Como parte dos preparativos para a campanha eleitoral que pretende dar um quinto mandato ao PT – o terceiro a Luiz Inácio Lula da Silva -, a equipe do petista lançou a primeira versão de seu programa de governo no fim de junho. No campo da segurança pública, as promessas são genéricas, mas permitem um vislumbre de como seria um novo mandato do petista.

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O documento foi lançado em um evento em 21 de junho. Embora a equipe de Lula afirme que o plano de governo ainda possa ser modificado, o material traz pistas importantes – e preocupantes: menos rigor no combate às drogas, mudanças na doutrina policial e acenos a grupos ideológicos cujos objetivos nem sempre se alinham com os da sociedade como um todo.

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O documento completo tem 34 páginas. A segurança pública ocupa uma parcela tímida do total: aproximadamente uma página. Um dos trechos mais importantes é o que trata da política sobre drogas. A campanha do petista indica que vai adotar uma postura menos agressiva. “O país precisa de uma nova política sobre drogas, intersetorial e focada na redução de riscos, na prevenção, tratamento e assistência ao usuário”. O termo “Redução de riscos” se refere a programas que, em vez de remover as drogas das mãos dos usuários, buscam tornar a experiência menos perigosa à saúde deles. Em muitos lugares, por exemplo, isso inclui a distribuição de seringas para usuários de heroína ou de cachimbos para usuários de crack, de forma a diminuir os riscos de contágio por doenças infecciosas.

O texto prossegue afirmando que “O atual modelo bélico de combate ao tráfico será substituído por estratégias de enfrentamento e desarticulação das organizações criminosas”. É um sinal de que, no que depender de Lula, as incursões policiais em áreas controladas pelo tráfico tendem a diminuir.

O documento fala ainda na “melhoria da qualificação técnica dos policiais”, incluindo a “reformulação dos processos de seleção” e a “atualização de doutrinas”. Em outra passagem, também menciona a modernização dos “mecanismos de fiscalização e supervisão da atividade policial”. Vindo de um partido que apoiou a decisão do STF que proibiu operações nas favelas e que com frequência acusa a polícia de promover o “genocídio da população negra”, a promessa parece indicar uma tentativa de restringir a atuação da polícia e de torná-la mesmo combativa.

O texto elaborado pela campanha de Lula também afirma que as ações de segurança incluirão medidas específicas que lidem com “violências contra mulheres, juventude negra e população LGBTQIA+”. Não há detalhes de como esses objetivos serão atingidos.


Histórico
Algumas das propostas são genéricas e nada trazem de detalhes. Mas, como Lula já foi presidente, é pertinente olhar para os dados da segurança pública em sua gestão.

Sem se distinguir claramente dos adversários, a campanha de Lula promete investir em tecnologia e valorizar os policiais no combate ao crime organizado, com a padronização das jornadas de trabalho. É um pequeno aceno às categorias policiais, que tendem a ser mais alinhadas com a plataforma de Jair Bolsonaro (PL). Entretanto, a maior parte dos policiais brasileiros (incluindo todos os civis e militares) tem seus salários definidos e bancados pelos governos estaduais, não o federal. O documento de Lula também é relevante pelo que deixa de fora, como a redução da maioridade penal e o aumento no rigor aplicado na punição a criminosos.

Uma versão prévia do programa de governo também citava o “controle de armas” como um dos pilares da política de segurança pública – sem explicar a que tipo de armas, e que forma de controle, se referia. Na versão mais recente, o tema foi deixado de lado.

A falta de detalhes das propostas não permite uma análise mais profunda de como seria a segurança pública em um eventual governo Lula. Mas o histórico do PT no governo federal fornece pistas importantes.

Dos pré-candidatos ao Planalto, Lula e Jair Bolsonaro já foram presidentes. Portanto, eles podem ser julgados por seu desempenho concreto no cargo, não somente pelas ideias presentes em seus documentos de campanha. E o histórico de Lula e seu partido, que permaneceu no poder de 2003 a 2016, não é dos melhores.

Foi durante o governo petista que mudanças importantes afrouxaram o combate ao crime no país. Em 2006, por iniciativa do governo federal, o Congresso aprovou uma lei (11.343/2006) que, na prática, impede a prisão de quem é flagrado com quantidades pequenas de droga (vistas como sendo para consumo próprio). Ou seja: a nova promessa de uma abordagem menos agressiva contra as drogas não é tão nova assim. Especialistas afirmam que a medida beneficiou o tráfico e tornou mais difícil o combate ao crime. “Essa política de descriminalização do consumo de drogas vem causando uma tragédia para o jovem brasileiro — e a criminalidade está cada dia melhor financiada”, diz Olavo Mendonça, especialista em segurança pública e major da Polícia Militar do Distrito Federal.

Também foi durante a gestão do PT, com a chancela do Congresso, que o governo levou adiante o Estatuto do Desarmamento, em 2003. Apesar de em 2005 um referendo ter rejeitado a proibição total do comércio de armas, mesmo a opção menos restritiva acabou sendo mais rigorosa do que a norma até então estava em vigor. Os resultados da mudança não ficaram claros.

Ainda com o apoio do governo federal (neste caso, na gestão de Dilma Rousseff), a audiência de custódia passou a valer em 2015. Desde então, quem é preso em flagrante é levado pela polícia a um juiz em até 24 horas, e o magistrado decidirá pela manutenção da prisão ou soltura. Na prática, o novo modelo reduziu significativamente o número de suspeitos que permanecem detidos em caso de flagrante. Isso gerou situações em que criminosos confessos são liberados pela porta da frente horas após terem sido presos.

Os números mostram como o governo petista não foi capaz de conter a criminalidade. Entre 2006 e 2016, a taxa de homicídios do país passou de 25 para aproximadamente 30 mortes por 100.000 habitantes. Isso é três vezes o valor considerado tolerável pela Organização Mundial de Saúde. O desempenho só não foi pior porque o estado de São Paulo conseguiu reduzir drasticamente o número de assassinatos, o que teve um impacto nos números nacionais. O último ano com o PT na presidência – 2016 – teve um índice recorde de criminalidade. “O governo do PT promoveu o desencarceramento em massa, e foi no governo do PT que saidões foram levados à máxima potência e se criou a audiência de custódia. O Brasil virou a terra da impunidade”, diz Mendonça.

No saldo da gestão de Michel Temer (que assumiu em abril de 2016 e ficou até o fim de 2018), houve uma queda em relação à gestão da petista Dilma Rousseff. E o governo Bolsonaro, que tem um legado questionável em algumas áreas, possui bons números a apresentar na segurança pública: na comparação com 2018, último ano antes do atual presidente assumir o poder, os homicídios caíram quase 20% — de aproximadamente 51 mil para 41 mil.

Segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o país fechou 2021 com os menores índices de homicídio desde 2011. Os estados exerceram um papel central nessa queda, mas também houve colaboração do governo federal. A redução aconteceu em 21 estados, de todas as regiões do país.  Apesar de o governo ter buscado facilitar a venda legal de armas – ou talvez justamente por isso -, as taxas de crimes contra a vida caíram substancialmente. Entre 2019 e 2020, os registros de armas quase dobraram, chegando a 186 mil em um ano.

O dilema de Lula
Enquanto se prepara para a campanha, o petista se vê diante de um dilema: se simplesmente repetir as propostas de campanhas anteriores (e que não trouxeram bons resultados), provavelmente se verá em uma posição de fragilidade. Ao mesmo tempo, se mudar de rumo e adotar uma estratégia mais efetiva contra o crime, admitirá indiretamente o fracasso da política de segurança pública petista contrariando o discurso ideológico do PT. Talvez por isso sua campanha tenha optado por um programa de governo genérico.

Mas as declarações de Lula tampouco ajudam. Por mais de uma vez, em discursos recentes, ele criticou o que classifica como encarceramento excessivo de jovens negros, e insinuou que eles não deveriam ser presos, por exemplo, por roubarem um aparelho de celular.

Para o advogado Fabricio Rebelo, presidente do Centro de Pesquisa em Direito e Segurança, o tom genérico das propostas não é capaz de esconder o mau histórico do PT no campo da segurança pública. “A fórmula petista na segurança pública já foi testada e seus resultados são extremamente ruins. Qualquer eleitor que tenha essa área como foco de preocupação prioritária tem todas as razões para temer um eventual retorno do partido ao poder”, diz ele.

Para Rebelo, a referência à juventude negra e à população LGBT no documento parece indicar uma preferência por bandeiras ideológicas em vez de políticas públicas eficazes no campo da segurança. “Não é algo que preocupe pelo foco de atenção nesse grupo, que, como todos os outros, deve ter seus direitos assegurados, mas pela insistência nessa visão segmentada da segurança. No fundo, isso deriva da visão distorcida de que a criminalidade não é uma opção do indivíduo, mas uma determinação da sociedade, pela qual a culpa é dela, e não do bandido”, diz.

Rebelo destaca que a menção ao “controle de armas” na versão inicial do documento indicava uma insistência em uma política que se provou equivocada. “O que vimos durante muitos anos no Brasil foi a construção de uma narrativa para justificar o desarmamento, que por aqui se pautou no apelo da suposta redução de criminalidade, sobretudo com argumentos genéricos, muitas vezes com viés emocional, que apostavam no desconhecimento do assunto pelo público. Com os resultados dos últimos anos, porém, essa narrativa ruiu diante da observação empírica”, diz. Ele se refere à queda no número de homicídios nos últimos anos, justamente quando aumentou o registro de armas de fogo legais no país.