“— A terra é redonda como uma laranja. Úrsula perdeu a paciência. ‘Se você pretende ficar louco, fique sozinho’, gritou. ‘Não tente incutir nas crianças as suas ideias de cigano.’ José Arcadio Buendía, impassível, não se deixou amedrontar pelo desespero da mulher…” (Cem Anos de Solidão – Gabriel Garcia Márquez). Apesar de publicado em 1967, esse livro surreal, infelizmente, continua sendo uma metáfora da realidade intelectual, sociocomportamental e política do Brasil contemporâneo.

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É assustador, no campo intelectual e científico, como brotam – à moda da, hoje, risível Geração Espontânea – e proliferam ideias estapafúrdias: o terraplanismo ou a negação do aquecimento global, entre muitas outras. Por que o Ministério da Ciência e Tecnologia – aliás, comandado por um astronauta – não se manifesta sobre tais falácias? Da mesma maneira que quase todos os Buendía viviam um obscurantismo ímpar, o atual governo quer ressuscitar a pseudociência com a intenção malévola de suprimir o questionamento cético, necessário e permanente da Ciência. O filósofo Karl Popper, com  a teoria da falseabilidade, ressalta a importância de se estabelecer as fronteiras entre o pensamento científico e o pseudocientífico.

Não é diferente o comportamento da sociedade. Parte significativa da população prega, acintosamente, o racismo, a homofobia e o machismo. Dessa maneira, vê-se proliferar pensamentos e atos neonazistas que tanto diminuem o ser humano. Espelhados em falas e atitudes do “mito”, descendentes de Senhores de Engenhos segregam usando critérios construídos com o único objetivo de perpetuar no poder e o poder (d)essa elite branca e patriarcal.   O aumento nos índices de violência contra negros, homossexuais e mulheres revelam, inequivocamente, a influência que o ocupante do Alvorada, de coturnos e de “arminhas”, tem sobre seus séquitos. Pobre desses “ciganos” Ébanos, ou Himeros, ou Pentesileias.

Impassível (que não se emociona, que não manifesta sentimentos), assim se comporta politicamente a maioria do povo brasileiro, seja por incapacidade seja por conveniência. A impassibilidade de José Arcadio, diferentemente da nacional, não é fruto de desazo ou de comodismo; ele apenas ignora a estupidez de sua esposa Úrsula Iguarán.  Já os incautos da Terra Brasilis, vítimas de sua incipiência política, “banzam” diante do preço da carne, da disparada do dólar, da depreciação do salário mínimo, do aumento dos combustíveis, da derrocada do Sistema Único de Saúde etc. Logo, algozes de si, os previamente condenados a “Cem anos de Solidão” são incapazes de perceber o dano a que se autoimpõem.

Aos poucos, a mítica Macondo de Arcádios e Úrsulas e de Aurelianos e Amarantas, se transforma na intangível e grotesca realidade brasileira de Josés e de Marias “porque as estirpes condenadas a cem anos de solidão não tinham uma segunda oportunidade sobre a terra”.

*SÉRGIO CINTRA é professor de Redação e de Linguagens em Cuiabá.

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