Aos 65 anos, Jorge Jesus vive a sua segunda experiência internacional da carreira. Após comandar o Al Hilal, da Arábia Saudita, o técnico português aceitou o desafio de comandar o Flamengo e tentar tirar o clube da fila por títulos de expressão. Em pouco mais de dois meses, conseguiu uma classificação para uma semifinal de Libertadores que não acontecia há 35 anos e assumiu a liderança do Campeonato Brasileiro com um time que vem comendo a bola.

Mas em qual patamar estaria esse “carrossel português” do Flamengo no futebol europeu? Conseguiria o atual time rubro-negro ser protagonista? Ninguém melhor do que um técnico da Europa para dizer. Jesus recebeu a reportagem do Esporte Espetacular na semana passada, no Ninho do Urubu, e não fugiu da pergunta. Comparou com o nível de seu país e com a Premier League, da Inglaterra, considerado o melhor campeonato do mundo:

– Em Portugal, seguramente (seria protagonista). Disputava o título a brincar, à frente de todos, disparado. Nos outros países, como Inglaterra, não seria da mesma maneira. Mas disputaria entre os seis primeiros lugares. Com os 11 que o Flamengo joga, é muito forte.

Nesta segunda parte da entrevista (a terceira e última vai ao ar durante a semana no Globo Esporte), Jesus falou de tudo um pouco. Desde o “apelido” de Mister ao cardápio favorito. O treinador rasgou elogios ao elenco rubro-negro; comentou como está sendo sua experiência no Brasil; explicou o seu estilo intenso à beira do campo; apontou as referências de sua carreira; opinou sobre o melhor jogador do mundo e da história… E até alfinetou o Neymar.

Confira as respostas na íntegra:

EXPERIÊNCIA NO BRASIL

– Uma experiência mais fácil por causa da língua. A linguagem do futebol é apaixonante, e isso torna mais fácil dentro daquilo que é a minha ideia de trabalho no futebol. (…) Temos uma química grande no departamento de futebol com os jogadores. É um grupo fácil de trabalhar. Estou encantado com eles.

JOGADORES BRASILEIROS X EUROPEUS

– A diferença é se o jogador é mais ou menos profissional. É mais difícil trabalhar na Europa… Este elenco do Flamengo me surpreendeu muito no que é ter profissionalismo, no que é ser apaixonado. Eles têm prazer de trabalhar. Na Europa é mais complicado, eles querem ter direitos, querem se sobrepor à liderança do treinador. Aqui no Brasil eles têm mais respeito, e isso torna mais fácil.

PRECONCEITO CONTRA BRASILEIROS

– Na Europa existe e ideia de que o jogador brasileiro não gosta de trabalhar. Vou dizer um ditado em Portugal: se você tem na sua equipe mais de quatro jogadores brasileiros, está fazendo um time de samba. Essa é a ideia sobre o jogador brasileiro. Eu vim ver, e minha observação é totalmente ao contrário. São totalmente profissionais e têm consciência do que fazem.

MELHOR GRUPO DE TRABALHO?

– Não tenho dúvida que esse é o melhor. Não se negam a nada. Eu não dou muitas folgas, poderiam vir dizer: “Mister, dá uma folguinha”. Na Europa, em todos os jogos querem “folguinhas”. Esses estão sempre interessados em trabalhar. A exigência que coloco no treino, eles absorvem com muita facilidade. Estou satisfeitíssimo com eles. Futebol é isso, paixão. Se não tiverem prazer no que fazem, vão ter um grande problema, o da pressão. E eles estão em um clube que é pressão todos os dias. Se não tiverem paixão, a pressão vai bloquear a qualidade do jogo deles.

Jesus cumprimenta Gabigol: relação boa com o elenco — Foto: Alexandre Loureiro/BP Filmes

Jesus cumprimenta Gabigol: relação boa com o elenco — Foto: Alexandre Loureiro/BP Filmes

CARTILHA DA DISCIPLINA

– Os jogadores receberam bem. É um elenco educado, para eles foi tudo normal. Eu também não cheguei e fui impondo. Nós fizemos em acordo com o time. Como podes querer um jogador disciplinado em campo se ele não tem disciplina fora? Posso gritar o que eu quiser, mas ele não vai acatar as minhas ordens.

DIFERENÇAS NO IDIOMA

– Há vários termos que são diferentes. Não dizemos torcida, dizemos adeptos. Nós dizemos equipe, vocês, time. Nós falamos malta, e vocês dizem galera. Mas é fácil de identificar. Os jogadores pedem para eu falar “malta”. Aí digo: “malta, vamos lá”. Eles gostam. Estão sempre na brincadeira comigo sobre algumas coisas que eu digo, mas não posso dizer agora (risos).

TORCIDA DO FLAMENGO

– Quando jogamos no Rio, antes de começar o jogo já estamos com 1 a 0. A torcida do Flamengo é vibrante, apaixonada. Há também clubes na Europa que também colocam 65 mil pessoas no estádio. Mas não são vibrantes. Parece que estão em uma ópera. Aqui é completamente diferente.

TRATAMENTO COMO “MISTER”

– Na Europa não somos tratados por “professor”. É mister. Professor eu não gosto. Professor é de filosofia, matemática… eu sou treinador. Não me qualifico.

PARCELA PARA O ENCAIXE DO TIME

– A minha parcela é alguma, claro. Passo as minhas ideias, mas é especialmente dos jogadores, que têm qualidade e talento. Tento explorar ao máximo essas qualidades. Tenho tentado explicar que o jogo não é só isso. Faço o trabalho durante a semana nos treinos, e pouco a pouco temos visto acontecer nos jogos.

ESTILO À BEIRA DO CAMPO

– Eu vivo o jogo. Vejo o jogo e percebo com antecedência o que vai acontecer. Jogo muito, sem jogar. Procuro dar as dicas, orientar, posicionar… Em alguns momentos os times se desorganizam, e o futebol não é como no basquete, em que o técnico pode pedir um tempo. É preciso ajudar os jogadores. Se não ajuda, é melhor ficar em casa e ver pela TV.

Técnico português costuma "jogar" junto com o time nos jogos — Foto: André Durão

Técnico português costuma “jogar” junto com o time nos jogos — Foto: André Durão

FORMA DE TRABALHO

– Eu sou autodidata. Não leio livros sobre futebol. Todo o meu trabalho de campo fui em quem criei, fui eu quem pensei. Acho que um treinador é isso. Claro que há muitas ferramentas que ajudam o trabalho do treinador, é preciso ter uma estrutura para proporcionar sua valorização. Não sei explicar muito mais… Minhas exigências vão de acordo com o que eu acredito. Durante os anos, os caminhos que tracei tive êxito por onde passei.

– Na Arábia Saudita, fui embora com o time seis pontos de vantagem na liderança. Saí e não ganharam nada. Fui embora porque quis. Acredito muito naquilo que fazemos e tentamos passar aos jogadores as nossas ideias. Tem que ser exigente em qualquer profissão. Tem que conhecer. Se não conheces, como vai exigir? Há uma diferença grande entre ensinar e saber ensinar. Ensinar, todos sabem. O saber ensinar é que faz diferença.

E NA FOLGA?

– Não desligo (do futebol), minha família já sabe. Aliás, estou sozinho, minha família está em Portugal, mas quando estou lá é igual. Esta é minha vida, minha profissão, minha paixão. Não faço nada que não seja demais. Tem que procurar estar atento, e mesmo estando atento tem muitas coisas que não se vê.

– Portanto, não tem outra maneira de olhar para a minha profissão que não seja assim. Há dias que entro às 8h e saio às 20h, já aconteceu várias vezes aqui. É como me sinto bem, como trabalho, tenho prazer no que estou a fazer. Quando o prazer está acima de qualquer coisa, você é um apaixonado pelo que faz.

PASSATEMPO FORA DO FUTEBOL

– Neste momento, aqui no Brasil, não há. Mas em Portugal gosto muito de almoçar e jantar com os meus amigos. É o que eu sinto falta. Portugal é pequenininho, aqui são 220 milhões, lá somos 10 milhões. Lá minha casa é em cima do mar, aqui também, a língua é a mesma, estou em um país que adoro futebol… Até agora está tudo a dar certo.

CARDÁPIO PREFERIDO

– Só como peixe, não como carne. Então tenho que andar sempre em restaurante que tenham frutos do mar, como vocês dizem.

Jesus na capa da revista portuguesa "Tabu", na época de jogador do Belenenses — Foto: Reprodução

Jesus na capa da revista portuguesa “Tabu”, na época de jogador do Belenenses — Foto: Reprodução

JESUS NA CAPA DE REVISTA

– Eu aqui tinha 20 anos, 21. Sempre usei o cabelo muito grande. Lembro deste clube (Belenenses), joguei lá três anos, treinei-o em dois. É um clube com grande história em Portugal. Foi aqui que começou a minha ascensão como treinador.

JESUS NA ÉPOCA DE JOGADOR

– Em Portugal já disse a alguns jogadores que trabalharam comigo: “Quando joguei, se eu tivesse um treinador que me ensinasse o que eu ensino a você, Jesus era 10 vezes mais jogador”. Eu quando jogava, nada disso me ensinaram. Eu não era um jogador muito forte psicologicamente, isso era uma característica que agora, como treinador, eu percebo que era muito importante saber naquela altura.

– Além de outros fatores no meu tempo não eram muito importantes. Antigamente não sabiam o que era importante nos momentos do jogo, falava-se mais que o jogador tinha que ter uma boa condição física. Corria, corria, corria, mas bola nada. E quando cheguei a ser treinador fiz tudo ao contrário e comecei a criar coisas que hoje o futebol no mundo faz.

REFERÊNCIAS NA CARREIRA

– Johan Cruyff. Não só como jogador, mas me apaixonei pelo futebol holandês na época de (Stefan) Kovács, o treinador, e Rinus Michels, seu assistente. E o Ajax e depois a seleção da Holanda devoravam todas as equipes com um futebol que surpreendeu a Europa. Depois o Cruyff vira treinador, vai para o Barcelona e inclui, até hoje, as ideias dele em toda a base, como vocês dizem.

– A forma como eles treinam, como desenvolvem os jogadores. E eu me identificando com aquela forma, querendo saber um pouco como é que se fazia, fiquei um mês e tal com ele lá em um estágio. Tenho algumas fotografias com ele, quando estava no Benfica ele foi me visitar…

MELHOR JOGADOR DO MUNDO?

– Para mim (Cristiano) Ronaldo é o melhor, não tenho a menor dúvida. Ele é o símbolo do que é o futebol, que é o gol. Ele não faz 10, 20, faz 30, 40, 50 gols. Messi é diferente, mais artista. E o Ronaldo não precisa de tanta nota artística como Messi tem para fazer o que o Messi faz. Neste momento são os dois maiores. Penso que o Ronaldo devia ser um exemplo para todos os jogadores. Todos tinham que olhar para o Ronaldo, não pela qualidade, mas por aquilo que ele é como profissional, como ele chegou lá. Isso deve ser uma lição para todas as crianças que querem ser jogador.

MAIOR JOGADOR DA HISTÓRIA?

– Eu nunca vi jogar Pelé, Puskás, Garrincha. Vi jogar Maradona, os últimos anos, Messi e (Cristiano) Ronaldo, que são os dois extraterrestres do mundo. Com estilos diferentes, mas fora do que é o normal. Está para chegar o fim deles, como é óbvio, todos chegam ao fim. Não sei (quem foi o melhor). Maradona foi super. Meu ídolo foi Cruyff. Messi é super. Ronaldinho Gaúcho também, como o Neymar, podiam chegar a esse patamar se tivessem a formação e a cabeça do Ronaldo.

Para Jesus, Neymar precisa mudar a cabeça para ser o melhor — Foto: Michael Reaves/Getty Images

Para Jesus, Neymar precisa mudar a cabeça para ser o melhor — Foto: Michael Reaves/Getty Images

NEYMAR NÃO CHEGARÁ LÁ?

– Ou ele vai mudar ou não vai chegar. Se o chip da cabeça dele não mudar, ele não vai chegar. Porque é o que eu disse, entre o prazer e a paixão do jogo, e o prazer de ter outras coisas fora do jogo, o que é mais importante? Se esta for mais forte, você nunca vai ser o melhor. É isso que o Ronaldo tem, é o prazer, a paixão que é muito mais forte do que os outros prazeres fora do jogo. Ele também faz, mas sabe fazer. É a diferença.

PRETENDE FICAR MAIS TEMPO NO FLA?

– O treinador nunca sabe quanto tempo vai estar em um clube. É verdade que eu tive seis anos no Benfica, depois no Sporting e tive três anos. Nunca pensei em sair de Portugal. Tive grandes clubes da Europa, entre os quais o Milan, e eu não quis sair. Também, era um treinador que ganhava mais em Portugal do que nos países deles (risos). Nunca pensei em sair, mas fui. Na Arábia Saudita também foi uma experiência muito bonita, me fez crescer como treinador. Na forma como hoje eu encaro os jogos, tem que respeitar o próximo, aprendi a respeitar os adversários.

QUE LEGADO QUER DEIXAR?

– Principalmente é título. Foi com esse objetivo que eu vim. Libertadores, primeiro passo é chegar ao Chile, depois dá outro passo. E ser campeão nacional, esses são meus dois grandes objetivos. E o lugar melhor que isso não há. E depois deixar marcas, a gente sempre deixa pelos clubes que passa. Deixamos ideias, e elas ficam.

– Para além dos treinos, dos títulos. Coisas que preocupam, eu me preocupei desde que cheguei com os campos do Flamengo, por toda a estrutura. E tento falar com o Marcos Braz, o Bruno (Spindel), o Paulo (Pelaipe)… Tem uma equipe atrás de mim que não me deixa faltar nada. E os resultados são mais fáceis com isso de conseguir.

(Globo Esporte)