Uma famosa bacia de prata que faz parte do acervo do Rijksmuseum, em Amsterdã, e por muito tempo foi associada ao saque da frota espanhola de tesouros pelo almirante holandês Piet Heyn (1577–1629), acaba de ter sua origem desmascarada. Um estudo publicado no Journal of Cultural Heritage, em publicado em 02 de junho, utilizou análises de isótopos de chumbo para revelar que a peça não foi fabricada exclusivamente com a prata pilhada, ao contrário do jarro que a acompanha.
“Era comum a prata ser refundida e reutilizada na época. A ideia de que a bacia era feita apenas do saque espanhol provavelmente surgiu no século XIX, quando narrativas nacionalistas buscavam artefatos simbólicos”, explica a líder do projeto, Joosje van Bennekom, ao Phys.org.
A equipe comparou as assinaturas isotópicas do chumbo presente na prata de ambas as peças com amostras de referência de minas mexicanas, bolivianas e europeias. Enquanto o jarro apresentou composição compatível com a prata hispano-americana, a bacia revelou uma mistura de fontes, incluindo metais europeus.
A lenda do tesouro saqueado
Em setembro de 1628, a Companhia Holandesa das Índias Ocidentais interceptou uma frota espanhola carregada com riquezas das Américas, incluindo prata avaliada na época em 11,5 milhões de florins, o que equivale a R$ 327,12 bilhões atualmente. Entre os artefatos supostamente criados com esse metal estariam um jarro e uma bacia, hoje expostos como símbolos do triunfo naval holandês.
O jarro, de fato, traz marcas que confirmam sua ligação com a frota capturada: uma inscrição em holandês afirma que foi produzido com a prata tomada por Heyn em 16 de setembro de 1628, com a inscrição: “Dese kanne é Gekomen uyt de Siluere Vloot Verouert bijden Heer Luijt Admirael Pieter Pieters Heyn, Den 16den, setembro de 1628” (Este jarro veio da Frota de Prata conquistada pelo Senhor Tenente-Almirante Pieter Pieters Heyn, em 16 de setembro de 1628). Além disso, há vários contrastes e inscrições que contextualizam sua criação, incluindo o contraste “Fo ENRIQZ”, que indica o Francisco Enrique como seu autor. Um contraste pictórico adicional mostra um “o” minúsculo e um “M” maiúsculo entre dois pilares de Hércules, sinalizando que o jarro foi produzido entre 1606 e 1628.
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Já a bacia foi construída em um estilo completamente diferente. Sua marca registrada faz referência à cidade de Haia, e a inscrição nela presente diz apenas: “Administradores da patenteada Companhia das Índias Ocidentais na Câmara do Labirinto, 1684”. Na época, a Câmara do Labirinto era o órgão dirigente dessa companhia.
Apesar de supostamente fazer parte de um conjunto com o jarro, a bacia não é mencionada em registros históricos até 1808, quando aparece descrita como “uma jarra e bacia de prata, as primeiras encontradas na cabine do Almirante Espanhol ao ultrapassar a frota do tesouro pelo Almirante Pieter Pietersz Heyn, após o que a bacia foi posteriormente homenageada”. A palavra “homenageada” sugere que a bacia pode ter sido uma adição posterior, feita como tributo a Heyn e à conquista da frota espanhola. Em 1878, uma revista popular ajudou a consolidar a lenda ao afirmar que tanto o jarro quanto a bacia eram feitos de prata capturada da frota do tesouro.
Um símbolo reavaliado
A descoberta não diminui o valor histórico do jarro, que permanece como uma testemunha direta do evento de 1628. Já a bacia, agora revelada como uma peça “híbrida”, mostra como mitos podem se formar em torno de objetos históricos quando a narrativa é romantizada ao longo do tempo.
Para o Rijksmuseum, a pesquisa representa uma oportunidade valiosa de recontar a história com mais precisão, mostrando que, às vezes, até os tesouros mais celebrados guardam segredos inesperados.
(Por Carina Gonçalves)