Nas redes sociais, vicejam polêmicas. Todas elas politizadas. Além da estúpida declaração de Bolsonaro sobre Leonardo Di Caprio (que nível…), temos outra pinimba, dessa vez no meio intelectual. Não bastasse a nomeação do novo presidente do Instituto Palmares a criticar o movimento negro brasileiro (que nível…) e do Secretário (Secretino) Nacional de Cultura a criticar a própria cultura brasileira, temos agora a escolha de Elizabeth Bishop como homenageada da FLIP, a festa do livro que se realiza em Paraty. Claro que houve reação: muito embora a escritora tenha sido uma mulher declaradamente lésbica, não é brasileira, não é popular, não trata de questões sociais e, além do mais, é acusada de ser colaboracionista com a ditadura militar. Daí não faltam críticas à feira, à autora, ao elitismo do mercado editorial e um infinito rol de etc.

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“Temos agora a escolha de Elizabeth Bishop como homenageada da FLIP, a festa do livro que se realiza em Paraty. Claro que houve reação: muito embora a escritora tenha sido uma mulher declaradamente lésbica, não é brasileira, não é popular, não trata de questões sociais e, além do mais, é acusada de ser colaboracionista com a ditadura militar”.


Esse sururu me faz lembrar de um artigo de Edward Said ao tratar das múltiplas representações enfeixadas numa única pessoa. O caso do juiz americano que é negro e evangélico foi paradigmático na argumentação de Said. Nomeado para a Suprema Corte Americana, Thurgood Marshall despertou acalorados debates à época: por ser negro, por ser conservador e por ter sido acusado de assédio.

A comunidade branca torceu o nariz; os liberais torceram o pescoço, o movimento feminista torceu o corpo todo de raiva; em compensação, o movimento negro aplaudiu e os religiosos conservadores adoraram. Portanto, ninguém se entendeu nessa nova Babel de entendidos em tudo e estudados em nada.

Parece-me que a questão relacionada ao mérito/talento é, no contemporâneo, cotejada à luz da ética. Trocando em miúdos: a análise biográfica passou a ser concomitante à crítica da obra, no caso de Bishop. Perde-se a mão, na maioria das vezes, menosprezando-se o talento da homenageada.

Nesse aspecto, revela-se a terrível mediocridade invejosa que grassa no meio intelectual. Eis aí uma porção de gente rasteira que não ganhou sequer um prêmio na escola secundária em que estudou e se arroga no direito de apontar o dedo contra um Pulitzer. Até aí, o recalque é mais do que esperado porque sempre fez parte da personalidade dos críticos, sobretudo quando eles mesmos se aventuram na arte. Na maioria das vezes, o crítico quer 5 minutos de fama ao montar em cima de um grande artista. Esses passarão e os artistas passarinho, como diria Quintana.

Todavia, a crítica à escolha do Bishop ganha relevância à luz da questão essencialmente estética. Talento a escritora homenageada tem de sobra para calar os críticos de plantão. Mas o que me parece pertinente não é o mesquinho ataque pessoal (motivado por posicionamentos partidário), mas o critério de escolha.

A visibilidade da FLIP é nacional e internacional. Serve de pauta para o meio intelectual brasileiro, no mínimo. Não há outros autores que poderiam nos levar para discussões mais interessantes? Raquel de Queiróz e seu universo agreste? Cecília Meirelles e sua estética inovadora? Carolina de Jesus e seu mundo de marginalização? Zélia Gattai e o anarquismo imigrante? Selecionar é julgar. Selecionar é se posicionar. E o critério político (no melhor sentido) evidencia mais quem seleciona do que o selecionado.

“(A FLIP) Não quis olhar para o compromisso ético que o mundo contemporâneo demanda dos intelectuais”
Concordo integralmente com os críticos que apontam na vaidosa e elitista pretensão da FLIP que enfia a cabeça no buraco autorreferente como fazem os avestruzes. Não quis olhar para o compromisso ético que o mundo contemporâneo demanda dos intelectuais e, no pior momento para o fomento cultural da redemocratização pra cá, optou por homenagear a obra de uma escritora eticamente questionável.

É triste não só o critério dos organizadores da festa literária, mas também o dos críticos, biógrafos moralistas e recalcados. O artista não está adstrito a uma pauta, porque mais que da obra toda eventualmente exsurja uma ótica engajada.

Há artistas, aliás, que foram grandes ao simplesmente negar-se ao engajamento político, optando por não tratar dos horrores humanos nos momentos mais tenebrosos da nossa história contemporânea. Uma vaia para todas essas igrejinhas. Todas, sem exceção. Ninguém vai tungar meu dízimo.

*EDUARDO MAHON é advogado, escritor e escreve exclusivamente neste espaço todo sábado.

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