NEILA BARRETO
As figuras públicas, dependendo da sua importância, eram cultuadas, festejadas com pompas e danças pela população de Cuiabá.
Por exemplo, no ano de 1790 pode ser tomado como emblemático, na ativação da vida urbana na Vila Real do Senhor Bom Jesus de Cuiabá. Nesse ano, comemorou-se longa e ostensivamente o aniversário do Juiz de Fora Diogo de Toledo Lara Ordonhes, à época ocupando interinamente o cargo de ouvidor. As festas públicas realizadas em homenagem ao magistrado estenderam-se de 6 de agosto a 11 de setembro.
Em 15 de agosto de 1790, um domingo foram apresentadas na Praça Real, atual Praça Alencastro, centro de Cuiabá, “seis contradanças, passapiés de dois e a quatro, minuetos simples, a quatro e figurados, minuetos da corte”. O minueto é uma dança composta em compasso ternário, como as valsas. No domingo seguinte, 22 de agosto, mais danças (“minueto, contradança comprida, bem sabida e trabalhosa, pelos pulos ou quartos que faziam”); na segunda-feira, 23, apresentaram os “dançantes do dia antecedente”; em 29 de agosto, outro domingo, “dançaram a Tirana”, uma dança que tem semelhança com o fandango; e na terça-feira, 31 de agosto, “muitas árias, uma espécie de musical que constituiu na interpretação de várias óperas, que executaram bem, pois eles todos [os pardos] são curiosos na cantoria, além de que a dama que fazia o papel de Honória é músico de profissão, de voz e estilo. (…). Principiou e acabou a ópera por um coro.
Como o chafariz do Rosário começou a funcionar “no fim de agosto”, é possível supor que o início de suas atividades tivesse algo a ver com as comemorações natalícias de Diogo de Toledo Lara Ordonhes. Essa possibilidade é reforçada pelo fato de Joaquim da Costa Siqueira, íntimo de Ordonhes, estar por sua vez presidindo a câmara, em Cuiabá, também interinamente.
A quase nenhuma atenção dada pelos Anais da Câmara da Vila Real à construção do chafariz do Rosário e, particularmente, o silêncio sobre a construção do aqueduto sobre o Prainha, resultou em mais de dois séculos de invisibilidade desse equipamento urbano – nos estudos da história da Vila Real. Esse longo esquecimento contribuiu também para que aqui, como em outras partes do Brasil, a longa história das águas urbanas continuasse uma história ainda pouco conhecida.
A manutenção de fontes públicas na Vila Real mostra existência (mesmo que deficiente) de sistema de abastecimento de água doce potável. Das fontes às casas, a água era transportada por escravos. Algumas residências tinham poços nos quintais. Tudo leva a crer que das águas do córrego Prainha não se bebia: “a presença de algum azougue (mercúrio) das lavagens do ouro, além de lixo, tornava perigosa sua água”. Aparentemente a prática de jogar-se dejetos em córregos e outros locais dentro ou próximos do centro urbano era recorrente, – apesar das posturas e das ações da câmara: “dejetos eram jogados nos córregos e em lugares impróprios”.
Essa não utilização das águas do Prainha para ingestão atravessou séculos. Em 1872, por exemplo, testemunhas juramentadas em processo judicial declararam ser prática comum (embora transgressiva) “pessoas satisfazer necessidades físicas” nas margens e no leito do Prainha. Como essas testemunhas, praticamente toda a população da cidade devia estar advertida sobre a contaminação das águas do Prainha.
Em fins do século XVIII representantes da coroa portuguesa na capitania eram incentivados a indicar jovens estudantes para cursos universitários, custeados com dinheiro da Fazenda Real. Dentre esses cursos, merece destaque aqui o de engenharia hidráulica.
Em 1808, há referências a um “Chafariz” na Mandioca.
Por volta de 1817, o governador e capitão-general João Carlos Augusto de Oeynhausen Gravenburg (depois Marquês de Aracati) reassumiu o projeto de canalização das águas do Mutuca, não mais apenas para lavagens de mineração no Jacé (hoje nas proximidades do bairro Carumbé), mas também para encaminhamento d‘água do ribeirão Mutuca, para o abastecimento da Vila Real do Senhor Bom Jesus de Cuiabá.
O abastecimento da água aconteceu. A falta dela para a população até hoje continua. A prioridade para sanar essa necessidade nunca foi de importância para políticos e gestores da cidade.
(*) NEILA BARRETO é jornalista, historiadora e presidente do Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso.
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