No coração de Pompeia, na Itália, arqueólogos se depararam com uma peça surpreendente entre ânforas de vinho e panelas de bronze: uma sícula, um tipo de vaso egípcio luxuoso, cuidadosamente trabalhado em faiança azul-esverdeada e decorado com figuras humanas, animais e motivos vegetais. O objeto estava na cozinha de um termopólio – o equivalente romano de uma barraca de comida de rua.
A descoberta ocorreu durante escavações na chamada Casa do Galo (Thermopolium del Gallo), localizada na Região V de Pompeia, entre o final de 2023 e maio de 2024. O local, como você leu aqui na GALILEU, é uma combinação de restaurante popular e residência modesta, que preserva vestígios notáveis do dia a dia pouco antes da erupção do Vesúvio, em 79 d.C.
Segundo comunicado do Parque Arqueológico de Pompeia, publicado no dia 6 de novembro, o vaso era originalmente um objeto ornamental, típico de jardins ou salas de recepção das casas (domus) mais ricas da cidade. Sua presença em um ambiente humilde, usado como simples recipiente de cozinha, sugere uma intrigante história de reutilização e circulação de bens de luxo no mundo antigo.
Casa do Galo
Longe de ser uma invenção moderna, os termopólios eram uma parte essencial da vida urbana romana. Eles funcionavam como restaurantes populares onde a população mais pobre, sem cozinhas em casa, comprava refeições prontas e vinho quente temperado (calida). Os estabelecimentos, geralmente pequenos e vibrantes, eram pontos de encontro e sociabilidade, uma espécie de “fast food” do século 1.
Pompeia, até hoje, conserva 89 termopólios identificados. Como lembra o portal The History Blog, o do Galo se destacou entre eles por seus afrescos coloridos e boa preservação, revelando um cotidiano dinâmico e adaptável. A escavação do balcão principal e da área de atendimento começou em 2020 e, a partir de 2023, os arqueólogos passaram a explorar os ambientes adjacentes, onde o vaso foi encontrado.
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Os trabalhos de escavação mostraram que a Casa do Galo não era apenas um ponto de venda de refeições, mas também um espaço de vida e trabalho integrado. No piso térreo havia uma pequena cozinha e um depósito com utensílios domésticos, como almofarizes, panelas, caldeirões e ânforas usadas para conservar alimentos e bebidas. No andar superior, um apartamento com dois cômodos servia como moradia, provavelmente do proprietário.
As paredes apresentavam afrescos do Quarto Estilo, com arquiteturas pintadas em perspectiva, e o piso, pintado de amarelo, continha incrustações de mármore colorido. Objetos pessoais, como frascos de perfume de vidro e grampos de cabelo de osso, foram recuperados de um pequeno baú de madeira, indica a revista La Brújula Verde.
Mas o cenário encontrado pelos arqueólogos também refletia um momento de decadência. Estruturas improvisadas, como colunas de calcário e vigas de madeira, foram usadas para conter danos causados por terremotos anteriores à erupção. Mesmo assim, o local permanecia em uso, evidenciando a resiliência de seus habitantes diante das dificuldades cotidianas.
Uma ponte entre mundos
Acredita-se que o vaso egípcio foi produzido em Alexandria. Sua composição é baseada em faiança vítrea, um material brilhante e colorido amplamente usado em objetos rituais e ornamentais. A presença dessa peça em um ambiente popular pompeiano é considerada extraordinária.
Para os pesquisadores, o achado simboliza a permeabilidade cultural do Império Romano, onde objetos, ideias e estilos circulavam entre diferentes classes sociais e regiões do Mediterrâneo. “A sícula alexandrina em um termopólio popular ilustra como o exótico e o cotidiano se entrelaçavam em Pompeia”, destaca o relatório oficial.
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Esse registro arqueológico mostra como as camadas de cinzas e pedra-pomes da erupção do Vesúvio foram se acumulando lentamente, soterrando o termopólio. O desabamento dos andares superiores, embora destrutivo, acabou preservando utensílios e objetos em suas posições originais. Isso permitiu aos arqueólogos reconstruir a disposição da cozinha e compreender como o espaço era utilizado.
O resultado é um retrato vibrante de um pequeno negócio de ,o,éoa onde luxo e necessidade, religião e rotina, local e estrangeiro conviviam lado a lado. Em um simples balcão de rua, a presença de um vaso egípcio transformado em utensílio doméstico ecoa, dois mil anos depois, a complexidade de um império em movimento.
(Por Arthur Almeida)

