Uma parte importante da rotina do brasileiro Wilson Seneme, 49 anos, é ouvir reclamações. Não poderia ser diferente: ele é o presidente da Comissão de Arbitragem da Conmebol.
Nesta sexta-feira, Seneme falou por telefone ao GloboEsporte.com durante 50 minutos, numa entrevista na qual revelou dois pedidos feitos pela Conmebol à IFAB (International Football Association Board), entidade que cuida das regras do jogo: uma para poder mostrar ao vivo durante os jogos o que acontece na cabine do VAR e outra para interromper o cronômetro enquanto os lances estiverem sendo checados.
O dirigente também revelou planos para centralizar a operação do VAR no Paraguai, avaliou erros e acertos, detalhou como será o intercâmbio com a Uefa, explicou os critérios usados para montar as escalas e respondeu, finalmente, por que Andrés Cunha sumiu dos gramados depois de ter apitado a final da Libertadores de 2018 em Madri. A seguir, os principais trechos da entrevista:
Como o senhor avalia a arbitragem da Conmebol?
A avaliação é muito boa. Em agosto, vai completar quatro anos desde que sou presidente, e nesse período fizemos mudanças radicais. Tanto em questões técnicas, de conceitos, aplicações de regras, quanto de capacitação de árbitros. Fomos a primeira confederação continental a usar o VAR, construímos um centro de treinamento onde antes havia um heliponto, com seis cabines de VAR e campo com 15 câmeras, temos um plano de centralizar todo o VAR do continente no Paraguai. Estamos satisfeitos.
Em 2015 a Conmebol ficou exposta como uma entidade marcada por denúncias de corrupção, ex-presidentes presos etc. Como isso afetava a arbitragem? Que ambiente o senhor percebeu quando chegou?
A cultura com a qual eu me deparei era muito mais voltada para o que é conveniente do que para o que é correto.
Como isso se traduzia na prática? Nas escalas?
Não. Dentro do campo, na maneira como o árbitro conduzia o jogo. Era muito mais à sua maneira do que por padronização. Hoje a gente vê um padrão muito mais claro. Antes você não sabia o que um árbitro iria fazer. Hoje consegue identificar perfis, linhas de condução. Temos capacitação, treinamentos, estamos mais próximos dos árbitros.
Como vai ser, na prática, o intercâmbio com a Uefa?
Tenho excelente relação com o presidente da comissão de árbitros da Uefa, Roberto Rossetti. Vamos ter árbitros daqui apitando lá e árbitros de lá aqui. Mas não vai ser qualquer jeito. Não pode um árbitro pegar o avião num dia e no outro dirigir um Flamengo x River Plate. Precisa vir antes, passar por um seminário, entender o futebol de cada região. O europeu tem algo que falta ao sul-americano, que é a disciplina. E eles podem aprender com a diversidade do nosso futebol, onde as surpresas acontecem com frequência. Queremos que essa troca aconteça já em 2020, para todas as competições: Copa América, Libertadores e Sul-Americana, Euro, Liga dos Campeões e Liga Europa.
Vai ter VAR na Copa América?
Sim. Em todos os jogos. E também vamos ter trios do Catar e da Austrália [cujas seleções vão disputar o torneio como convidadas]. Vai ter VAR em todos 90 jogos Também vamos ter VAR nos 90 jogos das Eliminatórias e a partir das oitavas de final da Libertadores e da Sul-Americana.
Quão adaptada a arbitragem sul-americana está ao VAR? De 0 a 10, qual seria a nota?
Só três países usam o VAR com frequência aqui. Brasil, Paraguai e agora entrou a Colômbia em alguns jogos. Na Europa, que tem 55 países, 20 usam o VAR. Eles estão à frente, mas também enfrentam dificuldades. Com a quantidade de jogos que temos, eu acho que daria uma nota 7. No ano passado fizemos 90 jogos com VAR, neste ano vai ser o dobro. A perspectiva é que seja cada vez menos notado, que interfira cada vez menos, que não amarre o jogo.
O senhor mencionou a possibilidade de centralizar toda a operação do VAR no Paraguai. Para quando?
Essa é a ideia. É difícil precisar quando, porque a gente depende da tecnologia da fibra ótica, que na Europa existe há muitos anos. Temos duas dificuldades: uma são as fronteiras, você precisa passar por 10 países, com legislações. E outra são os custos. Então para os países que tenham a capacidade da fibra ótica, vamos centralizar em Assunção. Nos outros, onde não for possível, vamos com a cabine no local do jogo. Com o tempo, assim que possível, vamos centralizar todos.
Como o senhor lida com as reclamações frequentes sobre a arbitragem?
De forma direta, através de avaliações técnicas. Não posso me basear pelo que pensa o torcedor ou quem dá opinião com o coração. Analiso tecnicamente. Se o árbitro errou, será afastado, terá que se adaptar ao processo. Quando não erra, a gente banca. Temos que dar proteção ao árbitro. Se você for na Bolívia, eles dizem que não ganham porque beneficiamos os grandes. Na Argentina, ajudamos o Brasil. E o Brasil diz que sempre é prejudicado. Não posso seguir por esse caminho, nossa condução é técnica. Se houve erro, toma atitude para entender o que aconteceu e trabalha para melhorar. Se eu não avaliar tecnicamente, volto ao passado.
Nesta semana a Conmebol tornou público o vídeo da cabine do VAR do jogo Flamengo x Independiente Del Valle. Isso vai ser mais frequente?
Não foi algo específico para este jogo. Tomamos a decisão de publicar sempre que houver revisão ou checagem pelo VAR. Não para justificar, porque não preciso justificar nada para ninguém. Mas para que as pessoas entendam tanto a regra quanto o funcionamento do VAR. Nós ficamos imaginando o torcedor, que vê uma decisão importante sendo tomada e não sabe por que se decidiu assim. Nós pedimos para a IFAB para colocar essas imagens ao vivo, na transmissão, mas a resposta deles foi negativa. Vamos continuar tentando.
A ideia é mostrar tudo ao vivo?
Por exemplo: houve um pênalti neste jogo no minuto 88 [cometido por Rafinha]. Os replays da transmissão da TV não mostraram o ângulo que o VAR usou para confirmar a marcação do árbitro. Eu tive que esperar ansiosamente por esse vídeo para poder editar, colocar a legenda em português e espanhol, colocar o ângulo reverso que mostra o contato físico da perna do jogador do Flamengo com o pé do jogador do Independiente del Valle, que chegou antes. Eu gostaria de poder mostrar isso na hora. Queremos que as imagens estejam disponíveis a todos, o quanto antes. Facilitaria muito a compreensão.
Por que as decisões do VAR ainda demoram tanto?
O impedimento [no lance de Bruno Henrique em Flamengo x Independiente Del Valle] demorou quatro minutos. Temos que trabalhar isso. Quatro minutos é um exagero, é algo que não podemos tolerar. Nesse caso específico, o assistente de campo vê o impedimento e fala: “delay”. Ou seja, ele não podia levantar a bandeira para não interromper o lance, porque aí não haveria como voltar atrás. Sem a linha virtual seria impossível ter a decisão. A linha virtual confirmou que ele estava certo, que uma parte do corpo, o ombro, estava à frente. A Conmebol sugeriu para a IFAB que, nas revisões e checagens, se pare o tempo. Assim as pessoas entendem que não se está perdendo tempo. Isso ainda está em estudo, não tivemos resposta.
O que achou da sugestão do Arsene Wenger de mudar a regra do impedimento?
Isso já vem da Fifa, de muito tempo, e agora alguém veio a público falar. Eu acho que a discussão é válida. O futebol é dinâmico. Com o VAR, com a velocidade atual do jogo, a regra precisa ser adaptada. Se o futebol está reclamando muito do detalhe de um pé, de um ombro, então a regra tem que ser adaptada. Claro, tem que ter estudo, tem que ser provado.
Que critérios são aplicados para montar a escala de competições de clubes, com árbitros que vêm de ambientes tão diferentes?
A única maneira é conhecer cada um. Não posso escolher porque alguém me falou, alguém me indicou. Esse tempo acabou. Temos plataforma de vídeos, ferramentas técnicas. As pessoas não sabem, mas nós punimos árbitros por erros que eles cometem em seus países. Se ele errou no campeonato local e estava escalado para a Libertadores no meio da semana, a gente tira da escala. São 175 árbitros e assistentes, e eu conheço todos, sei o perfil de cada um. Quatro anos atrás, existia um encontro desses árbitros por ano, durante uma semana. Hoje treinamos os árbitros em janeiro e fevereiro, depois em abril de novo, depois em junho antes da Copa América, depois em julho para as quartas da Libertadores e da Sul-Americana.
No caso de Corinthians x Guaraní do Paraguai. O venezuelano Alexis Herrera, de 30 anos, apitou a ida, e o argentino Nestor Pitana, o melhor árbitro do continente, final de Copa do Mundo, apitou a volta. Não é uma disparidade?
Não existe árbitro melhor. O melhor é o que menos errou na rodada anterior. Experiência, de todos os conceitos importantes, é o último. Eu demorei dois anos, depois de virar árbitro internacional, para estrear na Libertadores. Agora, com 20 dias, eles estreiam. Temos um projeto chamado jovem talento, em que avaliamos quem tem potencial de entrar na Fifa com anos de antecedência. Alexis Herrera estava absolutamente preparado para o jogo, assim como Pitana. Esses fantasmas do passado, em que alguém interfere, em que uma ou outra camisa têm peso, isso não existe.
O que aconteceu com Andrés Cunha, que depois da final da Libertadores em Madri desapareceu?
Apesar de não ter tido nenhum problema que comprometeu o resultado do jogo em si, naquela final, ele não trabalhou de acordo com o que a gente esperava, de acordo com o plano e a visão que a gente tem de arbitragem hoje. Sim, tiramos o Andrés por algum tempo, trabalhamos com ele. E, quando ele voltou, infelizmente teve um problema na Copa Sul-Americana. E a gente percebeu que ele não estava entendendo bem o processo que a gente quer, de interpretação de jogo. E ele é um árbitro de semifinal da Copa do Mundo. Isso pode acontecer com Pitana, com qualquer um. Os árbitros são seres humanos, têm o mesmo grau de dificuldade para lidar com erros e para lidar com o sucesso. Assim como um treinador tem que ter a liberdade para colocar um craque no banco de reservas, a gente faz a mesma coisa. Andrés Cunha volta agora para a Sul-Americana e vai ter a oportunidade de mostrar que é aquele da semifinal da Copa. Numa comparação: avaliamos que Roberto Tobar, na final da Libertadores de 2019, refletiu mais a maneira como instruímos, como interpretamos o jogo. Mas Cunha, como todos os outros que saíram, terão oportunidade de voltar.
Árbitro Andrés Cunha no jogo França x Bélgica durante a Copa do Mundo — Foto: Laurence Griffiths/Getty Images
Quando veremos uma mulher apitando uma final de Libertadores?
Quando essa mulher tiver capacidade, perfil físico e técnico. Para a pré-temporada de janeiro, chamamos algumas mulheres, inclusive a Edna, do Brasil. E elas agora vão atuar como quarto árbitro na Sul-Americana. Nós queremos que mulheres apitem, mas não pode ser uma decisão política. Como qualquer homem, a mulher que for atuar tem que conquistar o espaço. Nossa decisão política foi de abrir as portas para todas. Várias já demonstraram ter potencial. Agora vamos trabalhar para desenvolver. (Globo Esporte)