RUI PERDIGÃO

Agora tudo parece exigir uma narrativa. Tudo aponta para que uma só narração já não seja suficiente. Procurar entender as razões pelas quais a palavra narrativa está a adquirir maior utilidade no vocabulário brasileiro, desperta-me interesse.

Olhar a palavra narrativa, por analogia com outras palavras que também tiveram um novo uso, rápido recordo duas outras. Uma delas é o empreendedorismo, que hoje se encontra apropriada pela iniciativa privada na lógica econômica do faça você mesmo, mas que sempre caracterizou o comportamento humano a partir do momento em que se procuraram cavernas para melhor viver.

Outra é a palavra empoderamento, hoje utilizada pelas mulheres para objetivar a sua ação em ambiente sócio familiar de base machista ou paternalista, mas que também ela sempre abraçou a humanidade desde a primeira vez se pegou em armas para lutar. Por sua vez, a palavra narrativa encontra-se também agora sendo apropriada por um determinado grupo social, independentemente de sempre ter estado presente e acompanho os humanos desde os dias em que, em torno de uma fogueira, se repassavam sonhos e saberes, de geração em geração.

“A palavra narrativa encontra-se também agora sendo apropriada por um determinado grupo social, independentemente de sempre ter estado presente e acompanho os humanos desde os dias em que, em torno de uma fogueira, se repassavam sonhos e saberes, de geração em geração”

Quando procuramos conhecer a etimologia da palavra narrativa, verificamos o destaque que é dado ao seu vínculo com a intenção de criar e não o compromisso com a realidade. No entanto, mesmo com a criação na sua gênese, entendemos não possuir a capacidade de nos transportar de imediato para esse momento ímpar da nossa existência. Ou seja, ela precisa associar-se a outras palavras para se concretizar.

Em contextualização e de forma simples, podemos observar que, nos dias de hoje, quando a palavra narrativa se apresenta escrita ela ainda se mantem onde e do jeito que sempre andou, mas quando proferida oralmente, notamos agora estar sendo muito usada por ativistas políticos, como título introdutório de uma composição oratória que, diga-se de passagem, vem sendo sistematicamente estruturada através de premissas duvidosas, comparações incomparáveis ou eloquentes devaneios.

Essas composições, desprovidas de quaisquer condições para o desenvolvimento de uma corrente de pensamento, surgem agora como proposições de uma interpretação distorcida do que realmente se pretende. Como se já não bastassem as enormes dificuldades existentes na interpretação do real e do virtual.

A crescente utilização da palavra narrativa, por parte de políticos, pseudo influencer’s ou demais agentes de convencimento, pode dever-se ao fato de se saber que uma história ou uma emoção sempre prende a nossa atenção, mas eu penso seriamente tratar-se de um mero expediente linguístico que encabeça uma fuga para frente em decorrência do descrédito de propostas políticas que muitos teimam em manter.

Se assim for, precisamos ficar atentos, pois muito provavelmente estaremos diante de uma técnica de marketing político, copiada diretamente do setor de vendas de corantes e conservantes cancerígenos. Nesse caso é importante nunca esquecer que a política pública não é um produto, mas sim um ato representativo, no mínimo, de um projeto de sociedade que se pretende edificar.

Existe também a possibilidade de se estar perante uma ressignificação da palavra, o que até posso aceitar se o mais direto sinónimo de narrativa passar a ser desconfiança e a autenticidade o seu antônimo.

Rui Perdigão é administrador, geógrafo e presidente da Associação Cultural Portugueses de Mato Grosso

(RDNEWS