O presidente Jair Bolsonaro distribuiu pessoalmente, via WhatsApp, um vídeo que relembra a facada que tomou em campanha e convoca a população para uma manifestação contra o Congresso Nacional, no dia 15 de março. A mensagem aconteceu uma semana após o general Augusto Heleno, secretário do Gabinete de Segurança Institucional, defender a mobilização para protestar contra os parlamentares.

Esses fatos revelaram uma forte crise institucional entre os poderes, reascendendo o debate sobre a liturgia do cargo de presidente, ameaça ao estado de direito, relação entre os poderes e até sobre golpe de estado.

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Toda essa celeuma ocorre porque Bolsonaro vetou um projeto aprovado no Congresso Nacional que institui o orçamento impositivo, destinando em 2020 algo em torno de 30 bilhões de reais ao congresso nacional para atender emendas parlamentares. Basta ressaltar que essa medida pode virar um efeito cascata sob os demais poderes legislativos estaduais e municipais.

Apenas dois presidentes na história republicana brasileira obtiveram maioria orgânica no Congresso: Marechal Dutra que elegeu a maioria das cadeiras do parlamento da base de filiados do seu partido PSD, de 1946-1951, e Juscelino Kubitschek 1956-1961 porque conseguiu uma aliança forte entre PSD/PTB.

Pelo menos cinco ex-presidentes na história mais recente deixaram a vida pública durante o mandato por falta de governabilidade no parlamento: Getúlio Vargas que suicidou em 1954, Jânio Quadros que renunciou  em 1961 e João Goulart, que afrontou o congresso e levou um golpe que implantou o semi-parlamentarismo e na sequência a Ditadura Militar, em 1964. Depois o congresso fez o impeachment de Collor em 1992 e Dilma em 2017. Todos esses ex-presidentes no afã de driblar a falta de governabilidade tentaram mobilizar as massas contra o congresso e se deram mal depois. Diferente de Bolsonaro, todos ex-presidentes anteriores formaram o governo com os aliados através do chamado loteamento dos cargos. Essa composição e formação do governo a ciência política chama coalizão.

O Brasil é um dos países do mundo moderno com sistema presidencialista mais forte e centralizado nos aspectos políticos e orçamentários. A Constituição de 1946 e de 1988 atribuiu prerrogativas quase que autocráticas aos presidentes. O executivo no Brasil, por exemplo, possui mais poderes do que os presidentes norte-americanos. No Brasil ele pode vetar partes de uma lei, ao contrário da constituição norte-americana, que exige do presidente a aprovação ou veto à lei como um todo. Esse veto parcial possibilita uma interferência grande no jogo legislativo.

As duas Constituições de 1946/1988 permitiram ao presidente a apresentação de mudanças legislativas chamadas de projetos de iniciativas do executivo, diferentemente dos Estados Unidos, onde esta é uma iniciativa exclusiva do Legislativo.

A constituição cidadã permite ao executivo tomar decisões autocráticas sobre temas que em tese dependeriam da anuência dos legislativos, são as chamadas medidas provisórias, com vigência de até 120 dias. Poucos países no mundo possuem esse dispositivo.

Nosso presidente tem, ainda, uma autonomia maior no processo orçamentário do que o chefe de estado estadunidense. O congresso brasileiro, não pode incluir programas ou projetos que não estejam previstos no orçamento apresentado pelo executivo, nem pode autorizar gastos que excedam os recursos orçamentários.

Em apenas uma situação os presidentes  dos  EUA tem mais poderes que os brasileiros, pois para derrubar um veto lá  é necessário aprovação com 2/3 nas duas casas legislativas. No Brasil é mais simples pois a constituição de 1988 definiu para a derrubada do veto uma votação de maioria simples em sessão conjunta.

Mesmo com tanto poder e facilidades, o presidente ainda tem muitas dificuldades de construir a coalizão com parlamento historicamente. Por vários motivos: o aumento significativo de partidos políticos no sistema multipartidário causou ao longo do tempo uma pulverização das forças políticas no legislativo, dificultando negociações e acordos das votações. A coalizão ao longo da Nova República ficou quase impossível de se estabelecer pelo número excessivos de siglas, que foi de 19 partidos em 1985 para os atuais 37.

De sorte, em 2017, houve mudança na legislação para corrigir essa patologia, mas ainda assim ficará bem distante do regime de bipartidarismo inglês e norte-americano.

Pra agravar um pouco mais esse quadro instável de governabilidade, os dirigentes partidários e líderes  das bancadas nos colégios de lideres em regra não têm ascendência sobre os mandatos dos deputados e senadores, pois a infidelidade partidária é sistêmica. Pra não citar inúmeros casos, lembro o episódio da saída do Bolsonaro do PSL e o da deputada federal Tábata Amaral que votou contra a orientação do PDT em favor da reforma da previdência e que não virou nenhuma reprimenda.

No Brasil os políticos estão mais vinculados aos interesses paroquiais de suas bases eleitorais nos estados do que qualquer orientação partidária.

Esse é o ponto, o orçamento impositivo tem como finalidade ampliar o espaço político do parlamento em relação ao executivo e o interesse dos governadores sobre os recursos das emendas parlamentares e sobre o orçamento da união, conflitos clássicos do pacto federativo.

A aprovação de um orçamento impositivo é o desespero da classe política em busca de recursos, entregas e resultados nas suas bases eleitorais e uma iniciativa para atender governadores nos estados falidos, prefeitos e eleitores num ano eleitoral e com escassez completa de recursos públicos. Como Bolsonaro abriu mão da coalizão na composição do governo com cargos e ministérios, restou o poder da caneta na liberação das emendas de acordo com as votações no congresso.

Apesar de pouco capital pra barganha, Bolsonaro tem conseguido aprovar todos os projetos importantes encaminhados para o parlamento.

Caso o Congresso derrube o veto, o caminho para fortalecimento  do congresso se consolidaria, pois  deputados e senadores não precisarão  se arrastar com pires na mãos em Brasília atrás do executivo para atender suas emendas e demandas.

O congresso tem como papel constitucional ser os freios e contrapesos do executivo no seu formato clássico, mas na prática, as relações patrimonialistas e de corrupção tem corroído essa institucionalidade. Existem outros interesses não anunciados nessa suposta “causa  republicana” com as bases, qual seja a venda de emendas e o uso de estatais para fazer caixa 2 nas campanhas eleitorais, vide mensalão e petrolão.

Curioso é que a sanha de alguns desses parlamentares sobre essas emendas impositivas é justamente a de arrumar dinheiro pra comprar ilegalmente votos nas eleições, além de garantir alguns privilégios de riqueza.

O que me espanta às vezes é ver que muitos desses revoltados com congresso que divulgam essas campanhas difamatórias na rede, muitas vezes são os mesmos que exigem alguma vantagem para votar nas eleições. Essa é a nossa moral invertida, nossa verdade tropical, onde a culpa é sempre dos outros, e o espaço da rua e da casa se confundem – o público e o privado, razão pela qual o grande historiador brasileiro Sérgio Buarque de Holanda chegou a afirmar em 1936 que “a democracia no Brasil é um grande mal-entendido”. Será?

*SUELME EVANGELISTA FERNANDES  é mestre em História e mestre em Antropologia; foi secretário de Meio Ambiente e Desenvolvimento Urbano de Cuiabá; e secretário de Estado de Agricultura Familiar de Mato Grosso. É suplente de deputado estadual por Mato Grosso pelo PPS.

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