Almino Afonso Fernandes e Diego Guimarães
Quando escreveu a Constituição Federal de 1988, o legislador constituinte teve a sabedoria e sensibilidade de prever que, num país de dimensões e complexidades continentais como o Brasil, União, estados e municípios formariam uma parceria indissolúvel consagrada pelo Pacto Federativo. Tal desenho político-administrativo materializa os moldes jurídicos de obrigações financeiras e de atuação de cada ente.
Não são desprezíveis, porém, as controvérsias que emanam desse arranjo e deságuam em iniciativas atabalhoadas, fruto de voluntarismo, ou o seu revés: a omissão que nega direitos e impede o avanço social. Nos dois casos, temos uma indesejável violação à Carta Cidadã. Um retrato dessa situação está nos números do Anuário da Justiça Brasil, editado por esta revista eletrônica: em 2022, o Supremo Tribunal Federal declarou a inconstitucionalidade de 67% das leis, normas administrativas e decisões judiciais analisadas no mérito, no todo ou em parte.
Ainda que não seja benéfica para a estabilidade institucional, a controvérsia, ao menos, serve para propósitos pedagógicos. Afinal, a incompreensão nos convida à reflexão. Interessante exemplo para análise vem do estado de Mato Grosso, onde recentemente a Assembleia Legislativa aprovou um projeto de lei que garante a liberdade de escolha do consumidor na compra de água mineral e impede a exclusividade dos recipientes retornáveis. A proposta encontra-se pendente de sanção pelo Executivo.
“A matéria analisada pela Assembleia Legislativa tem por objetivo proteger o direito do cidadão/consumidor. Sob essa perspectiva é que foi aprovado o projeto de lei que instituiu a obrigatoriedade do sistema retornável intercambiável para os garrafões de água mineral ”
A pergunta que o leitor deve estar se fazendo agora é: o que água mineral tem a ver com a distribuição de competências previstas pela Constituição de 1988? Numa resposta simples, tudo. Afinal, outra indagação se apresenta: pode o legislador estadual deliberar sobre esse tipo de comércio? Numa outra resposta simples, sim. E é a partir das dúvidas que derivam desse exemplo que aceitamos o convite à reflexão.
Em primeiro lugar, a Constituição nos socorre em seu artigo 24 ao dizer que compete à União, aos estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre produção e consumo. Como não há palavra sobrando na Constituição, a expressão “competência concorrente” quer dizer que ficou reservado à União o estabelecimento de normas gerais, enquanto cabe aos estados legislarem de forma suplementar e residual. No caso ora em análise, o projeto aprovado limita-se a estabelecer regulamento inerente à comercialização de produtos contidos em recipientes, embalagens ou vasilhames reutilizáveis, visando o bem-estar do cidadão/consumidor final e, em última análise, atender ao interesse público.
A matéria analisada pela Assembleia Legislativa tem por objetivo proteger o direito do cidadão/consumidor. Sob essa perspectiva é que foi aprovado o projeto de lei que instituiu a obrigatoriedade do sistema retornável intercambiável para os garrafões de água mineral e vedou a adoção dos recipientes exclusivos — de modo, diga-se, a evitar também a concentração de mercado e a concorrência desleal.
Assim, diante da ausência de regulação federal, as normas devem ser adequadas às práticas de mercado para garantir efetividade ao disposto no artigo 170 da Lei Maior, segundo o qual “a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social”, observando nove princípios, entre eles o da defesa do consumidor.
Ainda que o texto constitucional seja suficiente para responder às dúvidas que o caso suscita, a controvérsia, sempre ela, é pródiga em colocar as intenções do legislador à prova. Afinal, a vida reclama soluções. E, neste particular, o Judiciário também não falta à nossa dialética. Na Ação Direta de Constitucionalidade 2.359/ES, o Supremo Tribunal Federal teve a oportunidade de se debruçar sobre a mesma questão atinente à competência estadual para legislar sobre produção e consumo de recipientes reutilizáveis naquele caso, botijões de gás.
Naquela ocasião, em situação extremamente similar ao projeto aprovado em Mato Grosso, a Confederação Nacional da Indústria postulou pelo reconhecimento da inconstitucionalidade da Lei 5.652, editada pela Assembleia Legislativa do Estado do Espírito Santo, que dispôs “sobre a comercialização de produtos por meio de vasilhames, recipientes ou embalagens reutilizáveis” de gás liquefeito de petróleo engarrafado (GLP). Em síntese, a entidade pretendia ver reconhecida a suposta usurpação pelo Estado do Espírito Santo do direito exclusivo da União.
Após um longo debate, o STF entendeu que a legislação estadual não representava qualquer ofensa à Constituição ou à repartição de competências entre os entes federativos. Nas palavras do eminente ministro Eros Grau, que relatou a matéria:
“A Lei hostilizada não está em confronto com qualquer preceito constitucional, limitando-se a estabelecer diretrizes atinentes à comercialização de produtos contidos em recipientes, embalagens, ou vasilhames reutilizáveis. Diretrizes certamente adequadas as práticas de mercado, de sorte a provar a defesa do consumidor, dando concreção ao disposto no artigo 170, V da Constituição do Brasil. O texto normativo estadual dispõe sobre matéria de competência concorrente entre a União, os Estados-membros e o Distrito Federal. Julgo improcedente o pedido.”
Como se não bastasse, ao analisar matéria semelhante à que foi aprovada em Mato Grosso, o Superior Tribunal de Justiça proclamou entendimento assim ementado:
“AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. OBRIGAÇÃO DE FAZER. VASILHAMES DE ÁGUA MINERAL. APÓS A AQUISIÇÃO DO GARRAFÃO DE ÁGUA PELO CONSUMIDOR, NÃO É RAZOÁVEL QUE LHE SEJA VEDADA A SUA REUTILIZAÇÃO COM O PRODUTO DE EMPRESA CONCORRENTE. VIOLAÇÃO AO PRINCÍPIO DA LIVRE CONCORRÊNCIA COM A CRIAÇÃO DA RESERVA DE MERCADO. APLICAÇÃO DA SÚMULA Nº 283/STF” (AREsp 1.489.295/RJ. rel. min. Paulo de Tarso Sanseverino).
Dessa forma, sem a pretensão de esgotar a instigante temática da relação entre os entes federativos, a recente aprovação do projeto de lei em Mato Grosso, concernente à regulamentação da comercialização de água mineral em recipientes reutilizáveis, reflete um movimento legislativo em absoluta conformidade com as previsões constitucionais. O projeto ora à espera de sanção governamental preenche um vácuo regulatório, homenageando o princípio fundamental da ordem econômica voltada para a defesa do consumidor, conforme preconizado no artigo 170 da Carta Magna. O respaldo das decisões judiciais, incluindo as manifestações do STF e do STJ, valida a pertinência e a legitimidade das ações estaduais, reforçando a importância da atuação conjunta e harmônica dos entes federativos.
Almino Afonso Fernandes é advogado constitucionalista e sócio do escritório Almino Afonso & Lisboa Advogados Associados
Diego Guimarães é deputado estadual em Mato Grosso pelo partido Republicanos
*Os artigos são de responsabilidade de seus autores e não representam a opinião do Cuiabano News.