A Justiça mandou soltar Marcelo Benevides Silva, o torcedor do Flamengo que na quarta-feira (07.07) “roubou um beijo” da repórter da ESPN nas imediações do Maracanã. As imagens mostram que o torcedor, ao passar pela repórter que fazia uma transmissão ao vivo, aproximou-se e lhe deu um beijo no rosto.

Naquela noite, o locutor que transmitia a partida entre o Flamengo e o Veles Sarsfield da Argentina disse no ar que sua colega havia sido vítima de assédio por um torcedor e que a emissora estava tomando todas as providências e iria até o fim nesse caso para punir o agressor.

Os colegas da repórter detiveram o rapaz e acionaram policiais, que o conduziram ao Jecrim (Juizado Especial Criminal) do estádio e, após audiência de custódia, teve prisão preventiva decretada; ficou detido na cadeia pública José Frederico Marques, em Benfica, e responde por importunação sexual, crime inafiançável, que tem pena de um a cinco anos de prisão. No dia 8 de setembro, ele teve o alvará de soltura concedido pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro 

O episódio chama atenção como mais um exemplo da alta sensibilidade de parte da sociedade frente a comportamentos masculinos recorrentes considerados violação aos direitos da mulher, que ganhou ampla visibilidade por ter sido exibido na televisão e repercutido nas outras mídias sociais.

É obvio que o torcedor não devia fazer o que fez sem o consentimento da repórter, aproveitando-se do fato de que estava concentrada no trabalho, constrangendo-a numa transmissão televisiva que alcançou milhões de telespectadores. Mas o que interessa saber é se o comportamento constitui crime e, portanto, se a resposta deve ser dada com o Direito Penal.

No capítulo I – do Título VI – que trata da Liberdade Sexual, o Código Penal Brasileiro elenca dois crimes que, em princípio, guardam alguma semelhança com o fato: violação sexual e importunação ofensiva. Vejamos se há adequação do comportamento objetivo a alguma das figuras típicas.

O Código pune, nos dois primeiros crimes, além da conjunção carnal prevista no art. 215, o ato libidinosopraticado mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima, e no art. 215-A, o praticado sem a sua anuência com o objetivo, do agente, de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro.

Libidinoso é o ato que atenta contra o pudor, praticado com o propósito lascivo, isto é, voltado à satisfação do desejo sexual. Na jurisprudência dos tribunais brasileiros se tem considerado como tal: não só o coito anal ou o sexo oral, mas também toques, beijo lascivo, contatos voluptuosos, contemplação lasciva, dentre outros (v. g. STJ, REsp 1995795/SC).

Quanto ao beijo, a despeito de seus múltiplos significados possíveis, é fácil distinguir o seu caráter lascivo em conhecidas circunstâncias de tempo, lugar e pressão.

As imagens excluem a ocorrência de ato libidinoso, posto que o repentino beijo na face da vítima, desacompanhado de qualquer outro elemento característico, não parece ter conotação sexual. O autuado, que estava acompanhado de um filho menor, aparentemente mostrava euforia típica de um torcedor apaixonado por seu time de futebol, sendo mesmo difícil acreditar que alguém pretendesse satisfazer desejo sexual em tais condições.

Os veículos de comunicação chegam a falar em assédio sexual. O comportamento filmado não tem, no entanto, qualquer semelhança com a figura penal prevista no art. 216-A, que pune o constrangimento imposto pelo superior hierárquico à vítima com o intuito (propósito) de obter vantagem ou favorecimento sexual. E no caso, além de não haver conotação sexual no “beijo roubado”, ao que se sabe não havia relação funcional entre a repórter e o torcedor “acusado”.

Em geral, somente a análise do caso concreto permite desentranhar o aparente do fato criminoso, pois as situações podem envolver desde atos claros de libidinagens, como os referidos, até outros menos evidentes à primeira vista. Por isso, muitas vezes o caráter sexual da conduta é aferido após a instrução criminal, quando se dispõe de melhores condições para avaliar, a partir de todo o contexto fático documentado, se o agente atuou com vontade de realizar o crime.

Entretanto, esta não parece ser a situação sob exame, em que a finalidade sexual na conduta do agente parece descartada pela própria imagem captada pela câmera da emissora na transmissão ao vivo.

Essa singela análise do fato à luz da tipicidade evidencia a equivocada ideia que parte da sociedade tem sobre o que constitui crimes contra a liberdade sexual, de que tanto a mulher quanto o homem podem ser vítimas.

O crime é o núcleo do último dos círculos concêntricos do ato ilícito. Nele a tipicidade (a adequação de um fato cometido à descrição desse fato na lei penal) cumpre a relevante função de garantir que só os comportamentos tipificados na lei penal (prévia seleção de comportamentos feita pelo legislador para proteger certos bens jurídicos) podem ser puníveis.

O “beijo roubado”, sendo um ato invasivo, que pode causar dano moral, autoriza a vítima a promover ação de indenização contra o seu ofensor, mas nesse primeiro círculo de responsabilização civil se estanca a providência prevista no Direito vigente.

Em conclusão, ao reivindicar prisão para comportamentos inapropriados, embaraçosos ou constrangedores, porém sem capacidade de ofender o bem jurídico dignidade sexual, a imprensa produz desinformação e contribui para a banalização do Direito Penal, gerando falsa expectativa de punição.

No Estado de Direito, em que as leis penais emanam de um parlamento eleito, que confere aos cidadãos a garantia de que só serão processados e/ou condenados nas hipóteses por ela taxativamente demarcadas, levar à prisão quem não cometeu crime viola sua integridade física, liberdade, honra, imagem e dignidade, sujeitando o Estado – leia-se: nós contribuintes – à indenização por danos materiais e morais (artigos 5º, LXXV e 37, § 6º da Constituição Federal).

Determinar a prisão de alguém por fato manifestamente atípico, sob pressão midiática, para averiguar se ele praticou crime, subverte a lógica processual penal que parte do crime para o criminoso e põe em questão a relevante função dos agentes estatais que atuam em primeiro plano na persecução penal, como primeiros guardiães da legalidade penal.

*MAURO VIVEIROS FILHO  é Procurador de Justiça aposentado e Advogado, em Mato Grosso. É autor do livro “Tribunal do Júri: Na Ordem Constitucional Brasileira; Um Órgão da Cidadania”

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