Eduardo Agualusa contou esta história: “as crianças veem o evidente. Costumo contar uma história da minha filha, de quando era bem pequenina. Uma senhora fez-lhe uma pergunta muito idiota. “De que raça és tu?” Ela não entendeu. Não tinha sequer o conceito de raça. A senhora tentou corrigir a pergunta, errando ainda mais. “De que cor és tu?” A minha filha olhou muito espantada. “Mas tu não vês que sou uma menina? As meninas são pessoas. As pessoas têm cores diferentes. A minha língua é vermelha, os meus dentes são brancos, o meu cabelo é castanho.” Temos todas as cores. É preciso uma criança de quatro anos para dizer o óbvio”.

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Somos tomados de muitas cores, de muitos jeitos, de muitos senti-mentos. Somos é muito misturados, mesmo com a nossa vocação de classificar, categorizar, relacionar, catalogar, dividir, rotular e separar.

A mim parece não haver uma separação estanque, isolada, barrada entre pigmentações, jeitos e sentimentos. Não há pastos demarcados na seara humana.

Meus olhos coloridos me lembram que somos brotados de pessoinhas, habitados por trejeitos, movimentos variados, sentimentos desalinhados, baralhados… Não há em mim e em você, leitor atento, pureza; não há apenas candura e castidade. Não somos transparentes, não alterados pela presença de elementos estranhos. E como disse a menina de quatro anos: não temos uma só cor!!!

Só existe uma raça: a humana. Somos todos pessoas, gentes!! Nós permanecemos feitos da mesma matéria. A divisão dos seres humanos em raças resulta, como já foi dito por todos, de um processo de conteúdo político-social, originado da intolerância dos homens.

Se nos detivermos em nossa imagem é fácil ver, o preconceito é subjetivo, interior; a discriminação é a exteriorização desse medo, dessa culpa, dessa angustia por meio da prática de atos vazios.

A consciência negra, à primeira vista, em um dia para pensar nisso, é uma expressão que designa a percepção histórica e cultural que os negros têm de si e em nossa sociedade. Entretanto, em cada cor diferente que venha nos misturar, devemos recordar – do latim re-cordis, tornar a passar pelo coração – e admitir a percepção de que eu, você, como todo brasileiro, somos brotados de pessoas: pretos, amarelos, pardos, indígenas, brancos … muita gente.

Em 1976, o IBGE fez uma pesquisa no país, sem categorias predefinidas, foram coletadas 136 cores diferentes, autodeclaradas pela população.

Como está escrito no Povo Brasileiro “Não somos e ninguém nos toma como extensões de branquitudes, dessas que se acham a forma mais normal de ser humano. Nós não. Temos outras pautas e outros modos tomados de mais gentes. O que, é bom lembrar, não nos faz mais pobres, porém mais ricos de humanidades, quer dizer, mais humanos. Essa nossa singularidade bizarra esteve mil vezes ameaçada, mas afortunadamente conseguiu consolidar-se. Inclusive quando a Europa derramou multidões de imigrantes que acolhemos e até o grande número de orientais adventícios que se instalaram. Todos eles, ou quase todos, foram assimilados e abrasileirados.”

As contribuições de todas as culturas para a construção da personalidade brasileira são inegáveis. Elas estão em toda parte; em todos nós. Assimilemos tudo isso.

Não somos apenas o que pensamos ser. “Dizemos que somos tolerantes com as diferenças. Mas ser-se tolerante é ainda insuficiente. É preciso aceitar que a maior parte das diferenças foi inventada e que o Outro (o outro sexo, a outra raça, a outra etnia) existe sempre dentro de nós”, escreveu Mia couto, e é o que encerra esses dizeres nesse pequeno dia de consciência que tive.

*EMANUEL FILARTIGA ESCALANTE RIBEIRO é promotor de Justiça em Mato Grosso.

CONTATO: emanuel.ribeiro@mpmt.mp.br