Jean Chera repetiu algumas vezes que vê a própria vida como um livro aberto. Aos 28 anos, quase cinco depois de encerrar uma trajetória que nasceu promissora, o antigo garoto-prodígio do Santos comparado a Neymar vai retomar a carreira bem distante da badalação.
Na possível última chance de provar que pode jogar profissionalmente, o meia-atacante atuará no EC São Bernardo, clube da terceira divisão paulista.
A superexposição da infância ficou no passado, mas um desejo infantil pesa para Jean Chera “dar a cara a tapa” e tentar emplacar como profissional depois de largar as chuteiras e buscar outras carreiras, como nos jogos eletrônicos.
O filho Leonardo, de seis anos, aprendeu a ler e entender o mundo que o cerca. Não demorou para as notícias sobre o pai, famoso aos nove anos como jogador do Santos, virarem pauta nos encontros recentes. As perguntas infantis despertaram um desejo adormecido.
– Ele me pergunta: “Pai, por que você parou de jogar? Pai, por que você não volta a jogar? Pai, você jogou no Santos”. Quero voltar para provar para mim também do que sou capaz, claro. Seria histórico alguém voltar e atuar em alto nível depois de cinco anos longe – disse Jean, em entrevista ao ge na última segunda-feira, dia em que vestiu pela primeira vez a camisa do novo time.
– Quero mostrar para ele (Leonardo) que podemos fazer o que sonharmos na vida, independentemente da idade, ele pode fazer e ser quem quiser. E até passar uma mensagem para meninos de 25, 26 anos que me mandaram mensagem no Instagram dizendo: “Pô, Jean, vi sua entrevista e quero voltar a jogar” – relatou.
Recém-chegado, Jean Chera encontrou um clube mobilizado para criar um ambiente confortável. A infraestrutura é modesta, mas conta com trabalho multidisciplinar, aliando preparação física até nutrição.
O clube ainda possui um alojamento próprio com 17 apartamentos para o time profissional, que serve também para integrar o elenco e proporcionar uma sensação de pertencimento. Jean, hoje morador de São Paulo, quer aproveitar a estrutura para acelerar a adaptação aos novos colegas no ABC.
Esse trabalho em conjunto tem um primeiro objetivo. São pouco mais de 40 dias para Jean Chera adquirir o mínimo de condição para reforçar a equipe no início de julho, data de início da Copa Paulista. O clube bateu na trave para subir à Série A2 nesta temporada – caiu nas semifinais da Série A3.
Jean Chera vai retomar a carreira com a camisa do EC São Bernardo — Foto: Laura Monteiro
O plano é ter o ex-Santos e Flamengo por pelo menos 30 minutos nas primeiras partidas. Não há rebaixamento na Copa Paulista, cenário considerado ideal para o atleta ser utilizado, segundo a direção. O foco está em chegar à final para conseguir uma vaga no Brasileirão da Série D ou na Copa do Brasil, ambos de 2024.
Nova (velha) exposição
Fora de campo, o tratamento com o meia-atacante mudou a rotina do clube, que também enxerga Jean Chera como uma oportunidade de marca. O EC São Bernardo contratou uma produtora para gravar uma espécie de websérie deste retorno aos gramados.
A exposição voltou, mas agora com o consentimento de um homem de 28 anos.
O plano para voltar veio também com muita reflexão durante a meia década de afastamento. O último clube de Jean Chera foi o Sinop, em 2017, que antecedeu aventuras em outros campos, como e-sports (Fifa) e o futevôlei.
O período longe dos gramados trouxe momentos ruins. Embora julgue ter a “cabeça boa”, inclusive dispensando consultas com psicólogos até hoje (algo que promete mudar, principalmente por insistência da noiva), Jean enfrentou obstáculos internos.
– Vi que tudo deu errado e fiquei triste demais quando parei em 2017. Era frustrante – recordou.
Jean Chera durante a passagem pelo Sinop, em 2017 — Foto: Julio Tabile/Sinop FC
A motivação encontrada para seguir no esporte ocorreu nas areias do próprio condomínio onde morava em Sinop.
– Uma das coisas que me salvou foi o futevôlei. Fui brincando com o pessoal. Era habilidoso e comecei a jogar. Me deu ânimo para fazer atividade física, participei de uns torneios, dei aula de futevôlei. Me pagavam por mês para dar treino – disse, sorrindo ao relatar como o hobby chegou a virar trabalho.
Do futevôlei, a competitividade naturalmente foi retomada. O processo para voltar a carreira deu-se durante quase um ano. Houve uma pré-temporada de 20 dias no Sinop, em 2023, que antecedeu o acerto com o time paulista.
As areias e o reencontro com o esporte na cidade natal serviram de ensaio para a retomada na grama (sintética) do estádio Baetão, no ABC.
– Acho que isso me manteve animado, que me manteve na linha nesses cinco anos. Não foi fácil, dar tudo errado praticamente e não dar uma desandada no meio do caminho – refletiu Jean.
Infância perdida
Jean Chera e a rotina de profissional na infância: patrocinadores e eventos — Foto: Reprodução/Instagram
Ainda criança, Jean Chera deixou a vida pacata para pousar no centro do futebol brasileiro da época: o Santos de 2002. Na Vila Belmiro, virou “Menino da Vila” ao lado de Gabigol e Neymar, inclusive com a rotinas parecidas nos compromissos comerciais. Mas há lembranças muito ruins dos tempos de CT Rei Pelé.
Fora a exposição de uma verdadeira estrela, com rotina de atleta profissional enquanto ainda somava as primeiras frações na escola, Jean passou por uma situação de assédio sexual enquanto adolescente. As imagens ainda estão na memória do meia-atacante, que pela primeira vez detalhou o caso, após expor o ocorrido há alguns anos.
– Cara, assim, eu lembro até hoje. Deitei pra fazer abdominal, e eu acho que o Ricardo (David, representante e amigo da família) nem sabe dessa história. Meu shorts caiu um pouquinho aqui assim, aí o “treinador” passou e falou: “nossa, Jean, que coxa gostosa que você tem hein?” Falei: ‘que isso?’ Levantei e saí na hora – contou, medindo as palavras para omitir o assediador.
– Cheguei em casa, contei para os meus pais. Meu pai ficou doido na época, transtornado, minha mãe foi quem não deixou ele ir atrás do cara…enfim, foi resolvido e graças a Deus está tudo certo – acrescentou, detalhando pela primeira vez o ocorrido enquanto ainda sonhava em se tornar um craque do Peixe.
O caso ocorreu pouco tempo antes de Jean Chera deixar o projeto do Santos. Então garoto-prodígio, o adolescente ficou afastado por alguns dias e condicionou a permanência na Vila Belmiro à saída do profissional. Foi o que aconteceu, antes de a carreira dar uma reviravolta meses depois.
Uma proposta muito vantajosa, responsável por até hoje colaborar para o conforto financeiro da família, surgiu para Jean Chera, então tratado como uma revelação potencial capaz de liderar uma geração ao lado de Neymar.
A ida para o Genoa, da Itália, marca um “ponto de virada” e alimenta um questionamento que representa o nome Jean Chera mais de uma década depois. Afinal, por que aquela revelação não vingou como profissional?
O jogador evita falar a palavra “arrependimento”. Nem mesmo a ida para a Itália é tratada com ressentimento. Os problemas na Grécia e no Flamengo, locais nos quais o meia diz não ter recebido o combinado, tampouco.
O principal ponto da carreira precoce que traz reflexões é o tempo perdido. A rotina na época do Santos tirou algo que Jean Chera não recupera neste momento de retomada da carreira no ABC paulista.
– Dos oito, nove aos 15, a minha rotina era treinar, ir para a escola e dar entrevista. Eu era famoso na escola, tirava foto com os companheiros de classe, era uma coisa muito doida. Só quem viveu ali comigo para ter noção do que eu passava – relatou.
– Não tive infância. Não tinha essa de ir ao shopping com meus amigos. Minha infância foi praticamente zero e não quero isso para o meu filho. Quero que ele viva a infância dele. Se for jogar bola futuramente, que vá devagarzinho, no tempo dele. Até uma mensagem que deixo aos pais: deixem os meninos serem felizes, treinarem, curtirem – avisou Jean Chera.
O que deu errado?
Jean Chera foi tratado como grande revelação pelo Santos — Foto: Reprodução / Instagram
Jean Chera enxerga três pontos como fundamentais para, até o momento, não ter vingado: erros de gestão da carreira, que tinha o pai Celso como agente; o excesso de exposição ainda na infância e o próprio comportamento, imaturo muitas vezes em meio aos obstáculos das categorias de base.
Uma mistura de fatores que resultou em frustrações.
– Era meu pai quem tomava as decisões, e ele se sentou com muita gente, com muito empresário grande. Ele se sentou com empresário do Cristiano Ronaldo (Jorge Mendes), com maiores do Brasil, Wagner Ribeiro, Delcir Sonda. Ele poderia dar um passo para trás e deixar o empresário tomar a frente das negociações. Ele poderia sair de cena e deixar o empresário tomar as porradas, correr atrás – afirmou.
– Entendemos hoje que ele errou, assim como errei também. Minha relação de pai para filho nunca mudou, sempre foi a mesma. Pouca gente sabe, mas ele fez só até a quinta série, não teve estudo. Ele vem para um mundo um pouco sujo, com empresário, dinheiro, jogador… Ele se assustou, mas queria sempre fazer algo para o meu melhor – acrescentou.
Jean era o grande nome da base do Santos ao lado de Neymar e protagonizava eventos ao lado do atual jogador do PSG, três anos mais velho do que o mato-grossense. O meia do São Bernardo vê problemas na relação com o clube, a quem, no entanto, se diz muito grato.
– O Santos não conseguiu me blindar o suficiente. Desde os oito, nove anos, eu fazia muita coisa. Era entrevista para a “Veja”, entrevista para a Globo. Cheguei a inaugurar mais de 50 escolinhas do Santos no interior de São Paulo. Pegava o carro, ia, inaugurava, voltava com jogo no mesmo dia do sub-11 ou sub-13.
– Foi uma exposição grande, poderiam ter me blindado. Eu também não vou me esquivar da culpa. Em determinados momentos, eu dava uma desanimada. Via que não estava dando certo, aí não me cuidava direito. Não treinei o suficiente – admitiu
Os problemas citados, entretanto, não tiram o carinho de Jean pelo Santos, clube que abriu as portas também em 2015, anos depois.
– Tudo o que consegui foi devido à minha chegada no Santos. Não seria nada sem o Santos. Não vou tirar a culpa do Santos, e também poderia ter me cuidado melhor. Mas não há nenhuma mágoa. Sou muito grato ao Santos .
“O que é dar certo?”
– O que é dar certo no futebol? É jogar uma Série A? É estar na Champions League, na Seleção? Ou é ajudar a família e se estabelecer financeiramente? – refletiu.
Financeiramente, missão cumprida. O meia diz ter uma vida confortável pelo dinheiro conquistado ainda como promessa, que resultou em investimentos como as cabeças de gado responsáveis por assegurarem um lucrativo negócio familiar.
Jean e Ricardo David, que o acompanha desde a infância e hoje representante — Foto: Laura Monteiro
Jean quer criar raízes no ABC e fazer do São Bernardo uma espécie de segunda casa. Em campo, como forma de agradecimento, tem o desejo de colaborar para o acesso da A-3 para a A-2. Os sonhos são outros, mais maduros, como julga o próprio.
– Em cinco anos, quem sabe o São Bernardo me venda por uma boa grana para um clube grandes (risos). Em cinco anos, estarei tranquilo e feliz com meu filho, minha noiva, jogando e acho que provavelmente já casado, né? Quatro anos de noivado, acho que vamos querer já – encerrou Jean, sem filtros sobre o passado e, enfim, dono do próprio projeto para o futuro. (GE)