A contemporaneidade vive um paradoxo: o comportamento líquido, consumista e individualizado versus o comportamento sólido, solidário e coletivo. Coube ao pensador polonês Zygmunt Bauman (1925 – 2017) explicitar essa contradição, inclusive naquilo que, aos olhos de muitos, move o mundo: o amor.
Para Bauman, os relacionamentos amorosos contemporâneos são essencialmente conflitantes à medida que o ser humano sem vínculos deseja conectar-se, ou seja, criar laços, ainda que virtuais.
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Provavelmente, o que engendra esse antagonismo sejam as mudanças pelas quais passa a sociedade: se, por um lado, o ser humano se sente constantemente desligado dos demais; por outro, anseia por estabelecer conexões com o próximo, mesmo que fugazes.
Daí a origem do conflito, a ambivalência perpetrada por sentimentos, a um só tempo, perenes e possessivos; e efêmeros e libertadores. Existe um desejo de permanecer (estabilidade) e de dissipar-se (instabilidade) em um momento de transição entre o pensar sólido e o pensar liquido.
O amor sólido parece ser coisa do século passado, mas como toda construção social, ele teima em resistir com seus preceitos e formas. Chico Buarque (no prelo com o “Essa Gente”), vencedor – duplamente, segundo o próprio – do prêmio Camões 2019, na época em que não existiam os celulares, nem aplicativos, tampouco internet, compôs “Mil perdões” (1984): Te perdoo/ Por fazeres mil perguntas/ Que em vidas que andam juntas/ Ninguém faz/ (…)/ Por me amares demais/Te perdoo por ligares/ Pra todos os lugares/ De onde eu vim (…)/ Quando anseio pelo instante de sair/ E rodar exuberante/ E me perder de ti…” expressou poeticamente o sentimento amoroso construído durante o século XX.
Marcado não apenas pelo sentimento de posse, mas também pelo ciúme. Isso revela, antes de tudo, que aqueles relacionamentos eram feitos para durar, para serem sólidos, exclusivos.
A deterioração desse tipo de relação deu-se (ou dá-se) com o advento da tecnologia e com supremacia da sociedade de consumo, que liquefez o Amor Ágape (duradouro), substituindo-o pelo Eros (momentâneo).
Rita Lee e Roberto de Carvalho, inspirados por uma crônica do Arnaldo Jabor, compuseram “Amor e sexo” (2003): “Amor é um/ Sexo é dois/ Sexo antes/ Amor depois/ Sexo vem dos outros/ E vai embora/ Amor vem de nós/ E demora (…) Amor é latifúndio/ Sexo é invasão/ Amor é divino/ Sexo é animal/ Amor é bossa nova/ Sexo é carnaval”.
Os roqueiros brasileiros e polêmico escriba parecem ter captado a essência do conflito que perpassa os relacionamentos contemporâneos. De maneira antitética, mas sem ser paradoxal, revelam a difícil coexistência dessas duas formas de amor: o bíblico (1 Coríntios 13) e a paixão (Eros).
Decididamente, não há equilíbrio entre eles, sempre um deles se sobressai; então, resta-nos a reflexão baumaniana: “No líquido cenário da vida moderna, os relacionamentos talvez sejam os representantes mais comuns, agudos, perturbadores e profundamente sentidos da ambivalência.”