDINÁRIO EM ‘HABEAS CORPUS’ – (…) – GARANTIA CONSTITUCIONAL DA SOBERANIA DO VEREDICTO DO CONSELHO DE SENTENÇA – RECURSO DE APELAÇÃO (CPP, ART. 593, III, ‘d’) – PRIMEIRA DECISÃO DO JÚRI CONSIDERADA MANIFESTAMENTE INCOMPATÍVEL COM A PROVA DOS AUTOS – PROVIMENTO DA APELAÇÃO CRIMINAL INTERPOSTA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO – SUJEIÇÃO DO RÉU A NOVO JULGAMENTO – POSSIBILIDADE – ACÓRDÃO PLENAMENTE FUNDAMENTADO – AUSÊNCIA DE OFENSA À SOBERANIA DO VEREDICTO DO JÚRI – RECEPÇÃO, PELA CONSTITUIÇÃO DE 1988, DO ART. 593, III, ‘d’, DO CPP – (…) – PRECEDENTES – RECURSO DE AGRAVO IMPROVIDO.” (RHC 132.632-AgR/PR, Rel. Min. CELSO DE MELLO)
Vê-se, portanto, conforme acentua HERMÍNIO ALBERTO MARQUES PORTO (“Júri”, p. 34, item n. 27, 5ª ed., 2ª tir., 1988, RT), com fundamento no magistério de JOSÉ FREDERICO MARQUES (“Elementos de Direito Processual Penal”, vol. III/62, Forense), que a soberania dos veredictos do júri “deve ser entendida como a ‘impossibilidade de os juízes togados se substituírem aos jurados na decisão da causa’, e, por isso, o Código de Processo Penal, regulando a apelação formulada em oposição à decisão dos jurados manifestamente contrária à prova dos autos (letra ‘d’ do inciso III do art. 593), estabelece que o Tribunal ‘ad quem’, dando provimento, sujeitará o réu a novo julgamento (§ 3º do art. 593) perante o Tribunal de Júri” (grifei).
O princípio da soberania dos veredictos do Júri, desse modo, impede o Tribunal “ad quem”, ao reformar decisão emanada do Conselho de Sentença (que seja manifestamente contrária à prova dos autos), de substituí-la, em sede recursal, por um pronunciamento do próprio órgão colegiado de segunda instância. A mera possibilidade jurídico-processual de o Tribunal de Justiça invalidar a manifestação decisória do Conselho de Sentença, quando esta puser-se em situação de evidente antagonismo com a prova existente nos autos, não ofende a cláusula constitucional que assegura a soberania do veredicto do Júri, eis que, em tal hipótese, a cassação do ato decisório, determinada pelo órgão judiciário “ad quem”, não importará em resolução do litígio penal, cuja apreciação remanescerá na esfera do próprio Tribunal do Júri.
ADRIANO MARREY, ALBERTO SILVA FRANCO e RUI STOCO (“Teoria e Prática de Júri”, p. 41/44, 4ª ed., 1991, RT), apreciando essa questão em face do texto constitucional de 1988, expendem sobre ela douto e preciso magistério:
“(…) não são os jurados ‘onipotentes’, com o poder de tornar o quadrado redondo e de inverter os termos da prova. Julgam eles segundo os fatos objeto do processo; mas exorbitam se decidem contra a prova. Não é para facultar-lhes a sua subversão que se destina o preceito constitucional. Se o veredicto do Conselho de Jurados foi ‘manifestamente contrário à prova dos autos’ (o que importa em não julgar a acusação, e sim assumir atitude arbitrária perante ela), poderá o Tribunal de Justiça, em grau de recurso, se reconhecer a incompatibilidade entre o veredicto proferido e a prova que instrui os autos, determinar que o próprio Júri de novo se manifeste, sem
substituir a decisão deste, por outra própria. E nisto consiste a ‘soberania dos veredictos’ – na faculdade dos jurados decidirem por íntimo convencimento, acerca da existência do crime e da responsabilidade do acusado (matéria de fato), sem o dever de fundamentar suas conclusões.
Em suma, o Tribunal de Justiça, em grau de recurso, apenas verifica se o veredicto se coaduna com a prova. E, quando apura a inversão desta, pelo Conselho de Jurados, observando ser a decisão aberrante, insustentável,
evidentemente divorciada dos elementos de convicção e manifestamente contrária à prova dos autos, certamente que lhe cabe, à instância superior de Justiça, corrigir a anomalia, reformando o julgamento, a fim de que o próprio Júri de novo se manifeste, dentro de sua competência, fazendo-o com o devido critério.
O Tribunal ‘ad quem’ não faz a apreciação da causa, como se sujeita ao juízo singular, nem externa julgamento próprio, não substitui a decisão recorrida, por outra, de seu entendimento, nem manifesta juízo próprio acerca da materialidade do crime, e de sua autoria.” (grifei)
Essa noção ministrada pela doutrina, por tal razão, só faz acentuar o valor relativo da soberania do veredicto emanado do Conselho de Sentença, cujos pronunciamentos não se revestem, por isso mesmo, de intangibilidade jurídico-processual.
Impende registrar, ainda, por relevante, que esta Suprema Corte, no julgamento do HC 68.658/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO (RTJ 139/891), repeliu a existência de incompatibilidade do art. 593, III, “d”, do Código de Processo Penal com o texto da atual Constituição:
“A soberania dos veredictos do Júri – não obstante a sua extração constitucional – ostenta valor meramente relativo, pois as manifestações decisórias emanadas do Conselho de Sentença não se revestem de intangibilidade jurídico-processual.
A competência do Tribunal do Júri, embora definida no texto da Lei Fundamental da República, não confere a esse órgão especial da Justiça comum o exercício de um poder incontrastável e ilimitado. As decisões que dele emanam expõem-se, em consequência, ao controle recursal do próprio Poder Judiciário, a cujos Tribunais compete pronunciar-se sobre a regularidade dos veredictos.
A apelabilidade das decisões emanadas do Júri, nas hipóteses de conflito evidente com a prova dos autos, não ofende o postulado constitucional que assegura a soberania dos veredictos desse Tribunal Popular. Precedentes.”
Essa compreensão da matéria – vale relembrar – reflete antiga orientação jurisprudencial desta Corte, consolidada desde a Constituição de 1946 e reafirmada, agora, sob a égide da vigente Lei Fundamental da República (HC 66.954/SP, Rel. Min. MOREIRA ALVES – HC 67.271/SP, Rel. Min. CARLOS MADEIRA – HC 67.531/SC, Rel. Min. PAULO BROSSARD – HC 68.219/MG, Rel. Min. OCTAVIO GALLOTTI – HC 70.193/RS, Rel. Min. CELSO DE MELLO – HC 88.707/SP, Rel. Min. ELLEN GRACIE – HC 93.617-AgR/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO … v.g.).
São essas as razões que tornam inaceitável a conclusão de que a soberania do veredicto do júri legitimaria a execução antecipada ou meramente provisória da condenação proferida, em primeira instância, pelo Conselho de Sentença.
A crítica a esse entendimento, apoiada em argumentos consistentes, foi assim exposta por ROGÉRIO SANCHES CUNHA e RONALDO BATISTA PINTO (“Código de Processo Penal e Lei de Execução Penal Comentados”, p. 1.294/1.295, 2017, JusPODIVM):
“Partiu-se, portanto, da premissa de que, face à soberania que é inerente ao Tribunal do Júri, decorrente de expresso texto constitucional nesse sentido (art. 5º, inc. XXXVIII, ‘c’, da Carta), seria admitida a imediata prisão do réu, assim que condenado pelo Tribunal popular. (…). O alcance do princípio da soberania do Júri e a apelação – De se ver, inicialmente, que se conferiu ao princípio da soberania do Júri um alcance que aparentemente ele não ostenta. De sorte que, embora com previsão constitucional, esse princípio é relativo, sofrendo forte mitigação quando a lei permite, na dicção do art. 593, III, ‘d’, do Código de Processo Penal, que o Tribunal de Justiça mande o réu a novo Júri, acolhendo apelação e reconhecendo que a decisão dos jurados foi manifestamente contrária à prova dos autos. E nem poderia ser diferente, já que, embora se admitindo a soberania dos veredictos, há que se ter um meio de revisão das decisões evidentemente equivocadas.
Não que ao Tribunal de Justiça se autorize, por meio de uma apelação, condenar ou absolver o réu. Mas poderá, sem arranhar o aludido princípio constitucional, determinar que outro julgamento seja realizado. Nesse sentido o posicionamento do STF: (…). Daí porque já foi denominado esse recurso, quando manejado contra decisões provenientes do Júri, de apelação ‘sui generis’, já que atua como verdadeiro juízo de cassação, posto que, segundo lição de José Frederico Marques, ‘a soberania continua a existir, mas desaparece a onipotência arbitrária’ (Elementos de Direito Processual Penal, Campinas: Bookseller, 1997, vol. IV, p. 228).” (grifei)
Sendo assim, e em face das razões expostas, concedo, de ofício, medida liminar, para suspender, cautelarmente, até final julgamento deste processo, a ordem de prisão decretada contra o ora paciente nos autos do Processo nº 0004169-87.2000.8.06.0163 (Juízo de Direito da Vara Única da comarca de São Benedito/CE), assegurando a Aluizo Passos Araujo, se por al não estiver preso, o direito de aguardar em liberdade o julgamento do recurso de apelação por ele interposto. (…) (STF; HC 174.759; MC; Rel. Min. Celso de Mello)
Esta é a posição mais consentânea com a Constituição Federal.
Por isso, visando impedir a consolidação da alteração legislativa mencionada, bem como o provimento equivocado do RE onde a matéria está sendo discutida, formalmente propus ao Conselho Federal da OAB, na qualidade de membro designado na Comissão Especial de Garantia do Direito de Defesa, duas medidas a serem tomadas: (a) o ingresso da instituição como amicus curiae no RE n. 1.235.340, defendendo a impossibilidade da execução imediata das condenações do Tribunal do Júri; (b) ingresso da OAB com ADI em face do Art. 492, I, “e”, e parágrafos 3º, 4º, 5º e 6º do Código de Processo Penal, com a redação que foi dada pelo Art. 3º da lei 13.964/2019.
Esses pedidos aguardam deliberação.
Destarte, a execução antecipada das sentenças de 1º grau nas condenações do Tribunal do Júri, ainda que circunscritas àquelas hipóteses onde a pena alcance 15 anos de reclusão (ou mais!), viola a presunção de inocência, nos mesmos termos do que proclamado pela Suprema Corte nas ADC’s n.º 43 e 44, caracterizando a tentativa de implementação uma forma de compensar o resultado destas ações pelo STF.
*ULISSES RABANEDA DOS SANTOS é advogado em Cuiabá