Poucas pessoas saberiam identificar quem é Astolfo Barros Pinto, mas com certeza reconheceriam seu nome artístico: Rogéria. ”É incrível como ela conseguia ter essas duas identidades dentro de um mesmo ser e responder pelas duas o tempo todo”, conta Pedro Gui, diretor do documentário Rogéria – Senhor Astolfo Barroso Pinto, que estreou nesta semana nos cinemas brasileiros.

Astolfo Barroso Pinto veio ao mundo na cidade de Cantagalo (RJ), em 25 de maio de 1943, mas Rogéria, seu alter-ego artístico, nasceu em um concurso de fantasias de carnaval em 1964, quando Astolfo se apresentou como Rogério, mas o público o ovacionou gritando: “Rogéria! Rogéria!”. No entanto, o que surgia ali era apenas o nome da persona dos palcos, porque Astolfo/Rogéria sempre foi artista.

Atriz, cantora, maquiadora, uma performer completa que conseguiu inacreditável feito de, em meio aos anos de chumbo da ditadura militar, tornar-se, como ela gostava de dizer, a “travesti da família brasileira”.

″É como a [atriz] Betty Faria diz no filme, a Rogéria colocou a travesti no lugar de artista de respeito. Esse rótulo de ‘travesti da família brasileira’ é muito forte. Ela quebrou tantos padrões e foi tão empática fazendo isso que conquistava a todos”, diz Gui. “Toda vez que alguém da comunidade LGBT é tratada com respeito, com amor, com carinho, isso é reflexo de tudo pelo que a Rogéria lutou”, opina.

Esse jeito de Rogéria despojado e aberto a todos foi, aliás, um fator importante no nascimento do documentário. O cineasta conta que conheceu Rogéria em um restaurante no Rio de Janeiro. Ao começar a conversar com ela e ouvir suas histórias, achou que lá havia muito material para um filme. “Disse a ela que queria contar aquelas histórias em um filme. Ela nem me conhecia. Estávamos nos conhecendo naquele momento. E ela simplesmente respondeu: ‘tudo bem’.”

A ideia inicial era que o filme fosse um road movie documental, uma viagem com Rogéria por locais que marcaram sua vida e carreira. Mas os planos de Gui tiveram de ser mudados quando o que parecia ser uma simples infecção urinária se agravou, e Rogéria acabou morrendo, em setembro de 2017.

“Quando eu recebi a notícia da morte dela, eu não acreditei. Para mim, ela não ia morrer de jeito nenhum. No dia seguinte fomos à Cantagalo enterrar ela. Eu, o empresário dela, o Alexandre Haddad e os dois irmãos dela. Eu cheguei até a filmar um pouco disso, mas resolvi não colocar isso no filme porque eu achei que Rogéria não ia gostar de se ver de forma alguma sem vida. Tentei simbolizar a morte dela no filme de uma forma mais poética.”

O jeito foi utilizar uma longa entrevista que Rogéria deu para o cineasta como espinha dorsal do documentário, que intercala depoimentos dela própria e de personalidades que conviveram ou trabalharam com ela, e encenações sobre sua infância e importantes passagens de sua incrível trajetória.

Bibi Ferreira, Betty Faria, Jô Soares, Nany People, Rita Cadilac, Aguinaldo Silva, Aderbal Freire Filho e Jane Di Castro, entre outros grandes nomes, contam histórias emocionantes e deliciosamente divertidas da vida e carreira de Rogéria, que, como Gui explica, “quebrou paradigmas, preconceitos, que lutou pelo povo brasileiro ao mostrar que ninguém é inferior a ninguém”.

Prêmio de Director Recognition no Los Angeles Brazilian Film Festival, em 2018, e vencedor do DIGO (Festival Internacional da Diversidade Sexual de Goiânia), Rogéria – Senhor Astolfo Barroso Pinto faz rir e chorar e traduz com rara precisão o espírito de Rogéria. “Toda vez que nós nos olhamos um para o outro com paixão e amor, a Rogéria está presente. Sou extremamente grato ao que a Rogéria deixou como legado”, conclui o cineasta.