“Fui esquentar o leite para o meu filho e ele continuou brigando. Aí eu disse que não aguentava mais aquela vida. Ele pegou um vidro de álcool e falou: Já que você não aguenta mais, vamos ver como será daqui para frente e jogou o líquido em mim. Eu nem me toquei que estava perto do fogão, e o fogo pulou no meu corpo”.
O relato é de uma vítima de violência doméstica que sofreu por quase 16 anos com agressões e até hoje convive com as marcas físicas e psicológicas.
“Até então eu estava enfrentando tudo e achava que era forte. A dor física passa, no corpo ficam as cicatrizes, mas passam, o psicológico não. Chega num ponto que você não aguenta mais”, desabafou.
A.S, 38 anos, mora em Cuiabá, é confeiteira e mãe de dois filhos, uma menina de nove e um menino de 13 anos. Ela conta que há pouco mais de um ano iniciou o acompanhamento com psicólogo e psiquiatra no Espaço de Acolhimento da Mulher. A unidade de atendimento integra a Rede de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher, da qual o Ministério Público do Estado de Mato Grosso também faz parte.
Na Capital, 12 instituições compõem a Rede de Enfrentamento. O trabalho começa com a Polícia Militar, quando a vítima aciona o 190. O atendimento também pode ser prestado mediante procura de uma Base da PM na região onde a violência está acontecendo. Na Polícia Militar, existe a Patrulha Maria da Penha, equipe especializada no acompanhamento de mulheres em situação de violência doméstica e familiar, principalmente para averiguação do efetivo cumprimento das medidas protetivas de urgência.
Após o atendimento da ocorrência, inicia-se a atuação da Polícia Judiciária Civil. Existem duas unidades de Delegacia especializadas em Cuiabá para o atendimento de mulheres em situação de violência doméstica. São nessas unidades que ocorrem o registro do boletim de ocorrência, a tomada de termo de declarações da vítima e possíveis testemunhas para realização do inquérito policial. Se necessário, também são requeridas medidas protetivas de urgência, encaminhamento à casa de amparo, exame de corpo de delito nos casos em que há agressão física ou crimes sexuais e disponibilização do dispositivo (aplicativo de celular) SOS Mulher MT.
Após a conclusão da investigação, o inquérito segue para o Ministério Público Estadual para análise e posterior oferecimento de denúncia contra o acusado ou pedido de arquivamento. O MPMT possui um Núcleo com quatro promotorias especializadas no enfrentamento à violência doméstica e familiar contra a mulher na Capital. Conta também com a Ouvidoria das Mulheres.
Além da análise dos inquéritos, os promotores de Justiça realizam o acompanhamento das medidas protetivas de urgência, promovem atendimento aos cidadãos para orientação, participam das audiências judiciais e são responsáveis por pedir medidas cautelares, incluindo a prisão preventiva. O Núcleo de Promotorias Especializadas atua ainda, como fiscal da lei, nos procedimentos que tratam de pensão alimentícia, divórcio, guarda, entre outros. E desenvolvem campanhas de conscientização e prevenção de crimes de violência doméstica e combate ao feminicídio.
A Rede de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher é composta ainda pelo Poder Judiciário, que possuem varas especializadas para julgamento dos processos referentes aos crimes cometidos contra mulheres no âmbito doméstico e familiar; e Defensoria Pública do Estado, que atua nos procedimentos relacionados a questões patrimoniais quando a vítima não tem condições financeiras de contratar um advogado e também presta assistência em caso de pedido de soltura do agressor, de revogação das medidas protetivas, entre outras situações.
O município de Cuiabá integra a Rede com a disponibilização da Casa de Amparo, Espaço de Acolhimento da Mulher e Programa Solidariedade em Ação. Participam também a Secretaria Municipal da Mulher, Secretaria Municipal de Educação, Conselho Tutelar, Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), Centro de Referência da Assistência Social (CRAS) e Câmara Temática da Secretaria de Estado de Segurança Pública.
Projeto estratégico contempla municípios polos
Até 2023, o Ministério Público do Estado de Mato Grosso pretende assegurar o funcionamento da Rede de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher em 10 municípios de Mato Grosso. A seleção das cidades levou em consideração o índice de feminicídio no estado (dados de 2018) e a estrutura da comarca para receber o projeto.
Foram selecionados Cuiabá, Nova Mutum, Pontes e Lacerda, Rondonópolis, Sinop, Tangará da Serra, Alta Floresta, Cáceres, Primavera do Leste e Sorriso. Dos 10, seis já estão executando o projeto, sendo que três deles (Cuiabá, Cáceres e Primavera do Leste) estão na etapa final de implantação. As próximas promotorias a iniciarem a execução do projeto são Pontes e Lacerda, Rondonópolis, Tangará da Serra e Sorriso.
O projeto já é desenvolvido em Várzea Grande, Barra do Garças e Poxoréu. Nas duas primeiras cidades, a iniciativa começou a ser implementada antes de se tornar projeto estratégico no MPMT. A coordenadora do Centro de Apoio Operacional Estudos de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher e Gênero Feminino, promotora de Justiça Gileade Souza Maia, explica que a iniciativa passa pela realização do diagnóstico da violência, articulação, capacitação e a efetiva implantação da rede. Entre os requisitos, estão o foco na atenção social e proteção com aplicação humanizada da Lei Maria da Penha e a qualificação de agentes.
A iniciativa tem o reconhecimento do Conselho Nacional do Ministério Público com premiações na categoria “Indução de Políticas Públicas”.
Canais específicos para atendimento às mulheres
A Ouvidoria do Ministério Público do Estado de Mato Grosso passou a contar, em março de 2022, com canais específicos para atendimento às vítimas de violência doméstica e familiar contra a mulher. Além do número 127, que funciona das 8h às 18h, existem dois celulares com whatsapp disponíveis: (65) 99259-0913 e 99269-8113. O contato também pode ser efetivado por e-mail: (ouvidoriadasmulheres@mpmt.mp.br) ou pelo site: mpmt.mp.br/ouvidoria.
Antes de iniciar os atendimentos, integrantes da Ouvidoria, recepcionistas, servidores do Departamento de Comunicação participaram de uma capacitação promovida pelo Centro de Apoio Operacional Estudos sobre Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher sobre “Humanização do atendimento às vítimas de violência de gênero”.
O papel do Ministério Público no combate à violência doméstica, Lei Maria da Penha, razões, formas e o ciclo da violência, além de conceitos sobre gênero foram alguns dos temas abordados pela coordenadora do CAO, promotora de Justiça Gileade Pereira Souza Maia. A palestrante também detalhou as providências que devem ser adotadas diante do relato da violência doméstica.
Acolhimento, verificação de segurança da vítima, escuta ativa, coleta de dados e encaminhamento serão as etapas a serem seguidas pelas atendentes. “É preciso ouvir atentamente a vítima, sem julgamentos, entendendo que a história é da vítima e não sua. Além da escuta ativa, é necessário estar atento às necessidades urgentes para encaminhamento aos órgãos que prestam esse atendimento”, orientou a promotora de Justiça.
A coordenadora do Núcleo de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher de Cuiabá, promotora de Justiça Elisamara Sigles Vodonós Portela abordou aspectos relacionados aos serviços disponibilizados pela rede de atendimento à vítima. “A rede é um sistema formado por vários entes que trabalham de forma autônoma, mas interligados. O Ministério Público faz parte dessa rede de enfrentamento”, explicou.
(Assessoria MPMT)