O Supremo Tribunal Federal promoveu, na via interpretativa, significativa mudança de paradigma quanto à prerrogativa de foro por função para se compreender que este se aplica apenas aos crimes cometidos durante o exercício do cargo e relacionados às funções desempenhadas[1].
A ideia inicial, conforme se observou nos debates ocorridos durante o julgamento, era adotar uma interpretação de restrição quanto ao foro por prerrogativa para Congressistas. Concluído o julgamento, porém, a ratio decidendi daquele caso específico passou a ser adotado indistintamente para todos que ocupam cargo público que lhes atribua foro por prerrogativa de função, tanto no próprio Supremo Tribunal Federal, como no Superior Tribunal de Justiça, nos Tribunais Regionais Federais e Tribunais de Justiça dos Estados.
Diante disso, surgiram diversas situações como, por exemplo, a restrição de foro aos membros do Ministério Público e do Poder Judiciário. Indagou-se, no caso específico daqueles que atuam no sistema de justiça, se seria possível compatibilizar as atribuições funcionais e seu livre exercício com a restrição da prerrogativa de foro, diante de possíveis incongruências, como, v.g., um Desembargador ser processado e julgado por um magistrado de primeira instância que pudesse no futuro ter interesse em decisões de cunho administrativo ou até judicial (crime no exercício da função e a ela relacionada) a ser proferida pelo réu.
No caso específico dos membros da Magistratura e do Ministério Público – mesmo que o crime seja eventualmente praticado antes da posse ou tenha relação com a vida privada – uma ação penal terá reflexo imediato no exercício de suas funções podendo afetar a independência e a imparcialidade necessárias ao cargo, circunstância que sempre exigirá a garantia da prerrogativa de foro para assegurar a integridade do próprio sistema de justiça, sob pena de se instaurar uma constante presunção de parcialidade que não colabora em nada para a promoção da pacificação social almejada.
Outro detalhe que recomenda a manutenção do foro da prerrogativa é que os membros do Ministério Público e do Poder Judiciário ocupam cargos vitalícios, os quais geralmente são de longa duração (salvo especificidades da Justiça Eleitoral), não se verificando em relação a eles o famigerado “efeito elevador” que levou o Supremo Tribunal Federal a restringir o foro de prerrogativa dos parlamentares federais.
Mas os problemas da restrição do foro de prerrogativa não se limitam a situação específica daqueles que integram o sistema de justiça. Outra situação extremamente preocupante consistente na possível burla indireta da competência constitucional dos Tribunais, em especial do Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, com potencial de gerar nulidades, insegurança jurídica e a paralização (ainda que temporária) de investigações criminais[2], além do manejo de inúmeros habeas corpus e reclamações constitucionais, como já vem ocorrendo[3].
Várias questões podem surgir no caso concreto, a exigir cautela da autoridade que preside a investigação para que não se cometam nulidades. Podem surgir questionamentos quanto ao tempo do fato e sua relação com o cargo ocupado na atualidade pelo investigado, uma vez que nem sempre tais elementos se apresentam de forma cristalina no início das investigações.
Além disso, há a problemática do possível encontro fortuito de provas. A jurisprudência reconhece a teoria da serendipidade e a validade das provas fortuitamente encontradas. Contudo, quando se determina uma medida cautelar de produção de provas (interceptação telefônica, busca e apreensão, quebra de sigilo de dados ou bancários, etc.) tendo como alvo alguém com prerrogativa de foro não se pode ignorar, tratando-a como consequência acidental, a possibilidade de descobertas de novos fatos.
Aliás, é absolutamente comum que durante interceptações telefônicas ou medidas cautelares de busca e apreensão surjam informações sobre outros fatos penalmente relevantes não relacionados à situação inicialmente investigada, implicando, por consequência, o próprio alvo da medida ou terceiras pessoas.
E nestas situações o Supremo Tribunal Federal decidiu que a prova decorrente de encontro fortuito somente é válida se a sua produção foi determinada por magistrado competente[4], além de não ter admitido a seleção posterior dos elementos de informação a fim de separar àqueles que, eventualmente, poderiam ser obtidos apenas com autorização da Corte Suprema[5].
Ainda que se reconheça a competência de juízes de primeira instância para processar e julgar detentores de prerrogativa de foro por fatos anteriores ao mandato e sem relação com ele, na hipótese de se deferir medidas cautelares de produção de provas tendo-os como alvo, há sempre o risco de se deparar com outras provas e fatos que extrapolem o objeto da investigação inicial causando a nulidade de toda a investigação criminal ante a violação indireta da competência constitucional do Tribunal correspondente, seja o Supremo Tribunal Federal, o Superior Tribunal de Justiça ou os demais Tribunais, no âmbito da competência de cada um deles[6].
Estas constatações revelam, em primeiro lugar, que a restrição da prerrogativa de foro é tema que deveria ter sido reservado ao Congresso Nacional, pela via legislativa própria, com o estabelecimento de regras claras e objetivas que permitissem a sua compatibilização com toda a estrutura jurídica existente, evitando-se a insegurança jurídica que se instalou.
Outra conclusão que se extrai é que a preservação da integridade do texto constitucional, v. g., em especial das prerrogativas processuais dos parlamentares federais, contidos no artigo 53 da Constituição Federal, não permite que um Congressista seja alvo de medidas cautelares probatórias que possam, eventualmente, desbordar em falso encontro fortuito de provas, acerca de fatos que extrapolem a sua competência.
Dito de outro modo, embora um magistrado de primeira instância, possa processar e julgar um parlamentar federal por fatos anteriores ao mandato exercido, não se reconhece a competência dele para ordenar providências cautelares penais que estejam diretamente relacionadas a um membro do Congresso Nacional, porquanto se criaria uma hipótese de possível burla indireta da competência do Supremo Tribunal Federal (art. 102, inc. I, alínea b, da CF).
Neste contexto, se revela como solução razoável de ser adotada ao menos até que o Congresso Nacional legisle sobre o tema, o estabelecimento para os detentores de prerrogativa de foro de um juízo de garantia, a ser exercido exatamente pelo Tribunal a quem ele estiver diretamente vinculado, ao qual competiria a supervisão da investigação criminal e análise de eventuais medidas cautelares de natureza probatória, extirpando qualquer possibilidade de usurpação indireta de competência e de nulidade dos elementos produzidos, por vício de competência.
Tal solução coincide com o fato de que, via de regra, as medidas cautelares de produção de prova são todas adotadas – até mesmo pela questão da utilidade e efetividade – durante a investigação criminal.
Assim, concluída a investigação criminal, praticamente se elimina a possibilidade de usurpação indireta da competência dos Tribunais, seja porque geralmente não haverá mais utilidade prática na produção de provas antecipadas e, por consequência, no surgimento de fatos fortuitos. De igual modo, os fatos estarão delimitados no tempo e no contexto, permitindo uma melhor definição sobre a existência [ou não] dos requisitos estabelecidos pelo Supremo Tribunal Federal na QO/AP 937-RJ para a delimitação de competência por prerrogativa de foro.
Logo, se não promovido o arquivamento da investigação criminal pelo Ministério Público, após oferecida a denúncia, o Tribunal correspondente teria todos os elementos para, com segurança jurídica, confirmar a sua competência ou declinar em prol de outro órgão jurisdicional de instância inferior, eliminando-se possíveis nulidades que possivelmente ocorrerão na sistemática atualmente adotada.
*GIOVANE SANTIN é advogado criminalista. Mestre em Ciências Criminais (PUC-RS) e doutorando em Ciências Sociais (Unisinos). Atua como professor de Direito Penal e Processo Penal na UFMT.
REFERÊNCIAS
[1] Questão de Ordem na Ação Penal n. 937-RJ. Relator Min. Roberto Barroso. Tribunal Pleno. Julgado em 03/05/2018. Publicado em 11/12/2018.
[2] É o caso do IP 4789-RJ, em que se apura um homicídio qualificado e ficou paralisado por vários dias até que o Supremo Tribunal Federal autorizou o prosseguimento das investigações em face de pessoa detentora de prerrogativa de foro.
[3] Cite-se, exemplificativamente, as Reclamações n. 32989-RJ e n. 36571-MT, nas quais o Supremo Tribunal Federal, por razões diversas, determinou a suspensão de investigações criminais.
[4] Inq 3732, Relator(a): Min. CÁRMEN LÚCIA, Segunda Turma, julgado em 08/03/2016.
[5] Rcl 24473, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Segunda Turma, julgado em 26/06/2018.
[6] “Não seria razoável ao juiz de 1º grau, que determinou a colheita de provas na residência oficial e no próprio local de trabalho de uma parlamentar federal, ainda que sob a justificativa de investigar terceira pessoa, excluir a possibilidade de violação à intimidade e vida privada da congressista no curso de investigação criminal conduzida por autoridade a qual falace tal competência, o que subverteria, por vias oblíquas, o desenho normativo idealizado pela Carta Política de 1988 para o processo e julgamento, pela prática de crimes comuns, dos detentores de mandatos eletivos federais. Nesse cenário, descerra-se a real probabilidade de que os efeitos da decisão judicial reclamada – embora nela não se faça alusão explícita à participação de parlamentares – possam redundar na investigação, de maneira sub-reptícia, de pessoas que, em decorrência da função pública que desempenham na estrutura do nosso Estado Democrático de Direito, encontram-se sujeitas, com exclusividade, à jurisdição do Supremo Tribunal Federal, nos termos do art. 53, §1º, c/c o art. 102, I, “b”, ambos da CF/1988” (Rcl 26745, Relator Min. ALEXANDRE DE MORAES, julgado em 31/03/2017).