Vivenciamos um mundo distópico – do não lugar – mas isso não é privilégio da contemporaneidade.

Historicamente, o ser humano é multifacetado e incongruente; mas jamais como neste século.

Em meados do século passado, o grande conflito era o maniqueísmo Ser versus Ter e, com a Guerra Fria, Socialismo versus Capitalismo.

Preponderaram o Ter e o Capitalismo.

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Essa conjuntura histórica, aliado aos avanços tecnológicos, mudou para sempre as relações interpessoais e a própria maneira de se enxergar em sociedade.

Vive-se um momento antieuclidiano, no qual a racionalidade é apenas um dos componentes que influenciam o indivíduo em sua relação consigo, com a sociedade e com o planeta.

Parece contraditório: nunca se teve tanta interação (redes sociais) e nunca estivemos tão sós.

hico Buarque elegeu a saudade como “o pior tormento”; mas a pior das aflições contemporâneas é estar só em meio a pessoas, as consequências dessa solidão são devastadoras, implicando não apenas a profusão de transtornos mentais como também o aumento exponencial de suicídios.

Segundo a Fiocruz, as estatísticas brasileiras são alarmantes: A taxa de suicídio entre jovens cresceu 6% ao ano no Brasil entre os anos de 2011 e 2022. Já as taxas de notificações por autolesões na faixa etária de 10 a 24 aumentaram 29% a cada ano nesse mesmo período. O número foi maior que na população em geral, cuja taxa de suicídio teve crescimento médio de 3,7% ao ano e a de autolesão 21% ao ano, neste mesmo período. Esses resultados foram encontrados na análise de um conjunto de quase 1 milhão de dados, divulgados em um estudo publicado na The Lancet Regional Health – Americas, desenvolvido pelo Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs/Fiocruz Bahia), em colaboração com pesquisadores de Harvard.”

Há outras fontes e outras estatísticas; todas, invariavelmente, preocupantes.

Com certeza a incompreensão do problema por parcela significativa da sociedade esteja relacionado à percepção das causas que levam alguém a atentar contra a própria vida, aliado aos tabus que cercam o tema, aliás, magnificamente retratado por Sófocles (496 – 406 a.C.) na tragédia grega “Ájax”.

A melhor maneira de compreendermos as atitudes suicidas e assim podermos evitá-las não é apenas enfatizando medidas individuais profiláticas de assistência e de saúde mental; antes, devemos encará-las com um problema social.

No viés sociológico temos duas leituras obrigatórias: “O Suicídio” (Émile Durkheim – 1897), bastante difundida nos meios acadêmicos e “Sobre o Suicídio” (Karl Marx/ Peuchet – 1846), pouco conhecida, inclusive nas academias.

Durkheim descreveu três tipos de suicídio: o egoísta, o altruísta e o anômico, este o  mais presente na sociedade atual.

Tal comportamento foi descrito, tendo como premissa o ensaio “Da Divisão do Trabalho Social”, a partir da constatação que a sociedade oriunda da 2ª Revolução Industrial estava “doente” por não conseguir reproduzir laços sociais como solidariedade, por exemplo, conduzindo o indivíduo à distopia por conta do desequilíbrio socioeconômico causado pela divisão do trabalho; porém, as “organizações” sociais poderiam mitigar o problema.

Já Marx, ao contrário de Durkheim, entendia que o modo de produção capitalista e suas relações sociais eram marcadas por contradições e pela luta de classes.

Assim, analisando somente quatro casos de suicídio, na França do século XIX, causados, respectivamente, por difamação; por ciúme; por gravidez avuncular e por desemprego, Karl Marx  vaticinou: “Que tipo de sociedade é esta, em que se encontra a mais profunda solidão no seio de tantos milhões; em que se pode ser tomado por um desejo implacável de matar a si mesmo, sem que ninguém possa prevê-lo? Tal sociedade não é uma sociedade; ela é, como diz Rousseau, uma selva, habitada por feras selvagens.”

Que a saúde mental e o suicídio são um problema de saúde pública é indiscutível.

A Organização Mundial da Saúde (OMS) apontou como principais causas de atitudes radicais como a do personagem Ájax da tragédia grega, o baixo nível socioeconômico e cultural; o padrão de vida familiar e lembranças de fatos negativos ocorridos durante a infância; o estilo de personalidade e os transtornos psiquiátricos.

Causas complexas e soluções ainda mais; todavia, é mister que o Estado e a sociedade priorizem maneiras de garantir a saúde mental dos cidadãos; especialmente a questão do suicídio para evitar que tornemos normal o que sempre foi anormal: ceifar a própria vida.

 

*SÉRGIO EDUARDO CINTRA é professor de Linguagens e de Redação em Cuiabá, há 44 anos e está servidor do TCE-MT. Foi vereador, Diretor Executivo da Funec e secretário de Cultura de Cuiabá. Atualmente é servidor do TCE-MT. 

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