Há cinco anos no Brasil como delegado de La Liga, a liga profissional da Espanha, Daniel Alonso acompanha de perto o futebol local, inclusive com relacionamento com clubes daqui. Ele vê o país onde nasceu como exemplo para a transformação do futebol brasileiro, que, para ele e para a La Liga, tem potencial de se tornar um dos cinco de maior receita no mundo.

Há poucas semanas, dirigentes de alguns dos maiores clubes do país se reuniram no Rio de Janeiro e debateram a necessidade de implantação de regras de Fair Play Financeiro no Brasil, um movimento chave que as equipes da Espanha iniciaram há dez anos e que, para Alonso, se tornou um marco da evolução dos clubes de lá.

– A gente vinha de uma situação caótica. Metade dos clubes estava em recuperação judicial, com dívidas só crescendo. “Bola pra frente, o (presidente) seguinte vai pagar”. E ninguém pagava – diz ele em entrevista ao ge.

O primeiro passo nessa transformação de La Liga foi uma lei federal que obrigou os clubes a vender os direitos de transmissão em bloco, não mais de forma individual. Para o executivo, isso permitiu um aumento substancial de receitas. Mas era preciso determinar algum controle para que esse dinheiro não escorresse pelo ralo.

– Se você incrementar as receitas e não colocar um controle financeiro, ia acontecer o que vinha acontecendo antes, os clubes iam torrar o dinheiro. Iam gastar hoje no elenco pra ganhar hoje. Mas isso mudou com incremento de receita e controle financeiro. Eles adotaram a regra para tornar sustentável o futebol.

Foram determinadas, então, regras de fiscalização orçamentária para os clubes.

Hoje, de maneira resumida, a La Liga determina um tempo para gastos com salários para atletas e comissões técnicas de até 70% das receitas previstas na temporadaO descumprimento impõe sanções, a principal delas o impedimento do registro de jogadores até que um equilíbrio seja encontrado nas contas.

Alonso afirma que a liga é inflexível:

– Primeiro caso foi de Pedro León, no Getafe (em 2014). Clássico: final de janela, todo mundo nervoso. Getafe consegue contratar no último momento, mas eles não tinham custo de elenco disponível. Era para ser a estrela do time. Não pode (registrar). Deu polêmica. Foi bom para todo mundo entender que era para valer.

– Tanto que o Barcelona não conseguiu inscrever o Messi (em 2021). O Barcelona não queria perder o Messi, a gente não queria que o Messi fosse embora. Mas não podíamos abrir a mão da regra.

– O Fair Play é uma regra que se adota para garantir sustentabilidade a longo prazo, de todo o ecossistema do futebol. (Antes) em média eram 150 denúncias por ano de falta de pagamento, nas primeira e segunda divisões. Agora tem zero demandas por atrasos a atletas – diz.

Esse modelo fez com que a liga espanhola tivesse um salto em seus valores de direitos de transmissão. O campeonato, que há dez anos era vendido por 900 milhões de euros por temporada, hoje tem contrato avaliado em 3 bilhões de euros anuais.

Exemplo para o Brasil

Alonso aponta muitas semelhanças entre o futebol espanhol no momento da implantação das regras de Fair Play e o do Brasil, hoje. Clubes altamente endividados, calotes entre equipe e com atletas, subvalorização do produto, dirigentes pressionados a entregarem resultados imediatos por condições políticas.

– Cresci vendo esse tipo de presidente, de comportamento, as manchetes de jornais, os atrasos aos jogadores. Era o dia a dia do futebol espanhol. Isso só mudou com regras – conta.

– O jeitinho existe no mundo inteiro, não é só brasileiro. O tipo de dirigente era muito parecido, presidencialista. Cobrado por torcida, vai lá e contrata não sei quem para ganhar hoje. O tempo inteiro nas mídias, muito protagonista.

Recentemente, os clubes brasileiros se organizaram numa tentativa de criar uma liga profissional. A discussão, porém, não levou a uma unidade, e hoje dois grupos diferentes negociam principalmente os direitos de transmissão de seus blocos. Alonso entende que o melhor caminho é de uma liga unificada, mas o cenário atual, com a divisão entre Libra e Liga Forte União, como um avanço.

– Antes tinha cada um por si, agora existem dois grupos. É mais fácil acertar dois grupos do que um por um. Estão mais próximos de fazer uma liga do que estavam antes – afirma ele, que chegou a apresentar o exemplo da La Liga, ao lado do presidente da entidade, Javier Tebas, a uma plateia de cerca de 40 presidentes de clubes brasileiros.

– Dissemos que a gente partia de uma situação parecida com a deles, e para a gente deu certo. Com adaptações ou não, pode funcionar. (Hoje) mantemos relação cordial com eles e estamos abertos a colaborar, mas não estamos trabalhando diretamente com nenhum dos dois grupos.

Para a La Liga, com organização e profissionalismo, o futebol brasileiro tem potencial para se colocar entre os de maior receita do mundo, um ranking que hoje é dominado por ligas europeias.

– Te falo a opinião do presidente da La Liga, ele falou aos clubes aqui: “Eu enxergo o futebol brasileiro no Top 5 mundial, em receitas”. Ele tem uma noção do valor de cada liga em outros mercados. Ele repetiu, enxerga no Top 5 do mundo – relata Alonso.

Para ele, o futebol brasileiro tem características que são raras em outros mercados, a principal delas é a competitividade que permite que muitos clubes tenham condições de disputar e vencer títulos durante a temporada.

– O Brasileiro começa com oito clubes como aspirantes reais a ganhar o campeonato, e pode aparecer um nono. Isso é muito atrativo. A incerteza do que vai acontecer. Para o produto, fora a qualidade do jogo, é muito atrativo. Se você consegue dar uma envelopada melhor e levar para outros países… você já caminhou muito com a marca do futebol brasileiro, o Brasil já é futebol.

Mercado internacional

Alonso acredita que o melhor caminho para ampliar receitas é com busca de outros mercados. Ele cita, mais uma vez, a La Liga como exemplo.

Segundo ele, a venda de direitos internacionais corresponde a 40% do que a liga arrecada – eram 20% dez anos atrás, quando o torneio tinha valor três vezes menor.

– Se você transformar essa paixão, a competitividade, a incerteza, e melhorar as condições aqui, como qualidade dos gramados, por exemplo, e consegue fazer com que os clubes não precisem vender seus talentos tão cedo, a competitividade vai permanecer, e a qualidade vai melhorar – afirma o executivo.

– São muitos clubes tradicionais, longo histórico de craques. Tem uma narrativa. Te garanto que em qualquer país que goste de futebol, isso vai pegar.

A La Liga entende que é por aí que pode crescer mais. Para isso, buscou parceiros locais em mercados prioritários, como EUA, China e Emirados Árabes, e criou joint ventures para explorar esses lugares.

Recentemente, recuperou um projeto de realizar partidas oficiais da competição fora da Espanha – os EUA são o alvo. Essa ideia foi abortada anos atrás por causa da reação da federação da Espanha e da Fifa. Mas Alonso diz que essas barreiras foram superadas:

– Nosso parceiro demandou à Fifa e argumentou, chegaram num acordo que abriu essa possibilidade. Estamos recuperando o projeto. Não sei se vai acontecer neste ano ou no próximo, mas é provável que ele aconteça. Provavelmente em Miami, como no projeto original – conta.

A intenção é a transferir um jogo que tenha um time grande contra um menor, com mando do menor.

– No primeiro projeto, era Girona x Barcelona, com o Girona mandante. É um time de estádio menor, contra um time grande, e ainda bancar os sócios que têm cadeira para que eles fossem a Miami.

A inspiração é nas próprias ligas americanas, a NBA e a NFL, que passaram a explorar mercados estrangeiros com partidas de temporada regular – na última semana, o Brasil recebeu em São Paulo a primeira partida da liga de futebol americano na América do Sul.

Casos de racismo

Apesar dessa evolução da liga da Espanha, casos estrondosos de racismo abalaram a imagem do futebol do paísO enfrentamento do atacante brasileiro Vinícius Jr., que se tornou a maior vítima de intolerância nos estádios espanhóis, aumentou a exposição.

Depois de uma reação claudicante no início, a La Liga reforçou o combate ao racismo, segundo Alonso.

– O que realmente virou o jogo foi o caso do Vinicius em Valência. Tem mudado muito, para o bem. A gente vinha trabalhando contra o racismo, mas não comunicamos bem e não estava sendo visto. A gente estava denunciando. Indo no Ministério Público, cedendo nossos advogados para defender o Vinicius. Passando as imagens e todos os recursos para identificar essas pessoas. Mas o Ministério Público não estava dando prosseguimento. Realmente não estrava acontecendo nada.

Ele reafirma o papel da liga, que segundo o executivo não tem competência para aplicar punições nesses casos.

– O torcedor vai comparar que a CBF incluiu regra que tira pontos, fecha arquibancadas, mas a CBF tem esse poder, a gente não tem. Só podemos denunciar e dar visibilidade, educar, colocar nossos recursos para tentar evitar que isso aconteça.

– Quem tinha poder de punição era a federação. Se eles querem, eles podem fazer. E na parte penal, polícia e Ministério Público. O clube pode sancionar torcedor, banir, mas é decisão do clube. A gente recomenda. Os clubes felizmente entraram nisso, estão sendo mais assertivos – completa.

Alonso celebrou a condenação recente de três torcedores identificados como os que ofenderam Vinicius no jogo contra o Valencia, em maio de 2023. A sentença, de junho, determinou a prisão por oito meses, além de multas e da proibição de frequentarem estádios por dois anos.

– Por tudo o que aconteceu antes, as ações do Vinicius de colocar tudo à vista, por nossa parte de ajudá-lo com recursos, pela denúncia social, virou pauta nos jornais, o Ministério Público tomou a ação que todos demandavam. Isso passa a mensagem de que não há mais impunidade – afirma Alonso.

Ele entende que já foram superadas as tensões entre o jogador e a La Liga:

 A gente tem um trato habitual com o entorno do Vinicius e ele entendeu a posição da Liga, que estamos ao lado dele. Por algum motivo, isso não tinha chegado a ele. Nosso presidente foi infeliz em declarações que fez depois do jogo em Valência, ele reconheceu e pediu desculpas.

O executivo afirma que houve mudança, mas que o combate ao racismo seguirá.

– Infelizmente, é provável que outros casos aconteçam. Vamos continuar fazendo a nossa parte, dentro das nossas competências. Felizmente não é toda a sociedade, são alguns elementos. O país é racista? Não. Tem racistas? Tem. É uma realidade mundial, temos que bater de frente para que cada vez tenha menos. (GE)